Autor da Crítica: Edson Fernando. Ator, Diretor e Professor de Teoria do Teatro da ETDFUFPA.
Falo de um lugar muito
particular: o vazio de quem perdeu a utopia. É deste lugar insólito que minhas
impressões críticas partem e se chocam com o espetáculo Negro, montagem teatral do Grupo de Pesquisa Cênica com temporada
de estréia ocorrida na A Casa da Atriz. O centro cultural – o considero assim –
que recebe a montagem, aliás, oportuniza aos espectadores reflexões tão
relevantes quanto à temática do espetáculo – a montagem aborda a delicada
questão racial no Brasil. A Casa da Atriz e Negro, nesta ordem, me confrontaram
com o meu total estado de desalento com conjuntura local e nacional,
principalmente às questões ligadas a produção teatral e a classe artística da
cidade.
Utopia
O espaço conhecido como
A Casa da Atriz existe – ou no dizer de um dos donos da casa, Paulo Porto,
RESISTE – há cinco anos localizada na Rua Oliveira Belo nº 95, entre
Generalíssimo Deodoro e Dom Romualdo de Seixas. Não foi a primeira vez que
estive no local conferido o trabalho de atores e atrizes da cidade, mas a
primeira em que pude ouvir os relatos sinceros e orgulhosos de seu Paulo sobre o
legado que este lugar tem estabelecido para a classe teatral de Belém. Ele
estima que cerca de quatro mil pessoas já visitaram a Casa que abriga
regularmente montagens teatrais, instalações, oficinas, leituras dramatizadas
ou o que a cabeça desvairada dos artistas desejar. Simpático e efusivo ele nos narra
fluentemente – estamos sentados na barraca de lanches armada na frente da Casa
e o relato que apresento é fruto dos depoimentos espontâneos de Paulo Porto – como
nasceu o projeto de criação deste espaço cultural.
A ligação com o Teatro
se estabeleceu pela matriarca da família, a atriz de cerca de 30 anos de
atuação Yeyé Porto; logo, a relação com o marido e as filhas Luciana e Juliana
Porto foram também construídas sob este vínculo artístico. Idealizado no início
como uma biblioteca pelas filhas Luciana e Juliana Porto, o projeto saiu do
plano teórico impulsionado pelo desejo e necessidade de alguns artistas que
participavam de um processo criativo ao lado de Yéye; a Casa que já abrigava
ensaios e outras atividades artísticas fora cogitada, então, por Aílson Braga,
Adriana Barroso e Aníbal Pacha como espaço para experimentação teatral daquela
montagem. Como já havia este desejo por parte do casal dono da residência, a
ideia foi imediatamente acolhida e colocada em prática. Mas como arcar
financeiramente com tal iniciativa? Eram necessárias adaptações e pequenas
reformas que possibilitassem receber artistas e público assegurando o mínimo de
conforto e qualidade para a cena – o forro, por exemplo, precisava ser pintado
na cor azul. A solução foi encontrada recorrendo aos amigos próximos,
proprietários de empreendimentos vizinhos a Casa – dentre eles a G2
Comunicações e a Dom Cookie, localizados ao lado e em frente, respectivamente –
que forneceram e até hoje fornecem apoio cultural em forma de banners, material
gráfico, etc. A tinta para pintura do forro também foi conseguida sem custos
com outro amigo, dono de uma loja de material de construção. E assim A Casa da
Atriz abria suas portas pela primeira vez no ano de 2010, trazendo no nome do
espaço a referência e merecida homenagem a atriz proprietária e moradora do
lugar.
