domingo, 14 de maio de 2017

Cela 07 – Por Raphael Andrade Rocha

Montagem teatral: Falando de Flores
Autor da crítica: Raphael Andrade – Ator; Graduando em Licenciatura em Teatro.
Presídio Encéfalo, Maio, 12/05 – Cela 07
Caro, Cretino. Ainda não recebi sua carta. Provavelmente se extraviou, ou foi interceptada pela censura – isso se ela veio pelo correio. Hoje, posso dizer que vemos o estado imperial sagrado dar lugar às monarquias profanas, a República e a Democracia se sucederam na vida dos povos. Do passado ao presente. Entretanto, não somos capazes de olhar o presente e muito menos o passado – bic et nunc. Ou somos? Deixo para você responder. Faço-lhe outras perguntas: O que fez modificarem-se as antigas civilizações? O que fez evoluir a história? Foi Ciro, Alexandre, César, Napoleão, Dom Pedro, Princesa Isabel, Jesus Cristo? Seria ingenuidade supor que as revoluções ocorrem, ou melhor, decorrem da vontade pessoal de alguém. Tens respostas?
Meu caro docente, acho que estou obcecado por essa tal revolução. Será que um dia poderemos respirar sem ter medo de um futuro inglório? Acho que estou uns 7 anos preso. Na verdade, parece que as horas tornaram-se infindáveis. Sempre a mesma parede cinza e o fedor de urina me acompanhando no dia a dia, sem contar as sessões psicológicas torturantes que me “acalantam”. Lembras do João Bosco, Vandré, Caetano e Chico? Os pobres só inventaram canções de temática política, mas o foco maior e o que incomodou na época foi a questão moral. Que moral? Pergunto novamente: Que moral? Era necessário falar sobre tabus, como pílula, prostituição, drogas, homossexualismo e uma ideologia do bem comum. A única certeza é que a arte dá conta de explanar tudo isso. Por isso abracei o tal do teatro. Podemos deturpar, ou melhor, metaforizar as ideologias desses demônios fardados para tentar –TENTAR – mostrar que o que aí está não pode durar, pois não serve nem de estrume para o futuro.
Pois bem, Como deves saber minha peça foi cognominada de “subversão da classe teatral” – segundo a politicagem, claro. Eu tentei explicar que até Jesus Cristo foi subversivo na sua época e os sumos sacerdotes o tentaram calar... Na verdade conseguiram, porém por apenas três dias. Mas eles não imaginavam que existe a ressurreição e, para mim, ela anda de braços abertos e chagados com a revolução.
Espero o retorno de sua carta. Sua escrita me faz viajar por outros viesses e ideologias.
Afetuosamente.
Sábado, 13 de Maio – Dia da libertação dos escravos brasileiros.
Caríssimo Professor N. SILVA.: Está chegando meu aniversário, e por um atavismo de adolescência me cheira a festa – eu ia começar a escrever mas decidi conceder-me um luxo todo especial que foi o de chupar uma laranja. Como não gosto de tomar café da manhã o bueiro havia me dado a metade de uma apodrecida. Que ser humano incrível!
Hoje, tocaram como de costume as músicas que passaram pela censura na prisão. Mas uma delas os otários deixaram passar despercebidos – Cálice, de Chico. Eu chorei ao ouvir tamanha delicadeza e inteligência metafórica contra estes bandidos – “Como beber dessa bebida amarga / Tragar a dor, engolir a labuta...” Um remédio para minhas feridas. Tenho febre todos os dias. Acho que meu fim está próximo. Ontem, olhei-me no espelho d’água e percebi que envelheci uns 30 anos. Pareço uma pintura de Portinari – Os Retirantes. Como te conheço, sei que tu estás rindo. CRETINO!
Fico pensando na tal da liberdade, e me vem à mente: A perda da liberdade não pode acarretar a perda de dignidade, por isso me dobro as injustiças dentro da cadeia. Há presos, infelizmente, que tudo aceitam como se fossem cegos ou surdos e o pior: mudos. Para estes, importa apenas recuperar a liberdade física. Não sou desses, agir assim seria destruir a única coisa que me resta – a moral. Pena que o mundo nunca teve a noção de moralidade, mas o que é afinal isso? Que dia propício para pensar sobre isto!
