sexta-feira, 19 de junho de 2015

Retratos de Cu – ou Da necessidade de uma poética obsessiva com Genet

Edson Fernando: Ator, Diretor Teatral e Professor da Escola de Teatro da UFPA.
O vigilante debochado abre as porteiras do curral dando as boas vindas ao lar de Genet. As nádegas já podem... Não. Os ânus já podem... Não. Os cus já podem começar seu passeio frenético pela lúgubre mente do poeta dos ladrões: o rebolado buliçoso é a recepção candente que embala todos os cus numa assimétrica rítmica; há cus atirados, mansos, reprimidos, desejosos de porra; o cu esquizofrênico transita nervosamente entre o gozo e o castigo, o desejo e a censura, o querer e o não poder; o cu mais atrevido não demora a estabelecer aliança entre os dedos, a língua e o próprio cu, numa lasciva exorbitante e gananciosa; ainda imerso no reino de suas escritas sujas o poeta Jean parece pairar seu próprio cu numa dimensão distante; seu trato com os restos de papel que o cercam transparecem uma espécie de masturbação poético-literária; o gozo individual, no entanto, é passageiro, pois logo se vê seduzido pela própria obra plasmada nos cus que o cortejam, assediam, agridem e ao mesmo tempo convidam para a fáustica e santa ceia de corpos em estado de êxtase; dispostos na mesa espúria, e ainda mais sedentos de porra, ocorre a orgia universal dos cus; quase todas as formas de repressão foram suprimidas possibilitando os mais diversos encontros gozosos: cu com cu, cu com nariz, cu com pé, cu com mão, cu com língua, língua com língua, língua com pé, peito com boca, boca com cu, pele com pele, dedo com cu, cabelo com boca, cu com orelha, cotovelo com cu, joelho com boca, calcanhar com cu, lábios com lábios, lábios com cu; e em meio a tantos toques libidinosos, o quase esquecido pênis... Digo, falo... Digo, pau... Digo, pica... sim, a quase esquecida pica também entrou na santa orgia dos corpos: pica e cu, o miraculoso encontro dos antípodas ancestrais se realizando quase em toda sua potência; agora também encontram-se pica e cu, pica e pica, pica e boca, pica e dedos, rosto e pica, lábios e pica, pica e cabelos; enfim, ardentes desejos exalando um cheiro de marginalidade seminal. Na orgia universal não há lamentação, não há dor, não há desesperança, não há culpa... Mas a cristandade, presente nos escombros daquelas almas, insiste na redenção. Jean, o poeta do gozo, assume a missão de misericórdia, a missão de entregar-se a Santa Pocilga de Misericórdia. Embora, anseie pela alma despudorada de Jean, este anseia pelo corpo “pudico” da Santa. Ela, a salvação; Ele, a fornicação. Ela, a elevação; Ele, o rebaixamento. Ela, o sublimar; Ele, o enxovalhar. Ela, a alma; Ele, o corpo. Ela, o coração; Ele, o cu. O mesmo cu que dança, sofre, goza e grita pelo direito de ser cu, na sua acepção mais escatológica possível: excretar é viver.
O leitor mais exigente talvez se incomode com o parágrafo de abertura tão extenso ou até tenha desistido de avançar a leitura até aqui. Talvez o incômodo não se dê pelo tamanho do texto, mas por seu conteúdo obsessivo: o cu – termo repetido nada menos que 27 vezes num único parágrafo. Eis uma primeira questão, de fato, importante: a ênfase no tema obsessivo – o cu – encontra-se na montagem teatral Santa Pocilga de Misericórdia ou na recepção que retrata a obra?       
Sabemos que a relação, por vezes conflituosa, entre obra e crítica estabelece vínculos de dependência do último para com a primeira, isto é, não existe crítica sem obra – sendo que a recíproca, neste caso, não é verdadeira. A obra goza de total liberdade para se constituir enquanto tal; seu laço de causalidade centra-se, evidente e exclusivamente, no seu processo criativo, nos elementos que o artista arregimenta para estruturar sua criação. O crítico não tem esse privilégio e autonomia. Vive à sombra da obra; é a partir dela que seu pensamento se ergue e, posteriormente, reivindica o caráter de criação – posto que a crítica também seja considerada uma obra. Uma espécie de sanguessuga, amado e odiado por todos – público e artistas.
