sábado, 1 de abril de 2017

Oh! Que desgraça nossa, ou minha? – Por Edson Fernando

Montagem Teatral: “Biedermann e os Incendiários”
Montagem resultado dos cursos técnicos de Figurino, Teatro e Cenografia da Escola de Teatro e Dança da UFPA.
Autor da crítica: Edson Fernando. Ator e diretor teatral. Coordenador do projeto de Extensão TRIBUNA DO CRETINO.

Biedermann Pretérito
Seu nome é Gottlieb Biedermann, cidadão de uma grande cidade localizada em terras distantes, mas bem próxima de todas as capitais do centro do mundo. Homem de negócios, o Sr. Biedermann ostenta posição de respeito em sua sociedade e, por ela, zela com enérgica determinação, defendendo a moral e os bons costumes. Austero e cheio de convicções, é esposo de Babette e possui uma personalidade controversa, pois, se por um lado é capaz de demitir com requintes de crueldade qualquer funcionário, pelos motivos mais estapafúrdios, por outro é incapaz de deixar ao relento qualquer miserável maltrapilho que bata à sua porta em busca de ajuda. Os traumas gerados pela passagem do Exército da Escuridão ainda são possíveis de serem percebidos no mundo em que o Sr. Bierdermann vive: a perplexidade diante do aroma de carne humana queimada nos fornos crematórios das agências de defenestração do estado, o extermínio dos impuros e o projeto de hegemonia do Clã da Escuridão. Tempos sangrentos onde cidades, estados e até nações inteiras ruíram, tombaram ou ficaram de joelhos diante do genocídio em marcha pelo mundo. E cidadãos como Sr. Biedermann se viram enredados pelo combate entre potências militares armadas até os dentes e dispostas a implodir o planeta. Estabelecida a derrota do Exército da Escuridão o mundo se coloriu de Azul e Vermelho, uma espécie de carnaval bicolor, insólito e imiscível. E embora o mundo celebrasse o fim das trevas saudando com certa efusão o samba do Saci-Pererê, que naquele momento substituía o pagode no escuro, o clima de medo, tensão e pânico ainda eram presentes diante das incertezas e passionalidades de ambos os blocos carnavalescos: Vermelhistas e Azulistas. O mundo se via dividido, então, entre extremo opostos muito bem identificáveis, uma espécie de Tai Chi às avessas estabelecendo contornos e formas bem distintas, impenetráveis; fronteiras palpáveis entre territórios de natureza antitéticos: vermelhistas e azulistas, opressitas e oprimidistas, bomsistas e malistas, burguesistas e proletaristas, bombeiros e incendiários. É este o lugar onde o Sr. Biedermann habita e, por isso talvez, o sem sentido de sua personalidade social controversa oscilar entre paralelos estranhos e inusitados. Ele teme as chamas incendiárias que a toda instante se apresentam como ameaças inexoráveis ao seu patrimônio, a sua moral, à sua cultura. De sua janela é possível perceber o clarão de bairros inteiros em chamas. De sua casa é possível escutar o ronco das sirenes dos bombeiros alardeando o combate incansável aos focos de incêndio. De sua casa é possível constatar a luta incessante para se manter o que está posto, estabelecido, convencionado. Sua casa é a sede da nova tradição, o lugar que guarda o legado de uma gente que se distingui pela acumulação, pelo princípio do “ter” que desbanca com eficiência a filosofia hamelet-parmenidiana do “ser ou não ser”. A casa do Sr. Biedermann torna-se, por tudo isso, o alvo ideal para a ação incendiária de Schmitz, Eisenring e Phil.  – Oh! Que desgraça a dele: possui todos os indícios de que não se tratam de pessoas confiáveis, possui todos os indícios de que são incendiários e mesmo assim  abriga-os, tolera-os em sua casa e, ainda por cima, fornecer-lhes o fósforo.   
Biedermann Hodierno
Seu nome é Gottlieb Biedermann. Depois que o mundo perdeu o centro, reside em terras muito distantes, numa cidade próxima de qualquer outro lugar que se possa imaginar. Atua no ramo da indústria da beleza, com influencia e controle dos mercados feminino e masculino. Seu prestígio e notoriedade lhe alavancaram a carreira política, embora não tenha nenhuma vocação para tratar dos bens e interesses públicos. Orador de primeira grandeza e convicto apologista da moral e dos bons costumes, professa com eloqüência os valores da família e da religião; condena e censura com veemência as condutas por ele consideradas “depravadas” e todo e qualquer tipo de pederastia. Oculta, no entanto, uma vida libertina e devassa capaz de fazer arrepiar os pelos púbicos do ânus do Satanás. Após a queda da muralha vermelha o mundo se transformou num grande carnaval de cores e sabores. E embora à primeira vista os Azulistas tivessem levado a melhor sobre os Vermelhistas, o bloco dos Binladistas tratou de compensar a paisagem do mundo realizando o grande e nefasto action painting da história, munidos de uma paleta de cores fortes e intensas arremessadas, sem nenhuma delicadeza, por sobre as telas gêmeas. Foi o suficiente para reordenar o carnaval no mundo. A partir de então, a diversidade de cores e sabores experimentaria seu maior vigor: um arco-íris de prazeres e dores atravessou o mundo; gritos de gozo, berros de indignação se misturaram na grande Sapucaí mundial; no alarido, se confundem as vozes de comemoração e cobrança por direitos ainda muito distantes de serem alcançados. Mas a