Edson Fernando: Ator, Diretor Teatral e Professor da Escola de Teatro da UFPA.
O
vigilante debochado abre as porteiras do curral dando as boas vindas ao lar de
Genet. As nádegas já podem... Não. Os ânus já podem... Não. Os cus já podem
começar seu passeio frenético pela lúgubre mente do poeta dos ladrões: o
rebolado buliçoso é a recepção candente que embala todos os cus numa
assimétrica rítmica; há cus atirados, mansos, reprimidos, desejosos de porra; o
cu esquizofrênico transita nervosamente entre o gozo e o castigo, o desejo e a
censura, o querer e o não poder; o cu mais atrevido não demora a estabelecer
aliança entre os dedos, a língua e o próprio cu, numa lasciva exorbitante e
gananciosa; ainda imerso no reino de suas escritas sujas o poeta Jean parece
pairar seu próprio cu numa dimensão distante; seu trato com os restos de papel
que o cercam transparecem uma espécie de masturbação poético-literária; o gozo
individual, no entanto, é passageiro, pois logo se vê seduzido pela própria
obra plasmada nos cus que o cortejam, assediam, agridem e ao mesmo tempo
convidam para a fáustica e santa ceia de corpos em estado de êxtase; dispostos
na mesa espúria, e ainda mais sedentos de porra, ocorre a orgia universal dos
cus; quase todas as formas de repressão foram suprimidas possibilitando os mais
diversos encontros gozosos: cu com cu, cu com nariz, cu com pé, cu com mão, cu
com língua, língua com língua, língua com pé, peito com boca, boca com cu, pele
com pele, dedo com cu, cabelo com boca, cu com orelha, cotovelo com cu, joelho
com boca, calcanhar com cu, lábios com lábios, lábios com cu; e em meio a
tantos toques libidinosos, o quase esquecido pênis... Digo, falo... Digo,
pau... Digo, pica... sim, a quase esquecida pica também entrou na santa orgia
dos corpos: pica e cu, o miraculoso encontro dos antípodas ancestrais se
realizando quase em toda sua potência; agora também encontram-se pica e cu,
pica e pica, pica e boca, pica e dedos, rosto e pica, lábios e pica, pica e
cabelos; enfim, ardentes desejos exalando um cheiro de marginalidade seminal. Na
orgia universal não há lamentação, não há dor, não há desesperança, não há culpa...
Mas a cristandade, presente nos escombros daquelas almas, insiste na redenção.
Jean, o poeta do gozo, assume a missão de misericórdia, a missão de entregar-se
a Santa Pocilga de Misericórdia. Embora, anseie pela alma despudorada de Jean,
este anseia pelo corpo “pudico” da Santa. Ela, a salvação; Ele, a fornicação.
Ela, a elevação; Ele, o rebaixamento. Ela, o sublimar; Ele, o enxovalhar. Ela,
a alma; Ele, o corpo. Ela, o coração; Ele, o cu. O mesmo cu que dança, sofre,
goza e grita pelo direito de ser cu, na sua acepção mais escatológica possível:
excretar é viver.
O
leitor mais exigente talvez se incomode com o parágrafo de abertura tão extenso
ou até tenha desistido de avançar a leitura até aqui. Talvez o incômodo não se
dê pelo tamanho do texto, mas por seu conteúdo obsessivo: o cu – termo repetido
nada menos que 27 vezes num único parágrafo. Eis uma primeira questão, de fato,
importante: a ênfase no tema obsessivo – o cu – encontra-se na montagem teatral
Santa Pocilga de Misericórdia ou na
recepção que retrata a obra?
Sabemos
que a relação, por vezes conflituosa, entre obra e crítica estabelece vínculos
de dependência do último para com a primeira, isto é, não existe crítica sem
obra – sendo que a recíproca, neste caso, não é verdadeira. A obra goza de total
liberdade para se constituir enquanto tal; seu laço de causalidade centra-se,
evidente e exclusivamente, no seu processo criativo, nos elementos que o
artista arregimenta para estruturar sua criação. O crítico não tem esse
privilégio e autonomia. Vive à sombra da obra; é a partir dela que seu
pensamento se ergue e, posteriormente, reivindica o caráter de criação – posto
que a crítica também seja considerada uma obra. Uma espécie de sanguessuga,
amado e odiado por todos – público e artistas.
