domingo, 7 de maio de 2017

Traços Estilísticos da Lúgubre Alma – Por Raphael Andrade

Montagem Teatral: Lúgubre, da Cia. Paraense de Potoqueiros
Autor da Crítica: Raphael Andrade – Ator; Graduando em Licenciatura em Teatro.
Platão (348/347 a.C.) lançou os fundamentos de uma divisão tripartida dos gêneros literários. O filósofo grego, discípulo de Sócrates (469/399 a.C.), explica (o que coincide em termos de pensamento) no seu terceiro livro que há três formas de obras poéticas: “O primeiro é inteiramente imitação.” O poeta “desaparece”, deixando falar, em vez dele, personagens. “Isso ocorre na tragédia e na comédia.” A segunda forma “é um simples relato do poeta, no qual se pode encontrar, mormente, nos ditirambos.” Platão refere-se ao que podemos chamar de gênero lírico, embora a coincidência não seja apurada. “O terceiro tipo, enfim, une ambas as coisas; tu o encontras nas epopéias” Neste tipo de “poema” (texto) manifesta-se seja o próprio poeta (autor) nas descrições e na apresentação dos personagens, seja um ou outro personagem, quando o poeta procura suscitar a impressão de que não é ele quem fala e sim o próprio personagem; isto é, nos diálogos que interceptam a narrativa.
Aristóteles também se refere as variadas formas literárias (e aqui explanada teatralmente) de imitar a natureza. Obviamente, ela é até certo limite, artificial como toda a conceituação científica. O que é o certo? Epistemologia serve apenas para tentar entender?! O que serve para mim serve para ti? O que eu sei é da estrutura – Entre mim e você que agora lê, há um abismo de subjetividades e interrogações. Isto também vale para o teatro. O que sabemos é que não há pureza de gêneros lírico, épico ou dramático. Ouso dizer que são apenas conceituações para tentar, de alguma forma, filosofar no viés onisciente. Ainda bem que na contemporaneidade ou no pós-drama, isso cai por terra. O “céu” como modelo de todas as coisas que Platão se referira não é mais importante que o mundo real ou inteligível dialeticamente. Portanto, o mundo sensível (hoje) que é apenas uma cópia do “mundo ideal” é perpassado pela teoria das idéias. Eu, como subvertedor de ordens de ideias ou ideais, prefiro o “mundo sensível ou sensitivo” que se refere ao domínio da opinião ou sensação. Ser crítico ou não? Eis a questão. Há aqueles que só ficam na margem... Por isso compram qualquer opinião. Mas eu? Eu não!
Entre o mundo-modelo de Platão, prefiro o enredo sujo infernal da Divina Comédia de Dante Alighieri (1265–1321). Se a ideia de Platão de céu como modelo de todas as coisas, equivale, indubitavelmente, para o modelo de inferno de Dante como modelo visível e invisível de todas as coisas. Para melhor entendimento, pretendo analisar minhas impressões de Lúgubre, montagem teatral da Cia. Paraense de Potoqueiros a partir da obra indutora A Divina Comédia, supracitada. Mas antes desta análise, deixe-me lhe ensinar uma receita de achocolatado metaforizado:
1. Pegue o leite (Lírico), leite condensado (Épico), Nescau (Dramático), amido de milho (Pós-Dramático).
2. Bata tudo em um liquidificador da marca Brecht. Leve ao fogo até engrossar a seu gosto (dramaturgia).
3. Agora beba! O teatro está no ponto. Será?
Agora ficou fácil! O inferno é híbrido e tudo lhe cabe! Igual a vida lúgubre e efêmera. O inferno inventado por sei lá quem, é narrado no que já está intrínseco na consciência coletiva – fumaça, grunhido, calor, dor, gritos, horror e terror. No prólogo, somos jogados literalmente no Limbo. Bem no centro! Olho ao redor e me confundo com os atuantes, mas não falo. Só observo. Eles se debatem em uma expressiva ação corpórea. Parece que já fui ao inferno, está tudo familiar. Mas vem o exagero, o inferno é exageradamente exposto. Penso: Nossa! Inferno com fogo? Que original! Mas é Dante... Lá vem o LÍRICO, a “voz central” perpassa nosso caminho, nos toca, com seu estado de alma traduzido em um discurso rítmico. Mas ainda estamos no limbo. No Limbo, NO LIMBO!