A pequena digressão sobre “crítica e obra” longe de justificar qualquer argumento colocado aqui, oferece pistas para situar minha resposta à primeira questão proposta: o cu, enquanto tema obsessivo encontra-se arraigado na obra Santa Pocilga de Misericórdia, montagem teatral com direção e encenação de Kauan Amora – projeto aprovado na 13ª Edição da Bolsa de Criação, Experimentação, Pesquisa e Divulgação do falido IAP / 2014. Pra ser justo, não o cu em si, mas o extravasamento da sexualidade das personagens. É esta sexualidade que é posta, quase sem filtros, em cena.  E, a meu ver, a supressão quase total dos filtros deixou em evidencia o elemento que retrato obsessivamente em minha recepção da obra, isto é, o cu. Assumo, portanto, nesta crítica, o cu como uma espécie de uma licença poética que me aproxima apropriadamente da obra, permitindo-me discuti-la e repercuti-la também sem filtros literários – ou quase sem filtros literários.
Meu primeiro incômodo com a obra encontra-se exatamente no que ela trás de obsessivo: a exaustiva retratação das relações homoeróticas – ou seriam homoafetivas? – das personagens. Do mesmo modo como construo minha licença poética e abuso do termo cu – no parágrafo de abertura – a montagem enreda-se mostrando os desejos, perversões e práticas sexuais das suas personagens. Paradoxalmente a maior virtude da montagem encontra-se exatamente neste modo de construção poética que trás a marca da escrita labiríntica e concreta de Genet; espécie de poesia que encontra sua razão, na cena, por meio da visceralidade física e orgânica dos atuantes. Este é propriamente o núcleo da literatura de Genet, literatura atravessada pelo leitmotiv do culto ao amor homossexual masculino.
Onde reside, então, o paradoxo? Quanto mais se aproxima da obra contundente de Genet, a montagem – na dimensão da ação teatral – somente consegue mostrar mais do mesmo. Assim, observo que Santa Pocilga de Misericórdia nos presenteia com uma vasta seleção de imagens brutas, exaltando e retratando as práticas sexuais de suas personagens. As personagens não se esgotam nas práticas homoeróticas recorrentes ao longo da montagem, mas suas dimensões existências ficam sugeridas ou soterradas pelo acento sexual de cada ação, de cada cena. A dramaturgia de Rodrigo Barata, neste sentido, é elemento fundamental, pois oferece as pistas valiosas – rebuscadas e debochadamente poéticas – para ultrapassarmos esta primeira camada da encenação. No entanto, a força da poesia corporificada nos atos obscenos, despudorados e lascivos dos atuantes, de algum modo, desloca a dramaturgia para segundo plano.  
Não se pode deixar de considerar o contexto histórico que atravessamos: reacionarismo político, intolerância religiosa, institucionalização da criminalização dos movimentos sociais, censuras veladas à liberdade de expressão artística e práticas de homofobia. A conjuntura clama aos formadores de opinião – e aqui se inclui nós artistas – uma posição contundente contra este estado de coisas repulsivas num estado dito laico e democrático. Por este viés, o acento da montagem repousando exatamente nas imagens brutas das relações homoeróticas – consideradas pelo establishment como repulsivas e reprováveis – não deixa de assumir um posicionamento político importante.
A proposição da relação palco-platéia, neste sentido, vai ao encontro disto quando coloca os espectadores na posição frontal a ação teatral – palco italiano. Lembremos que o Vigilante que nos recebe na porta do teatro posiciona-se estrategicamente, durante quase toda a peça, sentado no chão na mesma perspectiva dos espectadores. Este gesto é decisivo, pois determina a condição do espectador diante da obra: vigilante voyeur. Assim, observamos a montagem sob a mesma vigilância que a reprime; é como se fossemos convidados a desnaturalizar nosso olhar de repressão e censura, expondo-nos exaustivamente a estas imagens brutas de homoerotismo.  A direção de Kauan Amora merece os louros desta opção, embora não posso deixar de considerá-la como enfadonha na dimensão da ação teatral. Enfadonho, mas admito: estético-politicamente necessário na conjuntura atual.
