terça-feira, 16 de maio de 2017

Olho, logo imagino – Por Leonel Ferreira.

Contação de história: O Olho que transvê
Leonel Ferreira: Artista de Teatro e Sociólogo. Participante do Minicurso de crítica teatral “O que pode uma crítica teatral?”
Contação de história pode ser considerada um espetáculo de teatro? A discussão volta e meia surge no meio artístico em Belém nas rodas entre os que fazem contação de história e os que fazem teatro.  Bom, vamos então as análises, se é que cabe ainda este tipo de procedimento em tempos de relativização do fazer artístico.
Cabe destacar que no século XVII, era considerada peça de teatro uma obra literária ou musical: “Uma montagem ou colagem de diálogos ou monólogo. O primeiro mandamento é o desenrolar contínuo, fechado e progressivo dos motivos da ação, o suspense deve ser mantido continuamente” (PAVIS, 1999, p, 281).
Para Roland Barthes (apud PAVIS, 1999, p. 141), “É espetáculo tudo o que se oferece ao olhar. O espetáculo é categoria universal sob as espécies pela qual o mundo é visto”.
Bom, cabe ressaltar alguns elementos constitutivos de uma apresentação teatral: figurinos, adereços, maquiagem, sonoplastia (seja mecânica ou ao vivo). Não irei analisar a função de cada um destes elementos. O que interessa aqui é a utilização de tais elementos nas contações de histórias. Então retorno a pergunta inicial, contação de história é um espetáculo de teatro?
Sobre a arte de contar histórias
É um ato milenar, tão antigo quanto a própria humanidade. Desde os tempos primevos quando a tribo se reunia para ouvir as histórias vividas pelos homens que saiam para caçar. O caçador assumia a figura do narrador para compartilhar com aqueles que ouviam, suas aventuras, medos, angustias, etc.
O narrador tem uma função fundamental, uma espécie de mediador entre o público e os personagens. No teatro épico, o narrador é determinante para expor os acontecimentos. E na contação de história? O mesmo se observa. O narrador, fazendo uso de diversas técnicas. Segundo Olga Reverbel, “as capacidades de expressão, como relacionamento, espontaneidade, imaginação, observação e percepção, são inatas no ser humano, mas necessitam ser estimuladas” (1989, p, 57).  Para tanto, sugere-se a utilização de técnicas teatrais para o melhor desempenho do narrador, em particular técnicas vocais e corporais. Ora, então, para ser contador de histórias precisa fazer uso de técnicas teatrais? É sabido que as técnicas teatrais são utilizadas para diversos fins como: ajudar na comunicação, superar a timidez e até para bem atuar no palco. Creio ser indiscutível a importância das técnicas teatrais quando bem aplicadas, pois uma história contada sem ritmo, sem pulsação, é uma história desanimadora. Talvez se torne uma experiência frustrante para quem ouve e assiste.
Um dos baratos mais legais nas contações de histórias é a utilização da imaginação como disparador de imensas possibilidades sobre o acontecimento narrado. Sobre isto Stanislavski diz: “a imaginação cria coisas que podem existir ou acontecer. A arte é produto da imaginação assim como deve ser a obra do dramaturgo. O ator deve ter por objetivo aplicar sua técnica para fazer da peça uma realidade teatral. Neste processo o maior papel cabe, sem dúvida, à imaginação.” (2010, p, 87).
Com esta sentença, penso que a discussão frágil sobre se contação de história é ou não teatro, cai por terra. Também não considero justificativa a resposta quando se diz que depende como se vê, pois em Belém criou-se um formato de apresentação de contação de história, que na verdade são espetáculos de teatro de curta duração. Então seria a contação de história um monólogo? Uma performance? Bom, aí a discussão é outra. E sendo umas destas variações, já são expressões teatrais.
Sobre olhar pra dentro
Marluce Araújo, atriz, educadora, contadora de história e mãe. Assim ela se apresenta. Inicia sua apresentação explanando sobre a arte milenar das contações de histórias. Apresenta ao público as aventuras de Alexandre, um menino que mora numa casa que tem um imenso quintal, na verdade uma floresta. Alexandre adora brincar. Sempre após chegar da escola, Alexandre toma banho, come e corre para a mata. Um dia após uma tarde de brincadeiras na mata e ao voltar pra casa, o pai de Alexandre faz o menino perceber que ele estava sem o olho esquerdo. Alexandre lembrou que ao se assustar na mata de algo que não sabia bem o que era, saíra correndo para sua casa. Concluiu que perdera o olho na correria pelo meio da mata. Ele volta pelo mesmo caminho que fez e encontra seu olho pendurado num galho. Simples, ele pega o olho e coloca no lugar. Só que Alexandre coloca o olho ao contrário, de trás pra frente. Com isto ele cria a capacidade de ver o lado de dentro das coisas.
Inspirada no obra de Graciliano Ramos, Alexandre e Outros Heróis, Marluce Araújo, concebeu a adaptação do texto, o figurino, maquiagem e direção e assim como no conto de Graciliano Ramos, provoca a imaginação da plateia de maneira que seja possível olhar com outros olhos, olhar o que realmente importa, as entranhas, as profundezas, sem preconceito. Se deixar surpreender com as cores do não imaginado. Imaginar... Por um instante se esquece do caos das obras do BRT, do lixo que se amontoa nas esquinas da cidade, das matanças nas baixadas, mas só por um instante. E neste momento de digressão, também há espaço para se pensar na possibilidade de um mundo melhor, onde se possa revirar os olhos para enxergarmos outro mundo, para agirmos de outra forma. Para tanto, é necessário vez por outra, se afastar da realidade para criar imagens a partir do contato com os objetos e construções humanas, posto que o conhecimento é fruto da experiência e o mesmo só é possível por meio das sensações, como propõe Deleuze: “Nada se faz pela imaginação, tudo se faz na imaginação”. A imaginação possibilita tele transporte, chuva de hambúrguer, bicicleta voadora, feijões mágicos, leões falantes, dragões que dormem em ouro e possibilita um caminho diferente, pois se pode ser o que quiser.
E assim, a contação de história, tal como o espetáculo de teatro, cumpre com uma função tão importante nos dias atuais, onde as relações frias das redes sociais moldam comportamentos não tão quentes quantos as telas dos computadores, onde o encontro se torna arte entre as pessoas e apenas sugere que olhemos  o mundo com olhos de crianças que se deixam perder nas matas imaginadas no fundo do quintal.
Belém, 08 de Maio de 2017.

Referências
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
REVERBEL, Olga. Jogos teatrais na escola: atividades globais de expressão. São Paulo: Scipione, 1989.
STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

FICHA TÉCNICA:
Contação de História:
O Olho que transvê
Contação, Concepção, Adaptação textual, Direção e Figurinos de  

Marluce Araújo  

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