terça-feira, 30 de junho de 2015

Pelos olhos de quem?

Edson Fernando: Ator e Diretor Teatral; Professor de Teoria do Teatro da Escola de Teatro e Dança da UFPA. 
Não há duvidas que a iniciativa de reunir um elenco com atores e atrizes com deficiências diversas – baixa visão, surdo, cego, síndrome de down e autista – mostra-se não somente louvável pela esforço de trabalhar poeticamente com estas diferenças, mas também por colocar em pauta, em nossa cidade, a discussão da inclusão. O tema ainda é bastante delicado e cercado de tabus que precisam ser desconstruídos para que se avance de fato na construção de uma sociedade inclusiva. Sabemos que a cidade de Belém está muito distante das implementações necessárias para que isso aconteça e, portanto, todos os esforços no sentido de avançar nas discussões merecem atenção.
O projeto Cena Especial – Teatro Inclusivo, coordenado por Carlos Correia Santos arrogou este desafio e iniciou o debate público sobre a questão com o experimento cênico chamado Pelos olhos dela, montagem cênica que teve curta temporada de apresentações no auditório da FIBRA – Faculdade Integrada Brasil Amazônia. Embora não tenha participado efetiva e completamente da experiência sensorial proposta pelo grupo – somente 40 pessoas participam diretamente do espetáculo dividindo o palco com os atuantes; os primeiros 40 recebem uma venda e acompanham toda a apresentação abstraindo o sentido da visão; os demais são convidados a acompanhar a apresentação de olhos fechados e sentados na platéia do auditório; quando cheguei já haviam esgotados os 40 lugares para participar no palco – me reservo o direito e o dever de repercutir algumas questões que podem contribuir com o tema da inclusão e, consequentemente, com o trabalho do projeto.  
O primeiro aspecto que me provoca inquietação é: por onde devo construir meu discurso crítico sobre o espetáculo, dado sua natureza e atuantes diferenciados? A meu ver, isso me coloca diretamente de frente com um tabu: não se deve ser tão rigoroso em se tratando de artistas-deficientes, posto que a vida já lhes imputou dificuldades naturais a partir de suas deficiências. Avalia-se, portanto, por este tabu, as atividades dos deficientes como inferiores sempre que comparadas as demais pessoas sem deficiência. Seria esse o modo justo de lidar com os deficientes? Não é o que se propõe com a peça escrita e dirigida por Carlos Correia. Observo que o projeto ao se classificar como Teatro Inclusivo, pretende inaugurar uma prática artística que supere este modo distorcido de lidar com os deficientes; incluir por este viés significa considerarmos que eles possuem as mesmas competências para realizar qualquer atividade em nossa sociedade; representar ou atuar no teatro seria uma delas. É obvio que não se deve ignorar a natureza da deficiência, no entanto, não para estabelecer critérios de inferioridade ou superioridade, mas sim de respeito às diferenças e limitações naturais.
Penso que o discurso crítico, desse modo, deve ser estabelecido pelos critérios e referenciais poéticos de qualquer outra criação artística teatral. Julgo que assim estarei desenvolvendo um olhar pela inclusão: incluindo todos os atuantes, deficientes ou não, pelos cânones da crítica teatral, sem fazer nenhum tipo de distinção que inferiorize ou supervalorize Pelos olhos dela. Pretendo evitar com isso juízos que poucos acrescentam ao trabalho dos artistas, pois se fundam numa visão que vitimiza os deficientes.
Estabelecidas estas considerações preliminares, apresento algumas questões para reflexão sobre ou a partir a obra.
Em primeiro lugar, a dramaturgia de Carlos enredasse por um caminho axiomático difícil de ser desconstruído pelos outros elementos sensoriais da encenação; o que temos, ao contrário, é a dramaturgia estabelecendo relação direta com os elementos sensoriais – táteis, sonoros, palatáveis e olfativos – remetendo-os sempre em função da ausência do sentido da visão. Mas que isso, o conflito que move as ações centra-se exatamente na situação de estarmos provisoriamente cegos. Este é o grande mote da peça que certamente pretende nos provocar para a dimensão metafórica da cegueira que nos domina em nossa vida cotidiana – principalmente para a questão dos deficientes. No entanto, o modo como a dramaturgia constrói seu jogo limita-se a repetir o que de fato já sabemos – estamos cegos – e a presumir e projetar as angústias causadas por este estado.