Voltando a mistura: ÉPICO: Digamos que seja o mais objetivo, somos encurralados e deixados em um lugar específico. Aristóteles diz: “Entendo como épico um conteúdo de vasto assunto.” E haja assuntos! Ora separado; ora misturados ou juntos. Criando distância entre o narrador e o mundo narrado. Mas a Dramaturgia é híbrida. Precisa-se misturar mais! Falta, para mim, o mais aprazível – Ela, a DRAMÁTICA – Em traços puros, não se tem quase nada. A linearidade está presente, em certos pontos, mas cai por terra lúgubre em outros. As unidades não cabem mais – TEMPO, AÇÃO e ESPAÇO – Consonante Aristóteles: A peça é um organismo. “Todas as partes são determinadas pela ideia do todo, enquanto este ao mesmo tempo é constituído pela interação dinâmica das partes”. Este, ao meu ver, é o maior pecado de Lúgubre. Apesar de não caber mais “catarses” aristotélicas, este “organismo” supracitado deve ter um elo ao menos tênue de linearidade. Mistura-se muito, como foi destacado, porém não se pode perder na lógica – Lógica? Que lógica? É um mundo inventado! Assim como este que vivemos. Nós inventamos o mundo. A fala é inventada. O andar e inventado. As roupas são inventadas. Ora, isso é tão simples que, se colocássemos uma criança para viver na selva, rapidamente ela se comportaria como um animal selvagem. Não vamos longe nessa ideia, já repararam que a criança de 3 anos começa a perceber o papel da imitação na ontogênese (período de desenvolvimento do organismo). Portanto é difícil se chegar a um acordo conceituai sobre o que é imitação. O que sabemos é que vivemos em um mundo imitado. Uma lógica que perpassa toda a dramaturgia teatral. Esses gêneros e traços estilísticos são mais para tentar, de alguma forma, conceituar uma pureza que nunca existirá. É o que acontece nesta dramaturgia... Mas deve-se ter cuidado para a mistura não passar do ponto.
O palco vira um verdadeiro tribunal, local adequado para narrar à lógica e não lógica. Vira a dialética. Somos introduzidos na peça, fazemos parte de seu organismo e jogamos diretamente com os atuantes. Penso: o teatro é feito a partir do momento que temos um espectador para observar. Caso contrário não há teatro. Neste modelo de peça, somos Es(x)pectadores-atuantes intervindo na dramaturgia e, concomitantemente, em cena. O inferno aparenta ser aprazível. Mas logo vem a realidade. Na quebra da parede, desmancham-se conjunturas históricas e atuais, com modelos de pregar a verdade e mostrar a realidade. Até certo ponto prende, mas depois começa a ficar trivial na narrativa sentimentalista estéril. Creio que seja por estarmos acostumados com o apocalipse. Ainda seremos castigados pelo nosso pecado? Mas a luxúria, ira, gula, inveja, avareza, soberba, raiva, são impulsos “negativos”, porém aprazíveis.
Pausa para falar da visualidade – A aridez eficaz na proposição simulatória da prática de atos físicos e digressões verbais é enfatizada por uma arquitetura cenográfica prática e viva, parecem interligações de fios rizomáticos. A iluminação? Ah, a iluminação é DES-LUM-BRAN-TE. Ouso a dizer que existe uma dramaturgia da luz envolvida na trama de tal modo, que esquecemos um pouco das atuações e vemos apenas o Belo! Assim como o impecável efeito sonoro da sonoplastia! Costurados na identidade gestual e funcional ímpar com a similaridade de figurinos/disformes e impecáveis. Com um elenco jovial sintonizado em sensorial e convicta entrega ao jogo, porém, às vezes se entregando ao over. Mas na divina Comédia pode. Falando nela, pontos altos dos atuantes – o brado forte e seguro do pastor e a vibração ímpar da atuante “matemática” – Matemática? Outra história inventada para se ter uma raiz quadrada.
Lúgubre volta a misturar... mistura-se muito. Traços estilísticos poderia ser o mote do enredo, mas cuidado para não se perder ao entrar no infinito subjetivo/particular do espetáculo. Subjetivo e objetivo? Mistura-se novamente- metáforas, quebra da quarta parede, voltas no tempo, quebra da ilusão, somos partes do jogo. Seria por fim o teatro pós-dramático seguindo sua via conduzida da abstração para a atração? Não sei responder! Porque é híbrido, lembra? Prefiro não ser filósofo ou teórico nesta busca incessante da verdade. Apenas observo a minha subjetividade para narrar aqui à objetividade.
