Montagem
teatral: Falando de Flores
Autor da crítica: Diego
Maia da Costa: graduando em História na Universidade Federal do Pará e aluno do
minicurso de crítica teatral “O que pode uma crítica teatral? ”
Parte I
Era um fim de semana qualquer de 2016. A tarde nublada
incentivava o cochilo do pós-açaí. Entretanto, como prometido à cozinheira,
desafiei meu instinto parauara e fui à casa de meus avós levar uma fatia do
industrializado “bolo de caixa” que minha mãe fazia em seus dias de bom humor.
Chegando lá, com a impressionante jovialidade
habitual, meu avô recebera-me com um sorriso sincero, questionando-me em seguida:
– Que fazes aqui essa hora?
Respondi-lhe meu objetivo de maneira fugaz e adentrei
na residência de classe média.
Vasculhei toda casa atrás da amorosa matriarca, porém,
logo descobri de sua ausência – fora passar alguns dias na casa da irmã.
Retornei ao pátio e sentei-me na relaxante cadeira de balanço encrustada de
suor sedentário.
Meu avô, logo puxou conversa. Falamos sobre futebol,
política e sobre a Universidade. Em tom choroso, relatei as dificuldades do
ensino superior tais como a excessiva quantidade de trabalhos acadêmicos e o
temor à ardilosa reprovação. E assim ficamos, em um diálogo paulatino, tão
lento quanto o movimento das nuvens carregadas de chuva frontal. E não demorou
a cair a tempestade. Ela varria toda lama putrefata do carente sistema de
saneamento básico citadino e levava a última gota de esperança do gostoso
“soninho” vespertino.
Lado a lado com o patriarca, instiguei em um assunto
qualquer, as memórias da vida do velho marinheiro. Suas aventuras e mentiras
deixariam até Luís de Camões impressionado. E ele ia relatando, orgulhoso e
emocionado, suas picardias de outrora, regadas à boemia, meretrício e serestas.
O tempo passava, mas a chuva torrencial sequer atenuava. Suas lembranças,
contudo, gradualmente iam se esvaindo e calando o experiente aventureiro, até que
me lembrei e o indaguei sobre o tema de uma reveladora aula de história que havia
assistido na semana anterior:
– Vô, como era Belém na época da Ditadura Militar?
Após um longo suspiro e um sarcástico movimento de
negação, com entonação divergente do homem tranquilo, ele proferiu a frase
recordada por mim um ano depois, numa sexta-feira igualmente chuvosa, em que o
heroico teatro paraense reverberava seus preceitos políticos.
Parte II
A
logística do local de encenação, devo admitir, era completamente desfavorável
para um morador de Ananindeua. Mas, a insaciável curiosidade falara mais alto.
Cheguei cedo como de costume e presenciei o típico e prejudicial atraso da
maioria dos espetáculos paraenses.
Pela
proposta, fui induzido a sentar ao chão da sala do recinto chamado “A Casa da
Atriz”, local onde se realizou a encenação. A cenografia, simples, mais
impecável, criou com perfeição, a atmosfera precária dos porões da ditadura. Tudo,
era de um realismo avassalador. Os atores, excessivamente emocionados, erravam
constantemente suas falas – detalhe passível de ser corrigido às próximas
apresentações. Contavam de forma não necessariamente linear a relação abrupta entre
Carlos – preso político – e seu torturador, não denominado. Em meio a história
do fatídico destino de Carlos, o roteiro propiciava intervenções de alto teor
ideológico. Os personagens digladiavam suas verdades. Um entoava a liberdade,
condenava a repressão e a idolatria contemporânea aos representantes da opressão;
o outro, acentuava o [psêudo]progresso, a segurança e o “combate ao comunismo”.
Um falava sobre “ditadura militar”; o outro, sobre “regime militar”. Nesse momento,
o posicionamento do austero torturador personificou, em meu imaginário, a
reação daquele velho marinheiro ao ser questionado sobre a ditadura em solo
belenense naquela tarde de chuva incessante de um dia alheio do ano
supracitado.
–
Não houve ditadura, houve regime militar!
Foram
as palavras do tácito marujo em fala segura. Tal como Carlos e o torturador, eu
e meu avô iniciamos um embate político-ideológico. Pertencíamos a diferentes
gerações e visões-de-mundo. De um lado, eu, jovem aluno de História, almejado
diariamente por aspirações revolucionárias e por leituras referentes às aplicações
do autoritarismo no Brasil (e no mundo); de outro, meu avô, educado pelas
forças armadas e defensor fervoroso da intervenção militar.
Ao
fim daquela tenebrosa chuva, terminamos nossa discussão. Não houve vencedor.
Ele continuava crendo na ditadura como salvadora da pátria, e eu, impregnado
pelas justificativas históricas, tentando convencê-lo do contrário. Após
despedida cordial, dirigi-me à minha casa e segui a vida. Entretanto, há uma
grande barreira entre a minha história e a de Carlos. Carlos (assim como
muitos), não pôde voltar para casa e para sua família; se questionou o regime,
encarou o medo, a tortura e a morte.
Em
suma, a grandiosidade de Falando das
Flores não condiz com sua incipiente divulgação e seu reduzido espaço
cenográfico. Sua mensagem extrapola os limites da “Casa da Atriz ”e deve, acima
de tudo, ser difundida e perpassada entre as novas e futuras gerações.
7
de maio de 2017.
Ficha
técnica:
Montagem
teatral:
Falando
Sobre Flores
Direção:
Karine
Janses
Dramaturgia:
Renan
Coelho
Atores:
Renan
Coelho e Demi Araújo
Iluminação:
Luciana
Porto
Sonoplastia:
Jairo
dos Anjos
Aderecista:
João
Calado
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