Montagem Teatral: A Vingança de Ringo
Palhaços Trovadores
Autor
da Crítica: Edson Fernando: Ator e Diretor Teatral; Coordenador do Projeto
TRIBUNA DO CRETINO.
A atmosfera do lugar
lembra as tabernas e baiúcas freqüentadas por meu pai no início dos anos
oitenta. Ainda não havia completado dez anos de idade e adorava acompanhá-lo até
a loja maçônica localizada na travessa Padre Eutíquio, bem do lado da Mesbla. O
programa acontecia, com certa regularidade, aos domingos pela manhã quando,
então, caminhávamos de nossa casa, no Jurunas, até o imponente prédio da maçonaria,
local onde papai fazia “bico” de serviços gerais. No trajeto, eu,
entusiasmadamente, catava tampinhas de garrafas de cerveja e refrigerante pra
minha coleção – cheguei a acumular cerca de mil tampinhas no auge da coleção. Algumas
vezes meu irmão, três anos mais novo, ia junto e o passeio ficava ainda mais
divertido, pois brincávamos nas dependências da maçonaria: jogávamos bola na
frente da loja; brincávamos de “pira mãe” pelos imensos corredores; usávamos o
aparelho telefônico pra saber a hora certa discando pro 130; sentávamos naquelas
imensas cadeiras de madeira com estufado vermelho que mais pareciam um trono; duelávamos
com as pesadíssimas espadas de metal que ficavam embainhadas no centro das
cadeiras; e morríamos de medo dos crânios espalhados pelos vários cômodos da
loja. O banho de mangueira no quintal da loja anunciava que o dia de
brincadeiras chegava ao fim. O retorno pra casa também era feito a pé, mas o
percurso era cumprido com paradas obrigatórias nos diversos botecos espalhados
pelo caminho. Exímio degustador de uma “branquinha”, papai parava e se
congratulava com os amigos, erguia o copo com dois dedos de “tatuzinho” e
brindava em saudação à vida. Meu irmão e eu matávamos a sede com um guaraná Taí
e ainda éramos acarinhados com balas soft, bombons de leite, chocolate Surpresa,
Ploc Gigante, Pirocóptero, bombons Lollo e/ou jujubas. Naquela época nem desconfiava
se tratar de uma estratégia pedagógica de meu pai para que não contássemos nada
sobre suas bebericagens pra mamãe. Inevitavelmente a estratégia falhava, pois, embora
nos mantivéssemos reticentes sobre o assunto, o cheiro flagrante de pinga e a fala
arrastada denunciavam o ato bebunico de papai.
Estas reminiscências me
foram trazidas por ocasião de minha passagem pelo “Buteco do Matias”. O proprietário do estabelecimento, o seu Matias,
guarda certa semelhança com o dono de uma taberninha que ficava localizada na Apinagés,
defronte da São Silvestre – fronteira do Jurunas com a Batista Campos. Falo da baiúca
do seu Guíto, que de tão vagabunda sequer possuía placa com o nome da venda.
Papai simplesmente falava que passaríamos pela taberna do Guíto, antes de
chegar em casa. Tal como o seu Matias, o seu Guíto tinha aquele andar de homem
brabo, cara fechada de poucos amigos e não costumava ficar de papo furado atrás
do balcão. Por algum motivo que desconheço, meu pai tinha crédito na casa, o
que lhe garantia as “meiotinhas” de “tatu” fiado; tudo era anotado num caderno de
capa dura seboso contendo as informações das dívidas dos papudinhos. O chão e
as paredes do lugar eram de madeira, sem cor, sem pintura, um pouco sem vida. Nas
prateleiras por trás do balcão, enfileiravam-se garrafas de Tatuzinho,
Cortezano, Velho Barreiro, 51, Dom Bosco, Pirassununga, Pitú e algumas outras bebidas.
