domingo, 26 de março de 2017

Sobre camelos, rochas, baratas e moluscos – Por Edson Fernando

Edson Fernando: Ator e Diretor Teatral. Coordenador do projeto TRIBUNA DO CRETINO.
Sala 98
“Preciso procurar meu terapeuta”. No meu imaginário havia uma espécie de charme, acompanhado de um tom blasé, um fetiche um tanto adolescente, talvez até um desejo hipocondríaco sedutor em torno da ideia de consultar um psicoterapeuta, ou melhor, uma psicoterapeuta. Embora a ideia me parecesse encantadora, nunca vi muito sentido em procurar uma, pois na minha opinião, tudo se resume em como lidar com as pedras que a vida te dá: ou se carrega, ou se quebra e escolhe os pedaços que convém levar. Desse modo, por mais encantadora que fosse a ideia de deitar em um divã na companhia de um belo par de pernas torneadas, salto agulha preto, saia lápis preta demarcando o exuberante quadril, camisetinha tecido fino branco, sem sutiã, mas com decote generoso e terninho preto; por mais voluptuosa que fosse a idéia de ter aquela voz rouca, pausada e suave, sussurrando os conselhos e/ou recomendações médicas por entre os lábios contornados pelo batom vermelho sexy, traçando o diagnóstico de minhas crises existências; por maior que fosse o deleite de tal fantasia, mantive distância por dois bons motivos simples: por convicção de não precisar de ninguém me dizendo que o tenho que fazer com minha vida; uma consulta desse quilate estava muito distante da realidade que o minha conta bancária permitia.
Determinei, então, que seria autossuficiente e lidaria sozinho com as pedras que a vida me reservasse – pelo menos até engordar minha conta bancária. O problema é que nunca sabemos, ao certo, qual o tamanho das pedras que a vida coloca em nosso caminho. E a certa altura me deparei com um baita pedregulho, um misto de amor, dor, afeto, paixão, mágoa, frustração, carinho, desejo carnal, ódio, tristeza, desilusão, angústia, melancolia, medo, raiva, saudade, solidão. Um coquetel molotov violento de sentimentos que me consumia sem que eu pudesse reagir, sem que eu pudesse conter a causa, sem que eu pudesse mover ou destruir aquela imensa rocha de sufixo Ana. E embora pudesse sentir todo o peso do bloco rígido de concreto sobre minhas costas, tratava-se apenas de um peso fantasma, pois o olhar misterioso, o sorriso enigmático e sua aura de bruxa estavam em terras bem distantes. 
A princípio quis acreditar se tratar de mais uma desilusão amorosa, como tantas outras já vividas na adolescência. E como minha conta bancária ainda não me permitia procurar ajuda de uma psicoterapeuta, investi na tática de dar vazão às lágrimas. E elas vieram em grande quantidade. Por vários dias. Por várias semanas. Decorridos os primeiros meses, percebi um tremor nas mãos, uma espécie de tremedeira que surgia inesperadamente e da qual não conseguia controlar. Depois vieram os pesadelos. No primeiro, minha mãe levou aproximadamente 10 minutos pra conseguir me acordar. Não me lembro de muita coisa, apenas do vulto de um rosto monstruoso vindo em minha direção para, então, acordar dando um grito medonho. Com respiração ofegante, suado e aos prantos, acordei nos braços de minha mãe, tendo a minha frente meus dois irmãos com os olhos perplexos. Naquela noite, depois de mais de vinte anos dormindo sozinho na minha aconchegante rede, procurei asilo na cama da minha mãe. E com a sensação de que alguma coisa ruim estava me espreitando, permaneci acordado até que surgissem os primeiros raios de sol. Pela manhã, tive a certeza de que precisava de ajuda para quebrar aquela rocha. E embora minha conta no banco ainda não me favorecesse, vislumbrei, com certo prazer, a possibilidade de realizar a fantasia da psicoterapeuta sensual.
Sem os recursos financeiros necessários para uma consulta particular, e na condição de estudante da UFPA, recorri ao atendimento público do Departamento de Psicologia da instituição. Fui bem recebido por uma jovem e encantadora estagiária – estudante do curso de Psicologia – que realizou meu cadastro de modo atencioso e afável.  “– É um ótimo indício do que está por vir!” Pensei, sonhando logo encontrar com a figura arrebatadora de minha terapêutica-fantasia. Mas este pensamento logo se desfez quando fui informado, pelo doce sorriso da estagiária, que eu havia entrado na lista de espera. E esperei. Esperei bastante até que pudesse realizar a libidinosa fantasia, único alento que possuía naqueles longos meses que se seguiram, por entre novos pesadelos e crises de choro.