Percebo os noves círculos e seus destinos: Primeiro círculo – O LIMBO – aos não batizados a morte! Segundo círculo – VALE DOS VENTOS: sala de julgamentos – o vício da carne é extasiante. Terceiro círculo – LAGO DA LAMA: O cão de três cabeças tem fome de quê? Quarto círculo – COLINAS DA ROCHA: É o destino dos pródigos e avarentos. Quinto círculo – RIO ESTIGE – Não se pode subir a superfície. Sexto círculo – CEMITÉRIO DE FOGO: A punição dos hereges. Sétimo círculo – VALE DO FLEGETONTE – As almas gritam e choram a violência do próximo que, tão próximo, também violenta a si próprio. Tudo é estéril, onde está DEUS? Nono círculo – MELEBOGE – “No primeiro fosso estão os rufiões e sedutores, açoitados continuamente pelos demônios, que os obrigam assim a cumprir os seus desejos; no segundo estão os aduladores e lisonjeiros, estes estão imersos em fezes e esterco; o terceiro é destino dos simoníacos, enterrados de cabeça para baixo e com as pernas sendo queimadas por chamas; no quarto encontram-se os adivinhos, que como punição têm suas cabeças voltadas para as costas, os impossibilitando de olhar pra frente; no quinto fosso estão os corruptos, submergidos em um lago de piche fervente; no sexto são punidos os hipócritas, estes estão vestidos em pesadas capas de chumbo dourado; no sétimo estão os ladrões, que são picados por serpentes que os atravessam e os desintegram; no oitavo são castigados os maus conselheiros, aqui eles são envolvidos por infinitas chamas, e padecem ardendo; o nono fosso abriga os que semearam a discórdia, e são então esfaqueados e mutilados por demônios que lhes arrancam o que representa a discórdia semeada; no décimo fosso, os falsários são punidos com úlceras fétidas e diversas enfermidades”. Nono e último círculo – LAGO CÓCITE: A última esfera do nono círculo do inferno. É chamada de esfera Judeca, seu nome claro, faz referência ao traidor mais conhecido da história, Judas Iscariotes. Olho neste instante para as cordas – as que estavam no chão, as que prendiam os personagens, as que fazem zig-zag no teto e na vestimenta. Lembro de Judas que pôs ao pescoço a corda que os outros Judas religiosos não encontram. Lembro do epílogo no qual tivemos uma nova chance, da pobre Cleópatra que de tanto copular morre do veneno infernal de suas ovulações. Do demônio que não mete medo porque é estereotipado e gracioso. Por fim o narrador lírico nos lembra de lembrar. É preciso puxar a corda da consciência! Nesta perspectiva, peguem-na e amarrem a dramaturgia em outras cordas, procurando dar o nó no Organismo do Espelho da Alma objetivado. LÚGUBRE, passa a não ser mais um adjetivo de dois gêneros.
Peguem a corda! Salvem-se quem puder ou quiser.
7 de Maio de 2017.

FICHA TÉCNICA:
Montagem Teatral: Lúgubre
Cia Paraense de Potoqueiros
Elenco:
Alice Bandeira, Allyster Fagundes, Charles Roosevelt, Giscele Damasceno, Jadylson de Araújo, Juan Silva, Leoci Medeiros, Nilton Cézar e Valéria Lima.
Dramaturgia:
Breno Monteiro e Lauro Sousa
Direção de Visualidade:
Lauro Sousa
Figurino:
Lauro Sousa e Lucas Belo
Cenografia:
Breno Monteiro, Lauro Sousa e Lucas Belo
Iluminação:
Breno Monteiro
Maquiagem:
Nilton Cézar
Trilha Sonora:
Lauro Sousa
Operação de Sonoplastia:
Erllon Viegas
Direção Coreográfica:
Juan Silva
Preparação Corporal:
Leoci Medeiros
Mídias Sociais:
Nilton Cézar
Assessoria de Imprensa:
Allyster Fagundes e Nilton Cézar
Fotografia:
Allyster Fagundes
Direção:
Breno Monteiro
Apoio:
Casarão Viramundo, LB Assessoria e Cerimonial, Teatro Universitário Cláudio Barradas e Ná Figueredo.


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