A
pequena digressão sobre “crítica e obra” longe de justificar qualquer argumento
colocado aqui, oferece pistas para situar minha resposta à primeira questão
proposta: o cu, enquanto tema obsessivo encontra-se arraigado na obra Santa Pocilga de Misericórdia, montagem
teatral com direção e encenação de Kauan Amora – projeto aprovado na 13ª Edição
da Bolsa de Criação, Experimentação, Pesquisa e Divulgação do falido IAP /
2014. Pra ser justo, não o cu em si, mas o extravasamento da sexualidade das
personagens. É esta sexualidade que é posta, quase sem filtros, em cena. E, a meu ver, a supressão quase total dos
filtros deixou em evidencia o elemento que retrato obsessivamente em minha
recepção da obra, isto é, o cu. Assumo, portanto, nesta crítica, o cu como uma
espécie de uma licença poética que me aproxima apropriadamente da obra,
permitindo-me discuti-la e repercuti-la também sem filtros literários – ou
quase sem filtros literários.
Meu
primeiro incômodo com a obra encontra-se exatamente no que ela trás de
obsessivo: a exaustiva retratação das relações homoeróticas – ou seriam
homoafetivas? – das personagens. Do mesmo modo como construo minha licença
poética e abuso do termo cu – no parágrafo de abertura – a montagem enreda-se
mostrando os desejos, perversões e práticas sexuais das suas personagens. Paradoxalmente
a maior virtude da montagem encontra-se exatamente neste modo de construção
poética que trás a marca da escrita labiríntica e concreta de Genet; espécie de
poesia que encontra sua razão, na cena, por meio da visceralidade física e
orgânica dos atuantes. Este é propriamente o núcleo da literatura de Genet,
literatura atravessada pelo leitmotiv do
culto ao amor homossexual masculino.
Onde
reside, então, o paradoxo? Quanto mais se aproxima da obra contundente de Genet,
a montagem – na dimensão da ação teatral – somente consegue mostrar mais do
mesmo. Assim, observo que Santa Pocilga
de Misericórdia nos presenteia com uma vasta seleção de imagens brutas,
exaltando e retratando as práticas sexuais de suas personagens. As personagens
não se esgotam nas práticas homoeróticas recorrentes ao longo da montagem, mas
suas dimensões existências ficam sugeridas ou soterradas pelo acento sexual de
cada ação, de cada cena. A dramaturgia de Rodrigo Barata, neste sentido, é elemento
fundamental, pois oferece as pistas valiosas – rebuscadas e debochadamente
poéticas – para ultrapassarmos esta primeira camada da encenação. No entanto, a
força da poesia corporificada nos atos obscenos, despudorados e lascivos dos atuantes,
de algum modo, desloca a dramaturgia para segundo plano.
Não
se pode deixar de considerar o contexto histórico que atravessamos: reacionarismo
político, intolerância religiosa, institucionalização da criminalização dos
movimentos sociais, censuras veladas à liberdade de expressão artística e práticas
de homofobia. A conjuntura clama aos formadores de opinião – e aqui se inclui
nós artistas – uma posição contundente contra este estado de coisas repulsivas
num estado dito laico e democrático. Por este viés, o acento da montagem
repousando exatamente nas imagens brutas das relações homoeróticas –
consideradas pelo establishment como
repulsivas e reprováveis – não deixa de assumir um posicionamento político
importante.
A
proposição da relação palco-platéia, neste sentido, vai ao encontro disto
quando coloca os espectadores na posição frontal a ação teatral – palco italiano.
Lembremos que o Vigilante que nos recebe na porta do teatro posiciona-se
estrategicamente, durante quase toda a peça, sentado no chão na mesma perspectiva
dos espectadores. Este gesto é decisivo, pois determina a condição do
espectador diante da obra: vigilante voyeur.
Assim, observamos a montagem sob a mesma vigilância que a reprime; é como se
fossemos convidados a desnaturalizar nosso olhar de repressão e censura, expondo-nos
exaustivamente a estas imagens brutas de homoerotismo. A direção de Kauan Amora merece os louros
desta opção, embora não posso deixar de considerá-la como enfadonha na dimensão
da ação teatral. Enfadonho, mas admito: estético-politicamente necessário na conjuntura atual.