A sabedoria popular diz que o “tempo é o melhor remédio” pra tudo. E então, sem alternativa, deixei o tempo agir sobre o fantasma daquela rocha. Como um camelo no deserto, coloquei a rocha entre as corcovas e segui à procura de meu oásis – minha psicoterapeuta me aguardaria em breve, com seus seios fartos e sua cintura provocante. A passos lentos deixei o tempo agir... no primeiro mês, lutei para colocar a rocha entre as corcovas... no segundo mês, a rocha me feriu as corcovas... no terceiro, as feridas atraíram insetos e parasitas... no quarto, a rocha se cravou entre as corcovas... no quinto, ela se tornou apenas um estorvo... no sexto, transformou-se em couraça... no sétimo, usava-a para desobstruir os obstáculos...   no oitavo, deixei de arrastar os passos... no nono mês, já não conseguia distinguir o que era o camelo e o que era a rocha...
 O comunicado impresso tinha o brasão da universidade. Minha mãe suspeitando se tratar de algo importante tentou violar a correspondência para descobrir sobre seu conteúdo, mas cheguei a tempo de evitar. Era a confirmação da terapia. Finalmente o oásis. Finalmente o divã. Finalmente a psicoterapeuta.
Cheguei pontualmente às 9h00. Apenas aquela porta de divisória modulada nos separava. A maçaneta se move e com ela, todas as minhas expectativas entram em ebulição. A porta se abre sem que eu veja quem a manipula. Entro, e sem que nenhuma palavra fosse proferida um braço e mão robusta direciona o lugar para onde devo me dirigir. Procuro o divã, mas somente encontro uma pequena mesa de madeira com duas cadeiras, também de madeira. A sala não tem janelas, mas ostenta um empoeirado ventilador de teto. Sento. E finalmente ela se senta na cadeira bem à minha frente. Calça jeans, tênis surrado, camiseta com estampa colorida, jaleco branco semi abotoado. Cabelos desgrenhados pretos que descem até pouco abaixo da altura dos ombros. Óculos de grau quadradinho, silhueta generosa nas laterais e um pequeno detalhe por entre os dedos da mão direita: um cigarro. A voz embargada pelos anos de nicotina acumulada no organismo, em fim, dispara a sentença que dá início a terapia: “ – Pode falar!”.
Desapontado com a abordagem pus-me a pensar, e entre o lapso de tempo da pergunta da psicoterapeuta e da resposta que elaborei, refleti sobre o sentido da vida: Qual o sentido de estar ali? Qual o sentido de depositar no outro a responsabilidade por encontrar a resolução para nossos próprios problemas? Qual o sentido de sofrer incomensuravelmente por alguém que já seguiu o seu caminho? O que nos leva a acreditar que somos o camelo e não a rocha?
Absorto nesses pensamentos pus-me a falar sobre o que sentia, com a certeza de que, o que sentia, não fazia mais nenhum sentido, embora continuasse sentido a presença da rocha. Enquanto eu falava, passaram-se mais dois ou três cigarros, algumas anotações num caderno de arame e apenas algumas intervenções como: “– Por que você acha isso?” ou “Por que você não acha isso normal?”. Sai dali me sentindo ridículo. Voltei para mais uma sessão e depois abandonei o tratamento sem dar satisfações.
Meses depois recebi outro comunicado do Departamento de Psicologia dizendo que eu estava “sob a responsabilidade e os cuidados médicos daquela clínica de psicologia”, ao que imediatamente respondi com cópia da carta enviada também ao gabinete do reitor: “Descobri que sou rocha. Cuidem dos camelos!”
