Edson Fernando: Ator e Diretor Teatral; Professor de Teoria do Teatro da Escola de Teatro e Dança da UFPA.
Não
há duvidas que a iniciativa de reunir um elenco com atores e atrizes com
deficiências diversas – baixa visão, surdo, cego, síndrome de down e autista – mostra-se não somente
louvável pela esforço de trabalhar poeticamente com estas diferenças, mas também
por colocar em pauta, em nossa cidade, a discussão da inclusão. O tema ainda é
bastante delicado e cercado de tabus que precisam ser desconstruídos para que
se avance de fato na construção de uma sociedade inclusiva. Sabemos que a cidade
de Belém está muito distante das implementações necessárias para que isso
aconteça e, portanto, todos os esforços no sentido de avançar nas discussões
merecem atenção.
O
projeto Cena Especial – Teatro Inclusivo, coordenado por Carlos Correia Santos
arrogou este desafio e iniciou o debate público sobre a questão com o
experimento cênico chamado Pelos olhos
dela, montagem cênica que teve curta temporada de apresentações no
auditório da FIBRA – Faculdade Integrada Brasil Amazônia. Embora não tenha participado
efetiva e completamente da experiência sensorial proposta pelo grupo – somente
40 pessoas participam diretamente do espetáculo dividindo o palco com os
atuantes; os primeiros 40 recebem uma venda e acompanham toda a apresentação
abstraindo o sentido da visão; os demais são convidados a acompanhar a
apresentação de olhos fechados e sentados na platéia do auditório; quando
cheguei já haviam esgotados os 40 lugares para participar no palco – me reservo
o direito e o dever de repercutir algumas questões que podem contribuir com o
tema da inclusão e, consequentemente, com o trabalho do projeto.
O
primeiro aspecto que me provoca inquietação é: por onde devo construir meu
discurso crítico sobre o espetáculo, dado sua natureza e atuantes diferenciados?
A meu ver, isso me coloca diretamente de frente com um tabu: não se deve ser
tão rigoroso em se tratando de artistas-deficientes, posto que a vida já lhes
imputou dificuldades naturais a partir de suas deficiências. Avalia-se,
portanto, por este tabu, as atividades dos deficientes como inferiores sempre
que comparadas as demais pessoas sem deficiência. Seria esse o modo justo de
lidar com os deficientes? Não é o que se propõe com a peça escrita e dirigida
por Carlos Correia. Observo que o projeto ao se classificar como Teatro
Inclusivo, pretende inaugurar uma prática artística que supere este modo
distorcido de lidar com os deficientes; incluir por este viés significa
considerarmos que eles possuem as mesmas competências para realizar qualquer
atividade em nossa sociedade; representar ou atuar no teatro seria uma delas. É
obvio que não se deve ignorar a natureza da deficiência, no entanto, não para
estabelecer critérios de inferioridade ou superioridade, mas sim de respeito às
diferenças e limitações naturais.
Penso
que o discurso crítico, desse modo, deve ser estabelecido pelos critérios e
referenciais poéticos de qualquer outra criação artística teatral. Julgo que
assim estarei desenvolvendo um olhar pela inclusão: incluindo todos os atuantes,
deficientes ou não, pelos cânones da crítica teatral, sem fazer nenhum tipo de
distinção que inferiorize ou supervalorize Pelos
olhos dela. Pretendo evitar com isso juízos que poucos acrescentam ao
trabalho dos artistas, pois se fundam numa visão que vitimiza os deficientes.
Estabelecidas
estas considerações preliminares, apresento algumas questões para reflexão
sobre ou a partir a obra.
Em
primeiro lugar, a dramaturgia de Carlos enredasse por um caminho axiomático difícil
de ser desconstruído pelos outros elementos sensoriais da encenação; o que
temos, ao contrário, é a dramaturgia estabelecendo relação direta com os
elementos sensoriais – táteis, sonoros, palatáveis e olfativos – remetendo-os sempre
em função da ausência do sentido da visão. Mas que isso, o conflito que move as
ações centra-se exatamente na situação de estarmos provisoriamente cegos. Este
é o grande mote da peça que certamente pretende nos provocar para a dimensão
metafórica da cegueira que nos domina em nossa vida cotidiana – principalmente
para a questão dos deficientes. No entanto, o modo como a dramaturgia constrói
seu jogo limita-se a repetir o que de fato já sabemos – estamos cegos – e a
presumir e projetar as angústias causadas por este estado.