Ainda neste viés de conjuntura histórica, é digna de nota a repercussão que a montagem atinge na cidade. Postagens virtuais acusando a montagem de misógina e de orgia barata e gratuita somente reforçam o argumento da necessidade de reflexão crítica e do posicionamento político que este trabalho estabelece. Contra este tipo de reacionarismo falacioso bastaria convidar os interlocutores a visitar a obra de Jean Genet; assim, ganhariam cultura e evitariam posicionamentos tão sectários e moralizantes. O convite se estende a atual direção do teatro Waldemar Henrique que ainda esta semana, protagonizou posicionamento reprovável ao impedir a realização da promoção de ingressos proposta pela equipe da montagem. A promoção consistia em desconto para os cinco primeiros casais homossexuais que topassem dar um beijo no hall de entrada do teatro – para estes o ingresso passaria de R$20,00 para R$8,00.  Alegando não saber, ou não ter sido notificando antecipadamente da promoção, a direção do teatro impediu sua realização. A repercussão junto a platéia que se fazia presente felizmente foi imediata: ao findar a sessão ocorreu um beijaço homossexual no hall do teatro como forma de protestar contra a atitude da direção do Waldemar Henrique. O palco extrapolou pra vida. É a dimensão política que precisa ser resgatada por nossa categoria teatral, esfacelada e reclusa cada qual em seus nichos de trabalho.
Duas outras inquietações que me atravessaram sobre Santa Pocilga de Misericórdia: personagens estereotipados e a paumolescência em cena. No primeiro caso, refiro-me especificamente ao personagem Mudinho. A máscara do personagem recorre aos elementos de sempre: andar descompassado e repetitivo – ora pra frente, ora pra trás; mãos abertas estapeando repetidas vezes a cabeça e o corpo. Uma espécie de clichê dos comportamentos esquizofrênicos. Cito Rolan Barthes – O prazer do texto – pra me ajudar a esclarecer meu incômodo:     
O estereotipo é a [imagem] repetida, fora de toda a magia, de todo o entusiasmo: como se fosse natural, como se por milagre, essa imagem que retorna fosse a cada vez adequada por razões diferentes, como se imitar pudesse deixar de ser sentido como uma imitação. Imagem sem cerimônia que pretende a consistência e ignora sua própria insistência.    
É exatamente a insistência de retornar numa imagem já bastante usada, desgastada mesmo, para retratar personagens acometidos por comportamentos esquizofrênicos a causa de tamanho incômodo de minha parte. “Como se fosse natural”, este uso e abuso de elementos imitativos que na verdade esvaziam a proposta ao invés de enriquecê-la e nutri-la com densidade dramática. Importante dizer que a crítica dirige-se para a máscara do personagem – uso recorrente de trejeitos e tiques –, e não propriamente a atuação de Paulo Cezar Júnior.  O estereótipo não potencializa, mas sim esvazia o que pretende retratar, seja na atuação de Paulo Cezar ou de qualquer outra atuação que se utilize do recurso.   
A segunda questão trás a tona a discussão sobre os limites entre arte e realidade, entre teatro e vida. Então, meu incômodo se localiza no único filtro que identifico na montagem: a ausência da ereção dos atuantes. Ora, pelo que já disse anteriormente temos uma montagem que não economiza nas imagens brutas de homoerotismo. Este parece ser o lugar mesmo onde a proposta encontra seu maior vigor – na perspectiva estética-política. Então, é de causar estranheza o festival de pênis moles que se agrupam, por exemplo, na cena de encontro coletivo de prazer. Estão todos ali exercendo suas fantasias sórdidas, gemendo e alguns gritando de prazer e, no entanto, persiste a paumolescência. O problema, a meu ver, não se trata somente da inverosimilhança da ação – portanto, não se trata somente de uma questão formal –, mas o que a imagem comunica para além dos limites estabelecidos naturalmente pela forma. É como se o discurso da castração e da censura moral, fundada na mais repugnante forma de tolher o ser humano – discurso de matriz religiosa conservadora – encontrasse ainda ecos dentro desta montagem que coloca em xeque exatamente este discurso.
Estou certo de que esta questão não é nada fácil de ser solucionada. Um oximoro que desafia a todos que testam os limites entre teatro e vida.
19.06.2015                
                             


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