Este peculiar “sistema
de mecenato” é um dos meios que mantém o espaço vivo, pulsante e catalisador de
experimentações diversas até os dias atuais. Orgulhoso da iniciativa que
engendrou e ajuda a preservar, Paulo Porto segue afirmando que o espaço nunca
recebeu recursos financeiros do estado para se manter – salvo nos casos em que
concorrem em editais públicos – fato este que garante a total autonomia e
independência do lugar: quem decide quais projetos serão realizados, sob que
termos financeiros se efetivará a parceria e como serão desenvolvidas as ações,
cabe a família Porto decidir. A liberdade e autonomia no gerenciamento do
espaço permitem estabelecer os termos para muito além da nefasta lógica do
mercado. O espaço que tem capacidade para receber até vinte espectadores por
sessão segue o princípio claro e objetivo: faz-se Teatro para vinte do mesmo
modo e com a mesma qualidade e empenho do que se faz para somente um
espectador. O que importa, frisa sempre Paulo, não é o retorno financeiro e sim
os momentos de reflexão, emoção e outros modos de produzir entretenimento com
projetos teatrais que buscam dialogar intensamente com temas relevantes para cidade.
Tudo isso se apresentando como demarcação política importante para afrontar e
enfrentar o cenário desolador da política cultural de Belém e do estado do
Pará.
Negro
O panorama traçado por
Paulo Porto sobre seu espaço cultural, antes da entrada para conferir a
montagem Negro, me atou
irremediavelmente as questões sociais e políticas que atravessam e ultrapassam
o palco. De alguma forma funcionou em mim como uma espécie de prelúdio a obra
com que me defrontei em seguida. Então, à medida que entrei em contato com a
fábula, senti necessidade de compreendê-la imediatamente na sua intima relação
com a delicada questão racial no país. E o principal elemento que provocou e
incomodou minhas impressões foi a dramaturgia. Passo então, a análise de alguns
elementos da montagem para apontar, a meu ver, algumas fissuras que prejudicam
e/ou fragilizam o discurso e a abordagem da temática proposta.
A fábula se constitui
com os seguintes elementos: um senhor de escravos convive com duas negras em
sua residência. A violência no trato dispensado a elas vai sendo revelado à
medida que os acontecimentos são precipitados com a chegada de um novo escravo
recém adquirido numa feira livre. É a partir deste núcleo de personagens que a
trama ou o drama se estabelece. O confronto social Senhor versus Escravo poderia estabelecer a montagem no âmbito épico, mas
os acontecimentos são dispostos em escala crescente de tensão, construindo
assim uma curva dramática para florescimento do clímax e posterior desenlace da
fábula. Esta é o que considero a primeira fissura entre obra e seus
desdobramentos para além do palco, posto que o gênero dramático, por natureza,
tende a se esgotar na sala de apresentação, ao passo que o épico – se bem
estabelecido – tem mais chances de vincular suas questões para além do palco.
Equilibrando ou
suavizando – mas não o suficiente – os elementos dramáticos da obra, temos o
jogo dialético proposto pela unidade de tempo da ação: aberta oposição entre o
tempo presente e passado. Este jogo revela-se uma excelente proposição, pois
assenta a fábula no tempo histórico da escravidão negra ocorrida no Brasil até
1888, mas transpondo todas as implicações do nefasto regime escravocrata para o
tempo presente. O recurso para atingir esse objetivo é simples: toda a
ambientação do lugar é feita com objetos reais que são manuseados pelos atores
– sabonete líquido, talheres, pratos, panos de prato, garrafa térmica, xícara e
pires, toalha de banho, controle remoto de TV e até mesmo a marca das cuecas
dos dois atores que ficam a mostra em determinados momentos. O figurino, neste
sentido, estabelece o eixo neutro que induz nosso olhar para os objetos e não
para o próprio figurino – o senhor de escravos traja calça e camiseta preta
enquanto os três escravos trajam calças e camisetas brancas. Outra pista
importante que situa a fábula no tempo presente são as inserções de notícias
televisivas que são narradas de fora da cena em pelo menos dois momentos. Todos
os casos relatados retratam vítimas reais de preconceito racial, violências
ocorridas recentemente.
Todos estes elementos
visuais que situam a fábula no tempo presente chocam-se com a dramaturgia que
opta por uma escritura tecida na base de chavões e clichês sobre a condição
racial dos negros no Brasil. Tais clichês remetem nosso olhar para o tempo
passado, um tempo onde os negros eram tratados como “coisas” numa aberta
relação de submissão, violência física, abusos sexuais e total humilhação moral.