      
Sala 17
Sempre achei divertido abordar os assuntos cotidianos com humor e extrair deles pequenas reflexões sobre a vida; reflexões despretensiosas, nada que tornasse a vida ainda mais séria e chata do que ela já é, pois pra isso já existem os filósofos e as mães; reflexões que de tão despretensiosas, passassem quase despercebidas sem que, por outro lado, deixassem de oportunizar o exercício do simples ato do pensamento crítico. Acredito que haja no riso, no humor e no cômico um nobre tipo de reflexão crítica descomprometida de mudar o mudo, de mudar as pessoas, de mudar o ser humano, ou de melhorar a humanidade. A lógica na perspectiva cômica, me parece, não ser aquela que se compromete com “endireitar” o mundo, mas sim aquela que se apropria do que há de mais errado e torto no mundo, tomando isso como matéria prima, mimetizando e trazendo a público um retrato irreverente, satírico, debochado, escrachado, por vezes insolente, petulante, atrevido, caricato, pilhérico, hilário, jocoso, burlesco ou histriônico mostrando a banda podre do mundo e da humanidade. Já cai na armadilha de pensar que o cômico fosse um obstáculo ao pensamento crítico, uma espécie de fiel escudeiro da alienação. Atualmente, consegui entender, felizmente, que o cômico é talvez uma das maiores armas que se pode ter para afrontar um sociedade caótica, hipócrita e moralista como a que temos no Brasil, neste início de século. Talvez por isso mesmo, eu esteja aqui, sentado em seu divã, doutora Nazaré. Vejo que meu ofício ligado ao cômico encontra-se ameaçado ou distorcido por uma visão que pretende lhe imputar todas as responsabilidades do mundo. Tem sido difícil fazer humor quando todos parecem estar vigilantes a procura de um deslize, de um escorregão para que se atire a pecha de “isso” ou “daquilo”, quando na verdade o que se está a fazer é simplesmente “arte”. Eu sei que “arte” é uma palavra esquisita, imprecisa, lacônica, subversiva. Eu sei que o termo pode servir para ocultar ou mascarar crimes repulsivos e graves. Mas, Nazaré: Como seria a vida sem “arte”? Me responde em que período histórico, nós artistas, não fomos tidos como perigosos a ordem das convenções estabelecidas? Me responde se a “arte” pode ser pautada pela “moral” e pelos “bons costumes”? Não fez nenhum sentido, Nazaré. E é por isso, Nazaré que eu não consigo compreender por que alguns trabalhos de teatro da cidade se curvam a “pseudo necessidade” de colocar em suas montagens cômicas ou de entretenimento nonsense a discussão e desenvolvimento de temas caros aos nossos dias. Como se precisássemos estar comprometidos com um ensinamento moral a qualquer custo. Como se precisássemos estar engajados nas pautas e causas sociais de modo didático e pedagógico. Ah, que chato, Nazaré. Parece o Platão expulsando os artistas da república ideal, ou minha mãe me enchendo o saco pra eu comprar uma capa de chuva pra não chegar encharcado em casa. Nazaré me responde uma coisa: Que graça tem andar de bike na chuva, com uma capa de chuva? Não tem graça nenhuma. Agora imagina a bosta da república do Platão sem nenhum artista pra fazer galhofa, pra fazer pilhéria, pra fazer sátira, pra fazer humor. Poxa, Nazaré. Será que simplesmente fazer rir já não é tarefa das mais nobres? Já não é exercitar àquele pensamento crítico de que te falava no inicio dessa sessão? Pois é. Por que perguntar pelo sentido da vida quando o barato está em mimetizar e ridicularizar o sem sentido da bosta desta vida? Mais humor, por favor, Nazaré. Mais “arte”, Nazaré. Na atual conjuntura, eu gosto mesmo é quando tudo descamba pro escracho desmedido, pra tinta forte do deboche, pra caricatura farsesca que revela o rei, a corte e os plebeus, todos nus. Sabe Nazaré, às vezes fico pensando que o Grégor Samsa é quem foi o grande sortudo da humanidade. O cara amanheceu certo dia, com seu DNA alterado e com a possibilidade de perpetuar sua espécie, aconteça o que acontecer com esta bosta de mundo. Salve as Blattodeas, pois elas resistirão a este mundo chato e insosso. E sem a necessidade de uma terapeuta.

