Nanda Lima: Psicóloga,
tradutora e interprete em Língua Inglesa. Participante do Minicurso de crítica
teatral “O que pode uma crítica teatral?”
Domingo, 12 de março de
2017, o teatro Margarida Schivasappa apresentou em Belém o espetáculo O Cortiço, livre adaptação em montagem
paraense, com elenco de jovens atores, baseada na obra de Aluísio de Azevedo.
O Cortiço é um marco do
naturalismo brasileiro, uma ramificação radical do Realismo, que retrata a
realidade na sua forma mais natural possível. Isto me remeteu a uma ideia, uma
dúvida, uma inquietação. Ou talvez só mesmo um alerta sobre palavras e as
atitudes que elas imprimem. A compreensão equivocada do que é natural, o que é
normal, o que é comum. Entendo que comum
é o consenso, o comportamento da maioria, altera-se de sociedade para
sociedade, ou até mesmo de grupo social para grupo social. Normal é o que obedece a
norma vigente, este padrão muda mais rápido do que o tempo, o que foi ontem com
certeza não é mais hoje e não o será mais amanhã.
No entanto, o que mais me
chamou a atenção no espetáculo é o termo natural,
que deveria significar o que reza a natureza. E o que de natural tem em O Cortiço? O que é a natureza? O que
ela costuma ser? A natureza desperta um equilíbrio constante, equânime, é
natural ser ambiciosos, querer a mais valia para si, desejar o outro? Ou o
fraterno e humano é mais natural? Para a Literatura o natural é o crescer e
aparecer das nulidades, o agitar do poder nas mãos dos corruptos e indignos, ou
somente seria a interpretação em nós de que somos humanos, e a humanidade e um
‘desapegar-se’ da virtude, rir-se da honra e ter vergonha do honesto?
Mergulhei de cabeça no
mundo que Tiago de Pinho fez questão de nos recordar, ou poderia dizer: cutucar
com a ponta das unhas de seus atores. Uma imersão ao naturalismo brasileiro, de
personagens que sangram e desgraçam qualquer tentativa de virtude entre pobres
e reles mortais. Há um incomodo ao final, um gosto amargo que fica no sorriso
dos presentes.
Veja bem, a
caracterização e a forma de expressão corporal sempre me foram valorizadas, no
entanto os olhos de dor da mulata mal provida e mal falada, a voz pouco ouvida,
pouco falada. As personagens femininas deram um tom cômico-trágico numa fina
ceda. Há arte dentro da arte.
Chamou-me a atenção também
a trilha sonora interpretada por Renata, ao vivo, o samba de raiz com clássicos
como “Isso aqui, o que é?” e “O mundo é um moinho” tomaram o clima ainda mais
intimista e favelesco. Estamos afinal
na baixadas, no reduto, na favela, estamos à mercê da própria sorte, e que belo
encontro entre personagens.
Andei pelos passos de
João Romão com seus olhos ambiciosos e aprumados. Remexi ao longo do rebolado
de Rita Baiana, desvirtuadora de
inocentes ou desveladora de
vicissitudes. Chorei na pele do abuso, o sexo contaminado pela violência e o
descaso público e familiar de Pombinha. A traição a Bertoleza, escrava de nome,
escrava sem refugio, sem fortaleza. Agonizei sob apunhaladas e traições ao que
via o retrato fidedigno das relações internas de uma sociedade hipócrita sob um
olhar realista, natural.
Tiago de Pinho inovou na
construção repaginada dos personagens já celebres, conversando com o público em
pele crua, trazendo à tona as margens de onde se incitaram preconceitos.
Trouxe-nos o que há de mais antigo e mais atual para se discutir. O Cortiço
vive em nós, o meio influencia cada particularidade, cada subjetividade, até
onde nós somos donos de nossas decisões? De nós mesmos?
O público ri, vendo a
sátira da vida, e em momentos lágrimas são controladas em olhos marejados da
plateia, que sempre que pode bate palmas. Os alunos do Studio de Artes Tiago de Pinho deram vazão ao lugar desgraçado,
habitado pelos marginais que ocupam o lugar do natural. E ser natural no Brasil
o que é?
Nanda Lima
20 de Março de 2017
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