Em cima do balcão uma balança Filizola vermelha, caraquenta e um baleiro
recheado com diversos bombons. A paisagem daquela taberna de outrora, de alguma
forma, foi evocada pelo Buteco do Matias,
lugar despojado, também com pouca cor e de ambiente bastante rudimentar.
Resolvi ir até lá pra
distrair, relaxar a cabeça, enfim, esquecer que o país está sendo tomado de
assalto por uma quadrilha multipartidária que todos os dias faz troça da nossa
cara ao usar o seu foro privilegiado pra escapar da lei. O Buteco do Matias, neste sentido, me parecia o lugar ideal para
escapar deste mundo dos infernos, tomar quem sabe uma “branquinha” em homenagem
ao papai e, de quebra, encontrar uma boa companhia para esquentar a costela pelo
resto da noite chuvosa de sexta-feira. Quando entro no estabelecimento, seu
Matais, com seu jeitão de sempre, curte uma balada ao estilo de filmes de Bang Bang, que imediatamente me remete a
vinheta de abertura da Patrulha da Cidade, da rádio marajoara. É a deixa pra eu
ficar esperto, ficar ligado, pois assim como nas tabernas do Jurunas – de ontem
e de hoje –, os freqüentadores deste ambiente não brincam em serviço. Puxo um
banco pro cantinho da sala, me encosto na parede e sento com as pernas bem
apertas e com a coluna arqueada displicentemente; coloco um palito de fósforo no
canto da boca e fico chupando-o. É minha tentativa de me integrar ao ambiente. Seu
Matias me fita de soslaio sem trocar uma palavra; é o sinal de que estou harmonizado
com o lugar. Tudo que me resta agora é apreciar. Meu desejo de permanecer ali
quieto e curtir o lugar é interrompido pela Cantora. Putz! Penso eu,
suspeitando ser uma daquelas que adoram cantarolar enquanto bebe. A bebida,
aliás, parece revelar a alma dos autênticos poetas de botequins. Papai conhecia
e era parceiro de copo de alguns desses genuínos trovadores de alambique. Certa
vez, numa dessas andanças com meu pai, testemunhei a jocosa cena envolvendo o
senhor Alípio Martins. Dono de composições clássicas do cancioneiro brega-romântico-cafona-piegas,
Alípio considerava-se um autêntico amante profissional, capaz de rivalizar com
Dom Juan. Tal opinião não era partilhada, no entanto, por seus parceiros de
copo e muito menos pelas moças de fino trato da época. Dispostos a lhe mostrar
a realidade dos fatos, os amigos, dentre eles meu pai, o desafiaram a
presentear a primeira moça que passasse pela porta do bar, com um LP de sua
autoria. Com a face ruborizada pelo excesso de cachaça já entornada, Alípio não
se fez de rogado e prontamente sacou um “bolachudo” de sua bolsa de couro,
autografou o LP que trazia seu rosto estampado na capa e se dirigiu até a porta
do boteco com passos que ele julgava serem da maior galhardia. Parou diante da
porta e quando avistou a “boazuda” se aproximando, olhou pra trás na direção do
balcão do boteco, piscou sinicamente pros amigos e partir para dar o bote. Tropicou,
no entanto, no piso irregular da calçada vindo a se estatelar no chão; o LP voou
e aterrissou pra dentro do bueiro que estava com a boca aberta. Imediatamente levou
uma sonora vaia dos colegas bebuns; a moça “boazuda”, assustada, atravessou a
rua ignorando por completo o decaído Dom Juan. Confesso que na hora fui tomado por
uma terrível sensação de pena e vergonha alheia, mas hoje fico pensando se isso
não seria uma espécie de conspiração do universo pregando uma peça no autor da
canção “Tira a calcinha”. Fiquei torcendo pra Cantora presente no Buteco do Matias, ter a mesma sorte. A
desgraçada, no entanto, se manteve firme até o fim e parece que quanto mais
bebia, mais segura de si e do espaço ela ficava, entoando canções bebunicas que
encadeavam as ações que se passavam naquele lugar.
