segunda-feira, 8 de maio de 2017

Lembranças de uma tarde nublada – por Diego Maia da Costa

Montagem teatral: Falando de Flores
Autor da crítica: Diego Maia da Costa: graduando em História na Universidade Federal do Pará e aluno do minicurso de crítica teatral “O que pode uma crítica teatral? ”

Parte I
Era um fim de semana qualquer de 2016. A tarde nublada incentivava o cochilo do pós-açaí. Entretanto, como prometido à cozinheira, desafiei meu instinto parauara e fui à casa de meus avós levar uma fatia do industrializado “bolo de caixa” que minha mãe fazia em seus dias de bom humor.
Chegando lá, com a impressionante jovialidade habitual, meu avô recebera-me com um sorriso sincero, questionando-me em seguida:
– Que fazes aqui essa hora?
Respondi-lhe meu objetivo de maneira fugaz e adentrei na residência de classe média.
Vasculhei toda casa atrás da amorosa matriarca, porém, logo descobri de sua ausência – fora passar alguns dias na casa da irmã. Retornei ao pátio e sentei-me na relaxante cadeira de balanço encrustada de suor sedentário.
Meu avô, logo puxou conversa. Falamos sobre futebol, política e sobre a Universidade. Em tom choroso, relatei as dificuldades do ensino superior tais como a excessiva quantidade de trabalhos acadêmicos e o temor à ardilosa reprovação. E assim ficamos, em um diálogo paulatino, tão lento quanto o movimento das nuvens carregadas de chuva frontal. E não demorou a cair a tempestade. Ela varria toda lama putrefata do carente sistema de saneamento básico citadino e levava a última gota de esperança do gostoso “soninho” vespertino.
Lado a lado com o patriarca, instiguei em um assunto qualquer, as memórias da vida do velho marinheiro. Suas aventuras e mentiras deixariam até Luís de Camões impressionado. E ele ia relatando, orgulhoso e emocionado, suas picardias de outrora, regadas à boemia, meretrício e serestas. O tempo passava, mas a chuva torrencial sequer atenuava. Suas lembranças, contudo, gradualmente iam se esvaindo e calando o experiente aventureiro, até que me lembrei e o indaguei sobre o tema de uma reveladora aula de história que havia assistido na semana anterior:
– Vô, como era Belém na época da Ditadura Militar?
Após um longo suspiro e um sarcástico movimento de negação, com entonação divergente do homem tranquilo, ele proferiu a frase recordada por mim um ano depois, numa sexta-feira igualmente chuvosa, em que o heroico teatro paraense reverberava seus preceitos políticos.
Parte II
A logística do local de encenação, devo admitir, era completamente desfavorável para um morador de Ananindeua. Mas, a insaciável curiosidade falara mais alto. Cheguei cedo como de costume e presenciei o típico e prejudicial atraso da maioria dos espetáculos paraenses.
Pela proposta, fui induzido a sentar ao chão da sala do recinto chamado “A Casa da Atriz”, local onde se realizou a encenação. A cenografia, simples, mais impecável, criou com perfeição, a atmosfera precária dos porões da ditadura. Tudo, era de um realismo avassalador. Os atores, excessivamente emocionados, erravam constantemente suas falas – detalhe passível de ser corrigido às próximas apresentações. Contavam de forma não necessariamente linear a relação abrupta entre Carlos – preso político – e seu torturador, não denominado. Em meio a história do fatídico destino de Carlos, o roteiro propiciava intervenções de alto teor ideológico. Os personagens digladiavam suas verdades. Um entoava a liberdade, condenava a repressão e a idolatria contemporânea aos representantes da opressão; o outro, acentuava o [psêudo]progresso, a segurança e o “combate ao comunismo”. Um falava sobre “ditadura militar”; o outro, sobre “regime militar”. Nesse momento, o posicionamento do austero torturador personificou, em meu imaginário, a reação daquele velho marinheiro ao ser questionado sobre a ditadura em solo belenense naquela tarde de chuva incessante de um dia alheio do ano supracitado.
– Não houve ditadura, houve regime militar!
Foram as palavras do tácito marujo em fala segura. Tal como Carlos e o torturador, eu e meu avô iniciamos um embate político-ideológico. Pertencíamos a diferentes gerações e visões-de-mundo. De um lado, eu, jovem aluno de História, almejado diariamente por aspirações revolucionárias e por leituras referentes às aplicações do autoritarismo no Brasil (e no mundo); de outro, meu avô, educado pelas forças armadas e defensor fervoroso da intervenção militar.
Ao fim daquela tenebrosa chuva, terminamos nossa discussão. Não houve vencedor. Ele continuava crendo na ditadura como salvadora da pátria, e eu, impregnado pelas justificativas históricas, tentando convencê-lo do contrário. Após despedida cordial, dirigi-me à minha casa e segui a vida. Entretanto, há uma grande barreira entre a minha história e a de Carlos. Carlos (assim como muitos), não pôde voltar para casa e para sua família; se questionou o regime, encarou o medo, a tortura e a morte.
Em suma, a grandiosidade de Falando das Flores não condiz com sua incipiente divulgação e seu reduzido espaço cenográfico. Sua mensagem extrapola os limites da “Casa da Atriz ”e deve, acima de tudo, ser difundida e perpassada entre as novas e futuras gerações.
7 de maio de 2017.

Ficha técnica:
Montagem teatral:
Falando Sobre Flores
Direção:
Karine Janses
Dramaturgia:
Renan Coelho
Atores:
Renan Coelho e Demi Araújo
Iluminação:
Luciana Porto
Sonoplastia:
Jairo dos Anjos
Aderecista:

João Calado

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