Montagem Teatral: Lúgubre, da Cia. Paraense de
Potoqueiros
Autor da Crítica: Raphael Andrade – Ator; Graduando em Licenciatura em
Teatro.
Platão
(348/347 a.C.) lançou os fundamentos de uma divisão tripartida dos gêneros
literários. O filósofo grego, discípulo de Sócrates (469/399 a.C.), explica (o
que coincide em termos de pensamento) no seu terceiro livro que há três formas
de obras poéticas: “O primeiro é inteiramente imitação.” O poeta “desaparece”,
deixando falar, em vez dele, personagens. “Isso ocorre na tragédia e na
comédia.” A segunda forma “é um simples relato do poeta, no qual se pode
encontrar, mormente, nos ditirambos.” Platão refere-se ao que podemos chamar de
gênero lírico, embora a coincidência não seja apurada. “O terceiro tipo, enfim,
une ambas as coisas; tu o encontras nas epopéias” Neste tipo de “poema” (texto)
manifesta-se seja o próprio poeta (autor) nas descrições e na apresentação dos
personagens, seja um ou outro personagem, quando o poeta procura suscitar a
impressão de que não é ele quem fala e sim o próprio personagem; isto é, nos
diálogos que interceptam a narrativa.
Aristóteles também se
refere as variadas formas literárias (e aqui explanada teatralmente) de imitar
a natureza. Obviamente, ela é até certo limite, artificial como toda a
conceituação científica. O que é o certo? Epistemologia serve apenas para
tentar entender?! O que serve para mim serve para ti? O que eu sei é da
estrutura – Entre mim e você que agora lê, há um abismo de subjetividades e
interrogações. Isto também vale para o teatro. O que sabemos é que não há
pureza de gêneros lírico, épico ou dramático. Ouso dizer que são apenas
conceituações para tentar, de alguma forma, filosofar no viés onisciente. Ainda
bem que na contemporaneidade ou no pós-drama, isso cai por terra. O “céu” como
modelo de todas as coisas que Platão se referira não é mais importante que o
mundo real ou inteligível dialeticamente. Portanto, o mundo sensível (hoje) que
é apenas uma cópia do “mundo ideal” é perpassado pela teoria das idéias. Eu,
como subvertedor de ordens de ideias ou ideais, prefiro o “mundo sensível ou
sensitivo” que se refere ao domínio da opinião ou sensação. Ser crítico ou não?
Eis a questão. Há aqueles que só ficam na margem... Por isso compram qualquer
opinião. Mas eu? Eu não!
Entre o mundo-modelo de
Platão, prefiro o enredo sujo infernal da Divina Comédia de Dante Alighieri
(1265–1321). Se a ideia de Platão de céu como modelo de todas as coisas,
equivale, indubitavelmente, para o modelo de inferno de Dante como modelo
visível e invisível de todas as coisas. Para melhor entendimento, pretendo
analisar minhas impressões de Lúgubre, montagem teatral da Cia. Paraense de
Potoqueiros a partir da obra indutora A Divina Comédia, supracitada. Mas antes
desta análise, deixe-me lhe ensinar uma receita de achocolatado metaforizado:
1. Pegue o leite
(Lírico), leite condensado (Épico), Nescau (Dramático), amido de milho
(Pós-Dramático).
2. Bata tudo em um
liquidificador da marca Brecht. Leve ao fogo até engrossar a seu gosto
(dramaturgia).
3. Agora beba! O teatro
está no ponto. Será?
Agora ficou fácil! O
inferno é híbrido e tudo lhe cabe! Igual a vida lúgubre e efêmera. O inferno
inventado por sei lá quem, é narrado no que já está intrínseco na consciência
coletiva – fumaça, grunhido, calor, dor, gritos, horror e terror. No prólogo,
somos jogados literalmente no Limbo. Bem no centro! Olho ao redor e me confundo
com os atuantes, mas não falo. Só observo. Eles se debatem em uma expressiva
ação corpórea. Parece que já fui ao inferno, está tudo familiar. Mas vem o
exagero, o inferno é exageradamente exposto. Penso: Nossa! Inferno com fogo?
Que original! Mas é Dante... Lá vem o LÍRICO, a “voz central” perpassa nosso
caminho, nos toca, com seu estado de alma traduzido em um discurso rítmico. Mas
ainda estamos no limbo. No Limbo, NO LIMBO!