Hoje, peguei-me pensando minha juventude quando fazia o curso técnico de ator. A primeira aula foi contigo. Circunspecto, jocoso e esquisito. Mas ensinaste-me algo que levarei sempre comigo: “A vida é feita de escolhas, vocês escolheram fazer teatro e devem dar prioridade para isso. Caso contrário, tranquem o curso e façam o que acharem melhor.” Moral é ética! Hoje, penso assim. Mas não poderia deixar passar despercebido o único “B” que tirei na graduação. E foi pelas tuas cretinas mãos. Volto a refletir tua opinião “Vocês serão futuros professores, devem ler e, sobretudo escrever.” Acho que nesse quesito tiro um “E” por não acreditar na ditadura do aprendizado que dura um dia. Acho muito pobre viver assim, sem nenhuma perspectiva de aprender e rever variados conceitos e ideologias. Caso contrário, lembro do que dizias “Cuidado com o cretino, tirem suas próprias conclusões, mas suas opiniões não são somente suas, é necessário ver o TODO”, não exatamente nestas palavras. Mas isso abrange uma certeza – não cair no conto dos cretinos. E o Brasil está cheio deles. Vêem qualquer coisa nos meios de telecomunicações e tomam para si como verdade. Por isso existem os que acreditam que a Ditadura era um mal necessário. Falando em ditadura, quantas existem? Para mim, existe a Ditadura da cor BLACK and RED – Segregação racial. O fato de a raça “superior” ou imitadora do eurocentrismo julgar como cultura só aquilo que ela entende como certo, levou-a a “pacificar os indígenas.” Infelizmente o fazer teatral também deu conta disso. Será que ninguém dá conta desse conflito? A quem fazem mal os “selvagens” e os negros? A ninguém! Vivem sua cultura, sua vida e sua história. Mas nós os brancos nos julgamos uma raça superior (analogia a Fürer) E este complexo nos levou, como disse um Frei: “dizimar os vermelhos, isolar os amarelos e subjugar os negros”. Ditadura do Relativismo – Onde tudo é relativo e o que importa é meu próprio umbigo. Dentre tantas outras. Mas é necessário lembrar da que vivemos – Ditadura militar – regime instaurado no dia da mentira de 1964 (contundente, não?) e, ao meu ver, a mais grave de todas as DITADURAS BINÁRIAS (que anda de mãos dadas com o golpe) – “Quem não pensa como eu acredito, é meu maior inimigo”. E nisso, consiste massacre e violação do livre arbítrio.
Escreva-me, o que fazer para mudar esse raciocínio? Espero sua carta.
Domingo – 14 de MAIO – DIA DAS MÃES.
Oi, Mãe. Dormi mal esta noite. Tivemos 7 dias de absoluta falta d’água, o pior de tudo foi coincidir com o calor. Após sete dias “descobriram” que o registro estava fechado. Nesses tempos me torturaram pouco aqui na cela. Lembrei das chineladas que tu me davas quando criança, mas a sua era, digamos – carinhosa. Lembro que tu não deixavas papai me bater porque ele tinha a “mão pesada”. Às vezes me pego sorrindo, seria a ditadura do relativismo? Às vezes me lembro de lembrar... Sabe, a comida daqui não tem sabor. Sinto saudade da tua coxinha e da vida alegre que levava ao teu lado ouvindo teus sonoros palavrões. Faz uns  quatro dias que não comemos nada. Mas não fique preocupada. Parece que a gente perdeu a fome. É assim que vivem os famintos da terra?
Saudade é uma palavra inventada para causar dor – E dói muito! Mais do que o Pau-de-Arara, choque elétrico, pimentinha, “geladeira” e soro de pentatotal. Isso é comum aqui. Não me afeta mais.
Nunca esqueças que eu te amo. Desculpe, não sei mais fazer poesias para alegrar teu dia. Tudo parece poeticamente obscuro. Um abraço para papai, aquele velho ranzinza que me ensinou a ser direito, porém de direita. Ninguém é perfeito! Aproveite este dia magnífico, como deve ser uma festa familiar.
Atenciosamente, seu filho.
Presídio reminiscência- pavilhão 7, cela 1988.
Querida JANSEN, recebi sua carta. Fico feliz em saber que estais bem. Lembro-me que um dia pensei em desistir do fazer teatral e tu me mandaste, com a simplicidade que lhe cabe o inscrito: NÂO DEIXE PELA METADAE – e uma iconografia de uma fatia de pão cortada ao meio. Eu ri, achei tão lindo e significativo! Lembro-me de “Tchekhov Viaja” e tua postura frente à batalha instaurada no convívio dos discentes. Tu, com sabedoria exemplar, fizestes a desunião virar união em prol de um bem comum. Perguntaste com democracia: “Vamos cortar a peça ao meio” e pediu para cada um dar sua opinião sobre isso. O final da história tu já sabes. Sou grato por isso e por tantos outros momentos de ensinação!
Mas como não escrever sobre o dia anterior que fui preso? Fui ver Falando Sobre Flores da tua direção. Ainda tinha Renan e Demi na atuação. Lembro-me de suas presenças irradiadas em cada gesto e com o estranhamento da quebra da quarta parede, entre nuances dramático/coreográficas e uma eficaz mimese corpórea corroborando de modo decisivo para mostrar a tensão dramática\trágica\assustadora da narração. Nada ali é gratuito! É exemplar ver o trabalho de corpo dos atuantes, onde a eficaz sugestão simulatória (ou não) da prática de atos físicos e digressões verbais é enfatizada por ambos, apesar de faltar segurança no script. Lembro da atuação da mulher que, até então, só fazia a mesma interpretação. Se agigantando e mostrando sensível e vigorosa direção de movimento com contundente organicidade na formação corpóreo-vocal masculinizada na sua atuação, porém falta dar menos ênfase na emoção.
