sexta-feira, 12 de junho de 2015

Entre a brincadeira e o ócio - Fio de pão.

Andrey Gomes: Aluno do Curso de Extensão "Crítica em Teatro e Dança" - ETDUFPA

Quando perguntei ao mestre mamulengueiro Sólon de Carpina (1920-1987) como e quando é que tinha começado essa história de teatro de bonecos, ele sorriu e disse: “Chico, o boneco é anterior ao homem”. Como assim? Perguntei, e ele explicou que antes de Deus fazer o homem, já havia feito os bonecos de vegetal, por exemplo, a boneca de milho... Depois é que esses vegetais se transformaram em gente como nós” (SIMÕES, 2005).

Seguindo a gênese do teatro animado, discorro sobre a obra que estabeleceu uma dramaturgia até então incipiente por essas bandas – Fio de Pão, a lenda da cobra Norato é uma idealização do grupo In bust - Teatro com bonecos. Fui conferir e comprovei no ultimo domingo a importância do espetáculo como linguagem, semiose de uma “brasilidade-amazônica” ainda que apresentada em situação adversa.
Acredito que a encenação em espaços inusitados seja um desafio, mas também possibilite um tatear por novas vias, nesse caso, a apresentação que inicialmente seria ao ar livre foi transferida para a parte coberta (talvez por consequência da chuva) onde ocorre o projeto pôr-do-sol na Estação das Docas. A mudança, sem dúvida, exigiu adequação dos intérpretes a um espaço menor, com iluminação inapropriada, influenciando a interação com os bonecos, exigindo maior intervenção do ator-manipulador; mas lembremos de que não se trata de um teatro morto e sim de metalinguagem, pois bebe na fonte dos “mamulengueiros” instáveis e dinâmicos em sua atemporalidade – para Peter Brook cada trabalho é único e tem seu próprio estilo, mas nos perdemos na tentativa de especificá-lo, principalmente em se tratando de uma linguagem singular como a do In Bust.
Fui levado pelo olhar curioso de um desconhecedor da dramaturgia tradicional a embarcar na oralidade cordelista cantada pelo cego Jurandir, violeiro apresentando sua família e o “Fio de Pão”, cãozinho animado que passou latindo ao meu lado puxado por Girino, filho único que ia ajudar a contar a história; Infelizmente, não pude ouvir com clareza os improvisos do cantador, levando-se em conta a má difusão sonora. Destaco esses elementos em uma reavaliação do espetáculo, confessando minha indiferença a todos os detalhes e simplesmente percebendo a reação do público quando provocado naquele processo, pois em relação à linguagem do mamulengo, a companhia mantém o principal: a brincadeira COM e PARA o povo.
Suponho que nas condições apresentadas, o boneco fique em “segundo plano” mesmo porque se trata da lenda contada pela família mambembe, uma realidade paralela dentro da narrativa, que apesar de utilizar ator e boneco em cena como recurso estabelecido, terá seu repertório definido no ato da apresentação, dependendo de fatores externos como, por exemplo, espaço cênico e público (inclusive em sua quantidade). Portanto interagi mais com a “família” do que com os bonecos, sabendo que a proposta do In bust não é a de seguir o teatro mamulengo ou qualquer outro tradicionalmente falando; prova disso está na sequência em que Girino derruba a panada com o boneco, ou no momento em que chora a morte da cobra tendo o consolo na explicação da mãe de que se trata de um brinquedo!  Vivenciamos o teatro de animação.
Os personagens brigam e brincam, manipulando regras, livres da “preocupação” com o público. Ludicidade particularadquirida pelo grupo ao longo dos anos – ficam os personagens-tipo, a característica improvisacional do texto, a “carta na manga”, o humor satírico onde se estrutura a interação com a platéia, nisso percebemos um hibridismo peculiar. Ressaltando que o teatro de animação inclui a confecção e caracterização dos bonecos, pude constatar que as famosas bonecas de Camiranga, região de cachoeira do Piriá foram influenciadas a partir de uma oficina ministrada por Aníbal Pacha, membro do In bust, naquela comunidade.
Na verdade senti uma profunda identificação de adultos e crianças com o teatro feito naquela noite, algo insólito para os jovens e há muito, já esquecido pelos velhos. Finalizo seguindo o percurso do espetáculo no apelo feito pelo grupo em manter o Casarão do Boneco em atividade, apelo que por sinal, é semelhante ao apelo do cego Jurandir iniciando a narrativa e justificando o “ganha-pão” de sua família, diz-se que a arte depende do ócio para existir, e é inimiga da aristocracia que como bem sabemos, depende da obediência; se o cego e sua família comem, ou se o casarão permaneça, cabe ao povo decidir:
Há um ócio criador, há outro ócio danado, há uma preguiça com asas, outra com chifres e rabo! (Ariano Suassuna, Farsa da boa preguiça).

Pois o boneco vai continuar a brincar!
12.06.2015

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