A roda de conversa que se estabelece ao final da peça é esclarecedora, neste sentido, pois nos é revelado que a protagonista, Gabriela Condurú, vivenciou, de fato, o drama retratado pela peça: aos 15 anos a jovem atriz sofreu um descolamento de retina que lhe tirou a visão. Então, não é difícil presumir que o dramaturgo partiu do drama pessoal de Gabriela, propondo-nos vivenciar por alguns instantes a sensação de quem perdeu repentinamente um dos sentidos mais monopolizadores de nossa sociedade, a visão. No entanto, o texto redunda na assertiva da cegueira e dela não consegue se desvencilhar, deixando escapar a oportunidade para explorar a dimensão gesto-sensorial presente nos outros elementos da encenação. Esta, aliás, fica completamente atada pela dramaturgia não escapando da relação óbvia que relega aos espectadores a condição de cegos deste drama.
Por esta perspectiva, soa estranho, e até forçoso, diversos trechos do texto que presumem de modo categórico as sensações de angústia que sentimos por estarmos na condição de cegos. Soa mesmo inverossímil e desproporcional a ênfase dramática do texto, posto sabermos se tratar de situação provisória e previamente consentida. Isso, aliás, poderia ser amenizado se a divulgação do trabalho não revelasse esta condição para participar do mesmo. Ao sabermos que ficaremos com os olhos vendados durante a apresentação da peça, já nos preparamos psicológica e antecipadamente para este momento, fragilizando, portanto, tanto a proposta da encenação quanto a própria dramaturgia. Imaginem o choque dos espectadores se não soubessem antecipadamente desta condição. Arrisco dizer que talvez alguns até desistissem de participar. Particularmente, ao saber desta condição, me preparei para curtir este momento e extrair dele o máximo de sensações prazerosas, como por exemplo, a sensação refrescante dos pingos de chuva banhando a face.             
Aponto outro elemento curioso sobre a dramaturgia: uma espécie de discurso maniqueísta se estabelece ao longo do texto confrontando deficientes e não deficientes. A construção do discurso sobre a cegueira vai se desenvolvendo fazendo esta contraposição, de tal modo, que ao final da peça a ideia que se impõe é que só enxerga o essencial quem é cego; ou que os não deficientes estão incapacitados para alcançar e compreender a dimensão social de quem é cego; ou ainda que o mundo seria bem melhor se todos nós fosses cegos. Mesmo sem negligenciar a dimensão metafórica da cegueira retratada pela dramaturgia, fica a sensação de que este tipo de maniqueísmo de alguma forma apenas inverte os pólos de discussão sobre o tema. Enquanto provocação, esta estratégia parece eficaz, pois nos exige reflexão pelo choque de realidade da inversão dos pólos, mas rasa na perspectiva de construção de um posicionamento holista sobre o tema.     
  Sobre as atuações merece destaque a participação de Gabriela Condurú. A protagonista da peça – que descobrimos no final se tratar da personagem que é a personificação da própria “Vida” – a voz feminina que guia nossa jornada pela escuridão. Sua atuação deixa transparecer um vício comum aos atores iniciantes: o texto é oralizado de modo a valorizar o final das frases, acentuando quase sempre a última silaba. Na gíria do meio teatral dizemos que o texto sai cantado, ocasionando uma espécie de falsificação do que é dito – este vício também pode ser percebido em grande parte do elenco desta montagem. Mas trata-se de um problema técnico, resolvido com bastante leitura e repetição de leitura, exercício para a atuante – e os demais atuantes – se ouvir e disciplinar este modo vicioso de falar. Fora esse, e alguns outros aspectos técnicos, a jovem atriz tem uma carreira promissora pela frente, pois percebo segurança e ritmo na sua atuação, na condução da peça inteira. Justiça seja feita: no trato com o texto o elenco inteiro está de parabéns, pois não deixam o ritmo cair em nenhum momento, garantindo o jogo de ação e reação – fala e resposta – durante toda a apresentação.
Neste aspecto a montagem atinge o que considero mais relevante: universalização das atuações ou, em outras palavras, a superação das diferenças. Explico: durante a apresentação é quase impossível perceber quem é deficiente ou não.  Há uma afinação no jogo com o texto que nos impede de fazer esta distinção. Nem mesmo o poema – se não me engano de Cecília Meireles – que é recitado por Lucas – também se não me engano – consegue ser identificado como recitado por alguém que é autista – deficiência notoriamente ligada ao desenvolvimento da oralidade. Portanto, o ritmo da peça – no trato com o texto – merece os parabéns não por se tratar de um elenco com deficientes, mas por nos fazer superar diferenças por meio da fruição da obra. Dito de outro modo: não é bom por ser feito com deficientes, é bom por ser feito com qualidade artística.
Este me parece ser o lugar emblemático para todos que lidam com o desafio presente no trato da arte-inclusão: superar as diferenças por meio das potencialidades universais da arte. O reencontro por meio da arte nos possibilita despir convenções e preconceitos e nos ata novamente o elemento caro e que tanto nos falta na atualidade: humanidade.   

30.06.2015   

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