Voltando a mistura:
ÉPICO: Digamos que seja o mais objetivo, somos encurralados e deixados em um
lugar específico. Aristóteles diz: “Entendo como épico um conteúdo de vasto
assunto.” E haja assuntos! Ora separado; ora misturados ou juntos. Criando
distância entre o narrador e o mundo narrado. Mas a Dramaturgia é híbrida.
Precisa-se misturar mais! Falta, para mim, o mais aprazível – Ela, a DRAMÁTICA –
Em traços puros, não se tem quase nada. A linearidade está presente, em certos
pontos, mas cai por terra lúgubre em outros. As unidades não cabem mais – TEMPO,
AÇÃO e ESPAÇO – Consonante Aristóteles: A peça é um organismo. “Todas as partes
são determinadas pela ideia do todo, enquanto este ao mesmo tempo é constituído
pela interação dinâmica das partes”. Este, ao meu ver, é o maior pecado de
Lúgubre. Apesar de não caber mais “catarses” aristotélicas, este “organismo”
supracitado deve ter um elo ao menos tênue de linearidade. Mistura-se muito,
como foi destacado, porém não se pode perder na lógica – Lógica? Que lógica? É
um mundo inventado! Assim como este que vivemos. Nós inventamos o mundo. A fala
é inventada. O andar e inventado. As roupas são inventadas. Ora, isso é tão
simples que, se colocássemos uma criança para viver na selva, rapidamente ela
se comportaria como um animal selvagem. Não vamos longe nessa ideia, já
repararam que a criança de 3 anos começa a perceber o papel da imitação na
ontogênese (período de desenvolvimento do organismo). Portanto é difícil se
chegar a um acordo conceituai sobre o que é imitação. O que sabemos é que
vivemos em um mundo imitado. Uma lógica que perpassa toda a dramaturgia
teatral. Esses gêneros e traços estilísticos são mais para tentar, de alguma
forma, conceituar uma pureza que nunca existirá. É o que acontece nesta
dramaturgia... Mas deve-se ter cuidado para a mistura não passar do ponto.
O palco vira um
verdadeiro tribunal, local adequado para narrar à lógica e não lógica. Vira a
dialética. Somos introduzidos na peça, fazemos parte de seu organismo e jogamos
diretamente com os atuantes. Penso: o teatro é feito a partir do momento que temos
um espectador para observar. Caso contrário não há teatro. Neste modelo de
peça, somos Es(x)pectadores-atuantes intervindo na dramaturgia e,
concomitantemente, em cena. O inferno aparenta ser aprazível. Mas logo vem a
realidade. Na quebra da parede, desmancham-se conjunturas históricas e atuais,
com modelos de pregar a verdade e mostrar a realidade. Até certo ponto prende,
mas depois começa a ficar trivial na narrativa sentimentalista estéril. Creio
que seja por estarmos acostumados com o apocalipse. Ainda seremos castigados
pelo nosso pecado? Mas a luxúria, ira, gula, inveja, avareza, soberba, raiva,
são impulsos “negativos”, porém aprazíveis.
Pausa para falar da
visualidade – A aridez eficaz na proposição simulatória da prática de atos
físicos e digressões verbais é enfatizada por uma arquitetura cenográfica
prática e viva, parecem interligações de fios rizomáticos. A iluminação? Ah, a
iluminação é DES-LUM-BRAN-TE. Ouso a dizer que existe uma dramaturgia da luz
envolvida na trama de tal modo, que esquecemos um pouco das atuações e vemos
apenas o Belo! Assim como o impecável efeito sonoro da sonoplastia! Costurados
na identidade gestual e funcional ímpar com a similaridade de
figurinos/disformes e impecáveis. Com um elenco jovial sintonizado em sensorial
e convicta entrega ao jogo, porém, às vezes se entregando ao over. Mas na
divina Comédia pode. Falando nela, pontos altos dos atuantes – o brado forte e
seguro do pastor e a vibração ímpar da atuante “matemática” – Matemática? Outra
história inventada para se ter uma raiz quadrada.
Lúgubre volta a misturar...
mistura-se muito. Traços estilísticos poderia ser o mote do enredo, mas cuidado
para não se perder ao entrar no infinito subjetivo/particular do espetáculo.
Subjetivo e objetivo? Mistura-se novamente- metáforas, quebra da quarta parede,
voltas no tempo, quebra da ilusão, somos partes do jogo. Seria por fim o teatro
pós-dramático seguindo sua via conduzida da abstração para a atração? Não sei
responder! Porque é híbrido, lembra? Prefiro não ser filósofo ou teórico nesta
busca incessante da verdade. Apenas observo a minha subjetividade para narrar
aqui à objetividade.