A
roda de conversa que se estabelece ao final da peça é esclarecedora, neste
sentido, pois nos é revelado que a protagonista, Gabriela Condurú, vivenciou,
de fato, o drama retratado pela peça: aos 15 anos a jovem atriz sofreu um
descolamento de retina que lhe tirou a visão. Então, não é difícil presumir que
o dramaturgo partiu do drama pessoal de Gabriela, propondo-nos vivenciar por
alguns instantes a sensação de quem perdeu repentinamente um dos sentidos mais
monopolizadores de nossa sociedade, a visão. No entanto, o texto redunda na
assertiva da cegueira e dela não consegue se desvencilhar, deixando escapar a
oportunidade para explorar a dimensão gesto-sensorial presente nos outros
elementos da encenação. Esta, aliás, fica completamente atada pela dramaturgia
não escapando da relação óbvia que relega aos espectadores a condição de cegos
deste drama.
Por
esta perspectiva, soa estranho, e até forçoso, diversos trechos do texto que
presumem de modo categórico as sensações de angústia que sentimos por estarmos
na condição de cegos. Soa mesmo inverossímil e desproporcional a ênfase
dramática do texto, posto sabermos se tratar de situação provisória e
previamente consentida. Isso, aliás, poderia ser amenizado se a divulgação do
trabalho não revelasse esta condição para participar do mesmo. Ao sabermos que ficaremos
com os olhos vendados durante a apresentação da peça, já nos preparamos psicológica
e antecipadamente para este momento, fragilizando, portanto, tanto a proposta
da encenação quanto a própria dramaturgia. Imaginem o choque dos espectadores
se não soubessem antecipadamente desta condição. Arrisco dizer que talvez
alguns até desistissem de participar. Particularmente, ao saber desta condição,
me preparei para curtir este momento e extrair dele o máximo de sensações
prazerosas, como por exemplo, a sensação refrescante dos pingos de chuva
banhando a face.
Aponto
outro elemento curioso sobre a dramaturgia: uma espécie de discurso maniqueísta
se estabelece ao longo do texto confrontando deficientes e não deficientes. A
construção do discurso sobre a cegueira vai se desenvolvendo fazendo esta
contraposição, de tal modo, que ao final da peça a ideia que se impõe é que só
enxerga o essencial quem é cego; ou que os não deficientes estão incapacitados
para alcançar e compreender a dimensão social de quem é cego; ou ainda que o
mundo seria bem melhor se todos nós fosses cegos. Mesmo sem negligenciar a
dimensão metafórica da cegueira retratada pela dramaturgia, fica a sensação de
que este tipo de maniqueísmo de alguma forma apenas inverte os pólos de
discussão sobre o tema. Enquanto provocação, esta estratégia parece eficaz,
pois nos exige reflexão pelo choque de realidade da inversão dos pólos, mas
rasa na perspectiva de construção de um posicionamento holista sobre o tema.
Sobre as atuações merece destaque a
participação de Gabriela Condurú. A protagonista da peça – que descobrimos no
final se tratar da personagem que é a personificação da própria “Vida” – a voz
feminina que guia nossa jornada pela escuridão. Sua atuação deixa transparecer um
vício comum aos atores iniciantes: o texto é oralizado de modo a valorizar o
final das frases, acentuando quase sempre a última silaba. Na gíria do meio
teatral dizemos que o texto sai cantado, ocasionando uma espécie de
falsificação do que é dito – este vício também pode ser percebido em grande
parte do elenco desta montagem. Mas trata-se de um problema técnico, resolvido
com bastante leitura e repetição de leitura, exercício para a atuante – e os
demais atuantes – se ouvir e disciplinar este modo vicioso de falar. Fora esse,
e alguns outros aspectos técnicos, a jovem atriz tem uma carreira promissora
pela frente, pois percebo segurança e ritmo na sua atuação, na condução da peça
inteira. Justiça seja feita: no trato com o texto o elenco inteiro está de
parabéns, pois não deixam o ritmo cair em nenhum momento, garantindo o jogo de
ação e reação – fala e resposta – durante toda a apresentação.
Neste
aspecto a montagem atinge o que considero mais relevante: universalização das
atuações ou, em outras palavras, a superação das diferenças. Explico: durante a
apresentação é quase impossível perceber quem é deficiente ou não. Há uma afinação no jogo com o texto que nos
impede de fazer esta distinção. Nem mesmo o poema – se não me engano de Cecília
Meireles – que é recitado por Lucas – também se não me engano – consegue ser
identificado como recitado por alguém que é autista – deficiência notoriamente
ligada ao desenvolvimento da oralidade. Portanto, o ritmo da peça – no trato
com o texto – merece os parabéns não por se tratar de um elenco com
deficientes, mas por nos fazer superar diferenças por meio da fruição da obra.
Dito de outro modo: não é bom por ser feito com deficientes, é bom por ser
feito com qualidade artística.
Este
me parece ser o lugar emblemático para todos que lidam com o desafio presente
no trato da arte-inclusão: superar as diferenças por meio das potencialidades
universais da arte. O reencontro por meio da arte nos possibilita despir
convenções e preconceitos e nos ata novamente o elemento caro e que tanto nos
falta na atualidade: humanidade.
30.06.2015
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