Continuei quietinho ali
no meu canto, com o fósforo no canto da boca, observando o desenrolar dos
acontecimentos. O Apresentador parecia o mais entusiasmado com tudo que se
passava. Seu modo de falar andar e agir pareciam tão céleres quanto às
providências municipais e estaduais para resolver o problema do lixão de
Marituba. E aquela cara de cachorro São Bernardo arrependido quase me fez
engolir o fósforo de tanto rir. Mas controlei o ímpeto para não chamar muita
atenção dos demais convivas do lugar. Do
meu baquinho, então, fui observando que aquelas figuras que freqüentavam o Buteco do Matias não me eram estranhas,
já os vi por outras paragens, por outros caminhos, por outras trovas. Estão sem
cor, mas muito mais vibrantes, mais vigorosos e afinados entre si. O duelo que
travam no Buteco não se deixa levar
pela sedução do riso incontinente e a qualquer custo. Como numa boa peleja cada
um dos combatentes sabe que a vida ou a morte depende do tempo certo, do gesto
no momento certo – nem antes e nem depois –, do movimento preciso e econômico,
da partitura limpa e bem executada como numa orquestra de oito cordas. O papel
do maestro, neste caso, é fundamental, pois é ele quem afina o conjunto da
obra.
Ajeito-me no meu
banquinho e penso se não seria esse um excelente caminho para continuar percorrendo,
visitando talvez outros “butecos”, outras “tabernas”, mas com a mesma orquestra
em concerto. Ouvindo a harmonia e evolução particular dos eventos do Buteco do Matias, inevitavelmente me
sinto novamente na companhia de meu pai, mas desta vez na sala de casa, num final
de tarde de domingo, deitados na rede, na frente da televisão. Assistimos e nos
divertimos muito com as peripécias de um dos maiores grupos de comediantes que
o Brasil já produziu: Os Trapalhões. Lembrem-se que ainda não completei dez
anos de idade e, portanto, ainda temos toda a vitalidade e frescor cômico de
todos os quatro integrantes originas do grupo: Didi, Dedé, Mussum e Zacarias. Papai
encontra-se sóbrio e comemora o desenrolar de cada quadro do grupo de
comediantes com a interjeição efusiva: Tera-te!!! Eu e meu irmão mais novo caímos
na gargalhada com os esquetes mais surreais daquele tempo.
Todas estas reminiscências
me dão coragem para falar com seu Matias. Levanto-me, cuspo o fósforo e vou em
direção ao balcão. Desferindo um sonoro murro, exclamo:
– Me serve uma “meiota”!!!
Hoje vou beber em homenagem a meu pai!!!
22
de Abril de 2017
Ficha
Técnica:
Montagem teatral:
A vingança de Ringo
Elenco:
Adriano Furtado/Palhaço Geninho
(Juvêncio J Torres/Ringo)
Alessandra Nogueira/Palhaça
Neguinha (Matias)
Cleice Maciel/Palhaça Pipita
(Maria)
Marcelo Villela/Palhaço Tchelo
(Corisco)
Marcelo David/Palhaço Feijão
(Cachimbinho)
Suani Correa/Palhaça Aurora
(Cangaceiro)
Rosana Darwich/Palhaça Bromélia
(Cantora)
Isac Oliveira/Palhaço Xuxo
(Cangaceiro/Apresentador)
Cenário:
Adriano Furtado
Figurinos
e Adereços:
Aníbal Pacha
Trilha
Sonora:
Marcelo Villela
Efeitos
Sonoros:
Sonia Alão
Produção:
Rosana Darwich e Alessandra
Nogueira
Assistente
de Produção:
Romana Melo
Assessoria
de Imprensa:
Ana Maria Castro
Direção
Geral:
Marton Maués
Nenhum comentário:
Postar um comentário