Resposta
reflexiva à crítica “Olho, logo imagino”, de Leonel Ferreira.
Alana Lima – Palhaça, atriz,
contadora de histórias, educadora.
Lembro-me da
primeira vez em que assisti uma sessão de contação de histórias: Marluce Araújo
contava sobre um menino que perdeu os olhos brincando e quando os colocou de
volta, estavam ao contrário, fazendo-o ver o mundo por dentro, transvendo.
Alguns anos depois disso, já na posição de atriz, educadora e contadora de
histórias, fui questionada sobre contação de histórias ser ou não teatro. Tive
uma resposta imediata, mas a discussão repercutiu nos corredores e nas críticas
teatrais que seguiram. Penso que categorizar a arte é decisão arriscada, embora
seja preciso, nas condições atuais, discutir sobre a profissionalização e os
lugares de quem faz arte.
Tendo lido a
crítica “Olho, logo imagino” escrita por Leonel Ferreira, artista de teatro e
sociólogo, a respeito da mesma contação que me ensinou a transver o mundo, o
debate volta à tona e sinto-me impelida a levar adiante a discussão, propondo
reflexões aos profissionais de ambas as áreas e mesmo aos curiosos sobre o
tema. Daniel Leite, escritor e poeta paraense, disse em uma de suas obras mais
significativas que “desde o início até o para sempre viver é contar histórias”.
A assertiva se encaixa bem com muito do que é dito nas oficinas e formações
para contadores, pois se sabe que todo ser humano, desde que o mundo é mundo,
conta histórias. Entretanto, em que momento a arte de contar histórias
tornou-se restrita a determinados detentores de técnicas e saberes nomeados
contadores?
A arte de contar
histórias é uma tradição milenar que, com o tempo, foi sendo em grande parte
abandonada em detrimento das práticas de leitura e, atualmente, das tecnologias.
Nesse contexto ressurge a figura do contador de histórias, trazida
especialmente por todos aqueles que cresceram ouvindo os avós, pais ou vizinhos
contarem. Com essa figura vem também novas formas de contar, adaptadas ao tempo
e aos novos ouvintes, fazendo com que a contação de história ganhe um caráter
de ofício, não só de hábito cultural. Assim, denomina-se “arte” àquilo que fora
costume de porta de casa, de beira de rio, de chão de sala ou de qualquer lugar
onde houvesse um “griot”. As transformações a partir daí foram constantes,
surgem as oficinas e curso para contadores de histórias, percebe-se a
necessidade de uma técnica e a importância de reconhecer a contação como um
ofício educativo, artístico e profissional.
Diz-se muito que
todo ator é um contador de histórias, mas nem todo contador é um ator. É certo
que as técnicas de corpo e voz aproximam os dois de tal forma que é possível confundí-los.
É certo também que, desde os primórdios, os espetáculos teatrais partem de uma
história, no sentido mais amplo e simples do termo: aquela que tem início, meio
e fim. No entanto, a forma de se contar uma história pode variar quando se
pensa no teatro.
O contador é,
antes de tudo, um ser apaixonado pela história, pela leitura, pelo poder da
palavra. É aquele que se põe a serviço da palavra, como ponte entre a história
a ser contada e o ouvinte. O contador é livre para ser quem é, ou ser quem
quiser ser dentro da história que conta. Ele pode estar neutro ou
caracterizado, pode encenar ou ler em voz alta... contanto que o objetivo seja
“ensinar” a transver o mundo, por meio da palavra. De tudo que foi dito até
aqui, poderíamos ainda considerar que o teatro se encaixa perfeitamente, visto
que é possível a quebra ou não da quarta parede, é possível neutralidade e a
base do teatro também é a palavra, o texto. E então se abre novamente o
impasse, pois é cada vez mais difícil distinguir duas artes tão próximas.
Dito isto,
partindo da crítica e das reflexões propostas por Leonel, proponho também uma
nova reflexão, a respeito de um tópico que muito interessa às duas áreas: o
ator é, de fato, um contador de histórias? Quando em cena, o objetivo maior da
sua arte é contar uma história ao público? Ou nós, como atores, como artistas,
ainda estamos muito preocupados com a nossa própria imagem e com a construção
de personagem da obra que deixamos de lado o poder que a obra em si, já possui?
São perguntas
que talvez não tenham respostas a curto ou médio prazo. Pondero, como Leonel,
que esse debate parece frágil por ainda permanecer no âmbito da categorização,
enquanto precisamos cada vez mais discutir e refletir sobre a valorização e
profissionalização dos artistas de ambas as áreas, reconhecendo as técnicas e
os espaços que cada um tem alcançado. Pego emprestado o pensamento e a luta de
Augusto Boal, minha grande referência como atriz, contadora e educadora, para
encerrar as proposições aqui trazidas: “tenho sincero respeito por aqueles
artistas que dedicam suas vidas exclusivamente à sua arte – é seu direito ou
condição! –, mas prefiro aqueles que dedicam sua arte à vida”. (BOAL, 2013)
Que possamos
sempre transver o mundo, como o menino que Marluce Araújo, como atriz e
contadora, nos apresentou.
18 de Maio de 2017.
Referencia:
BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e
outras poéticas políticas. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
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