Percebo os noves
círculos e seus destinos: Primeiro
círculo – O LIMBO – aos não batizados a morte! Segundo círculo – VALE DOS VENTOS: sala de julgamentos – o vício da
carne é extasiante. Terceiro círculo
– LAGO DA LAMA: O cão de três cabeças tem fome de quê? Quarto círculo – COLINAS DA ROCHA: É o destino dos pródigos e
avarentos. Quinto círculo – RIO
ESTIGE – Não se pode subir a superfície. Sexto
círculo – CEMITÉRIO DE FOGO: A punição dos hereges. Sétimo círculo – VALE DO FLEGETONTE – As almas gritam e choram a
violência do próximo que, tão próximo, também violenta a si próprio. Tudo é
estéril, onde está DEUS? Nono círculo –
MELEBOGE – “No primeiro fosso estão os rufiões e sedutores, açoitados
continuamente pelos demônios, que os obrigam assim a cumprir os seus desejos; no
segundo estão os aduladores e lisonjeiros, estes estão imersos em fezes e
esterco; o terceiro é destino dos simoníacos, enterrados de cabeça para baixo e
com as pernas sendo queimadas por chamas; no quarto encontram-se os adivinhos,
que como punição têm suas cabeças voltadas para as costas, os impossibilitando
de olhar pra frente; no quinto fosso estão os corruptos, submergidos em um lago
de piche fervente; no sexto são punidos os hipócritas, estes estão vestidos em
pesadas capas de chumbo dourado; no sétimo estão os ladrões, que são picados
por serpentes que os atravessam e os desintegram; no oitavo são castigados os
maus conselheiros, aqui eles são envolvidos por infinitas chamas, e padecem
ardendo; o nono fosso abriga os que semearam a discórdia, e são então
esfaqueados e mutilados por demônios que lhes arrancam o que representa a
discórdia semeada; no décimo fosso, os falsários são punidos com úlceras
fétidas e diversas enfermidades”. Nono e último círculo – LAGO CÓCITE: A última
esfera do nono círculo do inferno. É chamada de esfera Judeca, seu nome claro,
faz referência ao traidor mais conhecido da história, Judas Iscariotes. Olho neste
instante para as cordas – as que estavam no chão, as que prendiam os personagens,
as que fazem zig-zag no teto e na vestimenta. Lembro de Judas que pôs ao
pescoço a corda que os outros Judas religiosos não encontram. Lembro do epílogo
no qual tivemos uma nova chance, da pobre Cleópatra que de tanto copular morre do
veneno infernal de suas ovulações. Do demônio que não mete medo porque é
estereotipado e gracioso. Por fim o narrador lírico nos lembra de lembrar. É
preciso puxar a corda da consciência! Nesta perspectiva, peguem-na e amarrem a
dramaturgia em outras cordas, procurando dar o nó no Organismo do Espelho da
Alma objetivado. LÚGUBRE, passa a não ser mais um adjetivo de dois gêneros.
Peguem a corda! Salvem-se
quem puder ou quiser.
7 de Maio de 2017.
7 de Maio de 2017.
FICHA
TÉCNICA:
Montagem
Teatral: Lúgubre
Cia
Paraense de Potoqueiros
Elenco:
Alice Bandeira, Allyster Fagundes,
Charles Roosevelt, Giscele Damasceno, Jadylson de Araújo, Juan Silva, Leoci
Medeiros, Nilton Cézar e Valéria Lima.
Dramaturgia:
Breno Monteiro e Lauro Sousa
Direção
de Visualidade:
Lauro Sousa
Figurino:
Lauro Sousa e Lucas Belo
Cenografia:
Breno Monteiro, Lauro Sousa e Lucas
Belo
Iluminação:
Breno Monteiro
Maquiagem:
Nilton Cézar
Trilha
Sonora:
Lauro Sousa
Operação
de Sonoplastia:
Erllon Viegas
Direção
Coreográfica:
Juan Silva
Preparação
Corporal:
Leoci Medeiros
Mídias
Sociais:
Nilton Cézar
Assessoria
de Imprensa:
Allyster Fagundes e Nilton Cézar
Fotografia:
Allyster Fagundes
Direção:
Breno Monteiro
Apoio:
Casarão Viramundo, LB Assessoria e
Cerimonial, Teatro Universitário Cláudio Barradas e Ná Figueredo.
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