Tudo corrobora para uma boa explanação do que estava por vir. Numa ambientação cênica de uma cela igual a que vivo da resistente e acolhedora “Casa da Atriz” com o intuito de reduzir e abrigar os espectadores sentados\amontoados no chão como meros “voyeurs” da atrocidade. A recatada, mas eficaz e tenebrosa iluminação, juntamente como os interessantes e competentes adereços cênicos e a sonorização confirma a atenta e sintonizada direção ao narrar o infortúnio golpe militar. Por isto mesmo, muita atenção, é tempo obrigatório para falar Sobre Flores. E todo cuidado é pouco, o perigo ali exposto pode estar morando muito perto ou conosco... Fico feliz pelo olhar atento do dramaturgo no qual nos mostra com clareza e eficiência pulsão conceitual do teatro como arte política – Em não cair ao mostrar só os pontos negativos da Ditadura Militar. Se é que existe ponto positivo. Mas isso eu deixo para quem viu e quem percebeu a mensagem das flores e dores dos que foram golpeados pela banda podre. É uma peça histórica e informativa, necessitando ser apresentada nas escolas, NAS ESCOLAS! Porém, sei que na ditadura que aí está será difícil.
Sejam resistentes, Bravíssimos! Só assim poderemos vislumbrar um sonho utópico de vida.
Presídio militar, cela 07. 1985
Querida família trapo.
Aqui, às vezes, tenho a impressão que a terra parou de girar. É tudo muito calmo. Somente os momentos de torturas me fazem saber que estou vivo. Perdi muito sangue está noite. Izabel, que sempre me chamou de “amarelão”, se pudesses ver a cor que me encontro neste momento ficarias atônita. Estou como uma terrível ferida encoberta por uma capa branca asséptica de um esparadrapo. Eles não trocam há dias. A minha única dedicação e momentânea felicidade é escrever, como agora. É um alento, faz um silêncio absoluto, todavia quase assustador quando penso nos gritos que estão sendo abafados.
Vem sempre à minha mente o grito nauseante: “Ame-o ou deixe-o” ou “demônios filho de comunistas” e “Bichinha de teatro revolucionista”!
Bando de ordinários! Fujam para longe familiares! Se tiverem oportunidade mudem-se para o Chile! Mas não esqueçam que existe a porra da esperança de um Brasil de TODOS.
Até, quem sabe, um dia.
PresíDio MilItAr, cela 07 ..-- não recOrDo a dAta.
FAmilIarEs, desCuLpe estar eScreVendo cOm alteRnânCcias de leTraaSs gaRraFais, ontEm, fiqUEi saBenDo que minha caRTa foi LIda pelos MilItares. VieTRam aqui e me dEram Uma lição por “””TentTtiva de suBversão.” QuEimarm os dedOss das mInas duas mãOs e EstoU Com trEmor no Sisstei_ma nervoSO. HoJe, me deRam um núMero de inScriçãO, dizee que quaDSdo é dado um núMEero para um pReso é porQ_ue ele é o próXimo da liSta. N~ao como MAais, quero abra_çar loGo Deus. POis já abraço há m_ui_to tempo o diaBo. TenHo certeza quEE aí fora taMbém há diTadUra. E iSso vai peErdurar poo..por muitOs anoN, muitos! NaA verdADe NUNca sairemos delas, só mudar~âo as_ __gravatas Oou as arMas.__
Presídio militar, cela 07.
Sétimo dia sem comer nada, somente tomando água, a mão está melhor, haja vista que voltei a escrever direito. Bem cedo me conduziram ao hospital dos porões pra exame de urina e sangue. Vi na fila da enfermaria o “luz vermelha” – um produto da imprensa capitalista. Acho que ainda tenho fôlego para escrever por alguns dias. Creio que eles têm sede de me ver morrer cada dia um pouco. Mal eles sabem que estou cada vez mais vivo nas minhas ideologias. Fui resistente contra esse sistema. Levo comigo a gratidão pelos livros que tive a oportunidade de ler e entender. Creio que eles não tiveram a mesma oportunidade, por isso não usufruem da mínima noção de memória histórica.
Ouço gritos abafados na cela ao lado, acho que acabei de vislumbrar a TEMERosa face de Médici. Nem acredito que irão trocar o esparadrapo, mas desta vez não é a enfermeira. Acho que ainda existem homens de bem nesse mundo. Enquanto houver força existirá a tal da esperan _/\_/\__/\ʌ___/\_____________
14 de Maio de 2017


Ficha técnica:
Montagem teatral:
Falando Sobre Flores
Dramaturgia:
Renan Coelho
Atuantes:
Renan Coelho e Demi Araújo
Aderecista:
João Calado
Iluminação:
Luciana Porto
Sonoplastia:
Jairo dos Anjos
Direção:
Karine Jansen




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