contra ofensiva é instantânea e logo, o bloco da moral acinzentada arregimenta seus pares, colocam a bíblia debaixo do braço e rumam como cavaleiros do apocalipse no reino da Távola do demônio. Este é o lugar onde o Sr. Biedermann habita. É um lugar sem fronteiras, ou melhor, as fronteiras foram diluídas, assim como diluídas foram as pessoas, os sentimentos, os movimentos sociais, as relações, as subjetividades, as identidades, a humanidade. E talvez por isso tudo, o Sr. Biedermann possua esta personalidade social ambígua, hipócrita, demagógica que oscila entre paralelos estranhos e inusitados: o arco-íris dos prazeres e o cinza da moral estúpida e espúria. O Sr. Biedermann teme as chamas incendiárias que continuam rondando seu bairro, sua casa. Mas o Sr. Biedermann não sabe ao certo de onde elas vêm, pois ora ele se vê como bombeiro, ora como incendiário dos próprios valores que professa; parece tratar-se agora de uma espécie de chama camaleônica que só se revela no momento oportuno. O que dizer dos incendiários, então? Um tipinho de gente que possui gasolina na língua e nenhum fósforo no coração. Estão dispostos a incendiar as bandeiras alheias, desde que a sua seja resguardada. Dada sua natureza líquida, os incendiários carregam várias bandeiras e seu hálito de gasolina é propenso a cizânias irreversíveis no seio do seu próprio exército. De tão vorazes no intento da combustão, se arremessam numa tática kamikaze que invariavelmente dispensa os serviços dos bombeiros. O Sr. Biedermann se olha no espelho e vê a chama demoníaca e o chapéu do bombeiro. Da sua janela ouve as sirenes dos bombeiros comemorando o controle do fogo sem muitos esforços, quase sem nenhuma baixa. A casa do Sr. Biedermann acolhe, por tudo isso, a ação incendiária de Schmitz, Eisenring e Phil, pois os três conhecem a natureza demoníaca da chama de Biedermann, e ele por sua vez sabe que a fogo dos três incendiários é coisa quase inofensiva, dado sua natureza kamikaze.  – Oh! Que desgraça a dele: ele possui o fósforo para acender o fogo que consumirá e dará fim as bandeiras hipócritas e demagógicas que precisa balançar, mas conta somente com o apoio de três incendiários kamikazes que jamais conseguirão tocar fogo no circo antes que as próprias chamas os aniquilem.       
O desafio da atualização dos clássicos
 Um dos problemas que mais me inquieta – seja como artista ou como espectador – quando me deparo com uma obra teatral clássica é o alcance de sua atualização, isto é, a contextualização da obra original em acordo com a conjuntura na qual os artistas estão envolvidos. Não se trata de fazer adaptações no original, agregando gírias, neologismos ou outros genéricos da língua oral ou escrita, muito menos recorrer a caracterizações estereotipadas a partir de associações triviais com os papeis sociais da sociedade atual. Trata-se sim de um olhar crítico que consiga alcançar a alegoria da obra original para, então, estabelecer um processo dialético no qual se articule os elementos que proporcionarão a recriação da mesma alegoria, mas num outro contexto, em uma nova conjuntura. Considero, portanto, atualizar uma obra teatral clássica um dos mais provocantes e excitantes desafios num processo criativo.
“Biedermann e os Incendiários”, do escritor suíço Max Frish é uma dessas obras que, embora com poucos anos de vida, já desponta como um clássico teatral. A peça que foi escrita na década de 50 do século passado, já se tornou obra de reconhecida referencia dramatúrgica, seja pela relevância do tema abordado – as questões existencialistas colocadas ao homem no período imediato ao fim da segunda guerra mundial, na Europa –, seja pelo formato que o escritor utiliza para desenvolver o tema – uma espécie de teatro épico sem comprometimento didático, distinto do empreendimento de Bertolt Brecht, com ênfase na paródia e nos contornos dos elementos absurdos. Creio que a montagem teatral desta peça, apresentada pelos alunos dos cursos técnicos de Figurino, Teatro e Cenografia da Escola de Teatro e Dança da UFPA vislumbre o desafio de atualizar este clássico sem, no entanto, se comprometer em alcançá-lo.
O que observo no desenvolvimento do trabalho da grande equipe envolvida nesta montagem é o exercício da linguagem teatral, um esforço para oferecer aos artistas em formação um espaço, ainda que precário, para o exercício de seu futuro ofício. E não poderia ser diferente, pois um curso técnico não demanda o tempo necessário para se investir numa pesquisa aprofundada que resultasse numa atualização do Biedermann, de Frish. Estimo que o tempo para uma pesquisa de tal magnitude demande, no mínimo, um ano de trabalho ininterrupto, um disparate se comparado com os míseros quatro meses de trabalho que os cursos técnicos reservam para suas montagens teatrais. – Oh, que desgraça a nossa: nos rendemos a lógica tecnicista do mercado das artes, na qual não há espaço e nem tempo para maturação das obras, para a sedimentação da obra crítica, explosiva e incendiária. Estamos fadados ao exercício da linguagem teatral na sua dimensão formal, dimensão na qual o trabalho do artista se volta para o acabamento de um produto a ser consumido como entretenimento.     
Alguém tem um fósforo?
01 de Abril de 2017.      