Ainda
neste viés de conjuntura histórica, é digna de nota a repercussão que a
montagem atinge na cidade. Postagens virtuais acusando a montagem de misógina e
de orgia barata e gratuita somente reforçam o argumento da necessidade de
reflexão crítica e do posicionamento político que este trabalho estabelece.
Contra este tipo de reacionarismo falacioso bastaria convidar os interlocutores
a visitar a obra de Jean Genet; assim, ganhariam cultura e evitariam
posicionamentos tão sectários e moralizantes. O convite se estende a atual direção
do teatro Waldemar Henrique que ainda esta semana, protagonizou posicionamento
reprovável ao impedir a realização da promoção de ingressos proposta pela
equipe da montagem. A promoção consistia em desconto para os cinco primeiros
casais homossexuais que topassem dar um beijo no hall de entrada do teatro –
para estes o ingresso passaria de R$20,00 para R$8,00. Alegando não saber, ou não ter sido
notificando antecipadamente da promoção, a direção do teatro impediu sua
realização. A repercussão junto a platéia que se fazia presente felizmente foi imediata:
ao findar a sessão ocorreu um beijaço homossexual no hall do teatro como forma
de protestar contra a atitude da direção do Waldemar Henrique. O palco extrapolou
pra vida. É a dimensão política que precisa ser resgatada por nossa categoria
teatral, esfacelada e reclusa cada qual em seus nichos de trabalho.
Duas
outras inquietações que me atravessaram sobre Santa Pocilga de Misericórdia: personagens estereotipados e a
paumolescência em cena. No primeiro caso, refiro-me especificamente ao
personagem Mudinho. A máscara do personagem recorre aos elementos de sempre:
andar descompassado e repetitivo – ora pra frente, ora pra trás; mãos abertas
estapeando repetidas vezes a cabeça e o corpo. Uma espécie de clichê dos
comportamentos esquizofrênicos. Cito Rolan Barthes – O prazer do texto – pra me
ajudar a esclarecer meu incômodo:
O estereotipo é a [imagem]
repetida, fora de toda a magia, de todo o entusiasmo: como se fosse natural,
como se por milagre, essa imagem que retorna fosse a cada vez adequada por
razões diferentes, como se imitar pudesse deixar de ser sentido como uma
imitação. Imagem sem cerimônia que pretende a consistência e ignora sua própria
insistência.
É
exatamente a insistência de retornar numa imagem já bastante usada, desgastada
mesmo, para retratar personagens acometidos por comportamentos esquizofrênicos a
causa de tamanho incômodo de minha parte. “Como se fosse natural”, este uso e
abuso de elementos imitativos que na verdade esvaziam a proposta ao invés de enriquecê-la
e nutri-la com densidade dramática. Importante dizer que a crítica dirige-se
para a máscara do personagem – uso recorrente de trejeitos e tiques –, e não
propriamente a atuação de Paulo Cezar Júnior. O estereótipo não potencializa, mas sim
esvazia o que pretende retratar, seja na atuação de Paulo Cezar ou de qualquer
outra atuação que se utilize do recurso.
A
segunda questão trás a tona a discussão sobre os limites entre arte e realidade,
entre teatro e vida. Então, meu incômodo se localiza no único filtro que
identifico na montagem: a ausência da ereção dos atuantes. Ora, pelo que já
disse anteriormente temos uma montagem que não economiza nas imagens brutas de
homoerotismo. Este parece ser o lugar mesmo onde a proposta encontra seu maior
vigor – na perspectiva estética-política. Então, é de causar estranheza o
festival de pênis moles que se agrupam, por exemplo, na cena de encontro
coletivo de prazer. Estão todos ali exercendo suas fantasias sórdidas, gemendo e
alguns gritando de prazer e, no entanto, persiste a paumolescência. O problema,
a meu ver, não se trata somente da inverosimilhança da ação – portanto, não se
trata somente de uma questão formal –, mas o que a imagem comunica para além
dos limites estabelecidos naturalmente pela forma. É como se o discurso da
castração e da censura moral, fundada na mais repugnante forma de tolher o ser
humano – discurso de matriz religiosa conservadora – encontrasse ainda ecos
dentro desta montagem que coloca em xeque exatamente este discurso.
Estou
certo de que esta questão não é nada fácil de ser solucionada. Um oximoro que
desafia a todos que testam os limites entre teatro e vida.
19.06.2015
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