Salas: 02, 05, 12, 14
A primeira vez que o vi com aquele terno alinhado, a barba bem aparadinha, o tom de voz mais suave e comedido, quis acreditar que era por uma boa causa, uma estratégia necessária depois de três derrotas consecutivas. O famoso “Lulinha Paz e Amor”, criado por Duda Mendonça, talvez fosse apenas uma peça publicitária inofensiva e necessária para que o primeiro operário chegasse ao topo do poder no Brasil. Olha Fátima, eu te confesso que apesar de ter essa consciência, e de já ter votado nele nas últimas duas vezes anteriores, em 2002 eu votei nele com certa relutância. Sei lá, acho que meu instinto jedi me alertava pra merda que podia dar; sentia o lado negro da força rondando a barba daquele metalúrgico. Confesso também que àquela altura, o voto nulo ainda não me parecia uma boa opção. Então, apertei a tecla 13 no primeiro e no segundo turno das eleições, muito mais com o desejo de deixar o vampiro, José Serra, longe do poder, do que propriamente colocar o Lula no planalto. Mas Fátima, confesso também que no dia da confirmação da sua vitória, fiquei comovido. O país inteiro ficou. Aquele homem do povo, com sua trajetória de trabalhador e militante de partido político, com participação ativa na luta pelo direito dos operários, e ainda por cima com uma oratória capaz de mobilizar e emocionar as massas, também me comoveu. Mas ai veio a formação do primeiro escalação dos ministérios; aquele argumento da governabilidade no congresso nacional, as alianças necessárias, o “toma lá, da cá” de sempre, Fátima. Tava na cara que ia dar merda, Fátima. Se aproximar do Sarney, ACM, Antony Garotinho e Jader Barbalho seria o mesmo que mandar o Anakin Skywalker trabalhar na casa do senador Palpatine. Não ia dar certo. E não demorou. Veio o escândalo do Mensalão em 2005. E o que foi que ele disse, Fátima? Ele disse que NÃO SABIA. Fátima, ele disse que N – Ã –O  SA –BI – A. Oh, santo homem de deus. Ele NÃO SABIA. Eu juro, Fátima que me esforcei pra acreditar nisso, mas já conseguia ver a cor vermelha no sabre de luz dele. Foi a gota d’água, e partir daí fiquei convencido do voto nulo. Era o meu modo de me manter longe daqueles sith. E quando a gente pensa que não pode piorar, Fátima, o que acontece? A famigerada aliança com o PMDB em 2010, entregando de bandeja a vice-presidência do país pra ninguém menos que o sith mor Michel Temer. Veja bem, Fátima, o Michelzinho tava lá, cafungando na cadeira da Dilma desde 2010. O homem era tido como um autêntico jedi, garantiria a “governabilidade” com o bloco de pmdebistas, considerados fieis e leais escudeiros. Égua Fátima. Foi essa gente que subiu no palanque dela, desde 2010. Que comemorou e possibilitou a eleição da primeira mulher PRESIDENTA do Brasil. Caramba Fátima, que mancha maldita na história, heim. Pois é, o Michelzinho tava lá e foi muito bem recebido pela corte de Lula e Dilma. E eu àquela altura, quando já não esperava que nada mais me surpreendesse, tenho o tapete puxado novamente. Os quatro dedinhos de Lula apertando a mão do Mafuf, nas eleições de 2012, foi demais. Sabe Fátima, acho que nunca tinha sentido tanta desilusão, frustração, raiva e nojo ao mesmo tempo. E o pior é que os caras assumem tudo na maior cara de pau, dizendo que isso faz parte do jogo democrático. Puta que o pariu, Fátima. Não dá. Lula apertando a mão do Maluf e arrotando democracia, deu vontade de entrar na Millennium Falcon e me escafeder pra galáxia mais distante possível. Olha Fátima, dizem que errar uma vez é humano, mas errar duas vezes é estupidez das brabas. E eu te pergunto, Fátima: quem era o vice-presidente na chapa da Dilma em 2014? O Michelzinmho de novo. Karaléo!!! De novo o voduzento, Temer. Égua Fátima, te juro que se dependesse só de mim, eu mirava a Estrela da Morte bem na direção do Planalto Central e disparava sem piedade. E agora, Fátima, depois da merda que deu colocar os sith como aliados, esse povinho vermelho vem me falar de GOLPE? Puta que o pariu!!! Desculpa, Fátima, eu detesto usar palavrão, mas PUTA QUE O PARIU!. GOLPE AONDE, KARALÉO!? Depois que o Lula apertou a mão do Maluf, golpe aonde, cara de cu? E o pior de tudo, Fátima, é que diante de todas essas cagadas, eu é quem sou taxado de facista, reacionário, escroto e ainda sou acusado de estar fazendo performance política blasé. Olha Fátima, pra não mandar tomo mundo tomar no Jakku, só mesmo muitas sessões de terapia contigo.
Edson Fernando
26 de Abril de 2017.          
FICHA TÉCNICA
Montagem Teatral: PopPorn
Elenco:
Eliane Flexa, Erllon Viegas, Gisele Guedes, Leonardo Moraes, Rony Hofstatter, Sandra Perlin e Saulo Sisnando.
Participação Especial:
 Drag queen Tiffany Boo e do bailarino Mauro Santos.
Iluminação:
 Sônia Lopes
Sonoplastia:
 Breno Monteiro
Supervisão de Figurinos:
Grazi Ribeiro
Assistência de Direção:
Marina Dahás.
Direção:

Saulo Sisnando

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