Ficha Técnica:
“Biedermann e os Incendiários”
Atuação:
Alunos do 1º ano do Curso Técnico em Teatro
Aj Takashi, Bonelly Pignatário, Brendon Mac, Enoque Marinho, Enoque Paulino, Hudson dos Passos, Igor Moura, Jeff Moraes, Joed Caldas, Karla Almeida, Lane Sena, Loba Rodrigues, Luana Oliveira, Lucas de Castro, Marina Lamarão, Marina Moreira, Marvin Muniz, Romana Melo, Ruber Sarmento, Sandrinha Wellem, Sônia Kasamy, Ysamy Charchar, Yuri Granha.
Figurino:
Alunos do 1º e 2º anos do Curso Técnico em Figurino Cênico.
Figurinistas:
Alessandra Viana, Analuz Marinho, Christie Monteiro, Lúcia Almeida, Mayla Serrão.
Assistente de Figurino:
Daniel Gomes, Diogo Richier, Iara Mendonça, Isabella Valentina, Marcus Lima, Mônica Pinheiro, Orcideia Ferreira, Yan Almeida.
Cenografia: Alunos do 1º e 2º anos do Curso Técnico em Cenografia.
Cenografia e Iluminação:
Francelino Mesquita, Hildo Almeida, Everson Costa.
Assistente de cenografia e contrarregragem:
Anne Loureiro, Bolyvar Melo, Jean Cardoso, Kleber Dumerval, Léo Andrade, Waldir Lisboa.
Coordenação de Figurino e Cenografia:
Adriana Cruz.
Coordenação de Iluminação:
Tarik Coelho.
Direção/Encenação:
Denis Bezerra, Karine Jansen, Renan Delmontt.
Arte Gráfica:
Aj Takashi.


2 comentários:

  1. excelente texto. porém, tenho para mim que as limitações da prática de montagem não são inerentes a ela, e sim que os realizadores delas, como biedermann, muitas vezes dão o fósforo para queimar a própria casa, constroem sua própria desgraça. como em qualquer outro processo, longo ou curto, começa-se do zero, não se começa já atrasado, e o que se constrói é a resultante do que escolhemos investir. se a obra é "complexa" e não se pode dar conta dela, escolha-se outra, que permita ser incendiada no prazo dado. do contrário, é passar o recibo de estar fazendo teatro por fazer. um abraço, edson!

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  2. Obrigado pelas reflexões Arthur. Pensar e repensar sobre nossas práticas é preciso. Abraços.

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