Nesta perspectiva o texto dramático cumpre papel importante em função do efeito
de estranhamento que pretende provocar. No entanto, fica também a impressão de
um texto demasiadamente melodramático, que peca pela falta de uma intriga mais
elaborada, pois se limita ao embate maniqueísta entre o senhor de escravos e os
escravos – clara distinção melodramática que separa os personagens bons dos maus.
E como não podemos negar que a teledramaturgia brasileira exerce papel
preponderante em nossa educação estética, na metade da apresentação fico com a
impressão de acompanhar um folhetim novelesco de época da sessão das seis da TV
Globo.
Talvez a chave para
entender essa sensação se encontre em outra faceta da dramaturgia com característica
marcadamente realista, isto é, os diálogos são inspirados nos discursos e
comportamentos racistas da época da escravidão. Some-se isso a encenação também
realista que coloca as cenas como quadros que descrevem a situação social do
negro naquela época histórica. Mesmo com o efeito de estranhamento provocado
pelo choque entre os tempos da ação, os quadros são encadeados de modo à tensão
crescente – como dito anteriormente – inviabilizando, comprometendo ou anulando
o próprio efeito de estranhar, pois com o desenrolar da fábula nos familiarizamos
com a situação. Esta é a segunda e, a meu ver, a mais grave fissura na obra,
pois ela limita Negro ao contexto da
própria fábula, embora faça alusão a conjuntura de preconceito racial da
atualidade.
O conjunto de atuações
dos quatro atores principais da montagem contribui de modo decisivo para o aumento
da tensão dramática das cenas. Amanda Alvino, Bonelly Pignatario, Tamires
Tavares e Victor Peixe desenvolvem um trabalho primoroso repleto de pré-expressividade
e domínio técnico do espaço. Nada realizado por eles é gratuito ou fora de propósito;
o desenho das cenas é executado milimetricamente, não há passo em falso ou
excessos de movimentação; a força no olhar e o vigor nas ações expressam com
inteireza que a pesquisa levou a sério o treinamento energético desenvolvido
pelo Grupo LUME de Campinas e aplicado como preparação para o elenco. Somos
capturados para o interior dos quadros desde a simples troca de olhares entre
os atuantes, carregada de tensão pre-expressiva.
Alentos
Possíveis
A experiência que tive
ao conferir a montagem Negro, realizada
na Casa da Atriz me proporcionou pensar uma vez mais sobre formas de resistência
artivista. Embora ainda me perceba completamente esvaziado de motivação utópica,
não deixa de causar impacto o encontro com o frescor revolucionário vindo do
relato espontâneo de Paulo Porto sobre sua preciosa Casa da Atriz – o mesmo frescor
pode ser notado em Luciana Porto. Seus olhos brilham liberdade, sonho e, sobretudo,
expressam posicionamento político contundente contra uma gestão cultural
falida, demagógica, elitista e nefasta. Mesmo tendo posicionamento um pouco
diferente sobre o modo de enfrentar a ausência de política cultural do estado e
município – pois, acredito que é necessária também uma ação coletiva de
enfrentamento por parte da categoria teatral, embora tenha perdido a esperança
que isso venha há ocorrer algum dia ou num futuro próximo – não posso deixar de
concordar que ao manter seu centro cultural independente por cinco anos esse
gesto se impõe como um autêntico “tapa com luva de pelica”, principalmente na
face daqueles que se encastelaram nas secretarias de cultura de nossa cidade e
do estado. Então, isso não deixa de se constituir como um alento em meio à
situação kafkiana que vivemos quase passivamente há pelo menos vinte anos.
Por outro lado, entrar
em contato com o frescor e vigor pré-expressivo dos atuantes da montagem me faz
ter certeza de minha paixão por esta arte tão massacrada e espezinhada. Mais
ainda quando percebo que há em cada um deles o ímpeto de seguir fazendo Teatro
contra toda adversidade conjuntural e, o que é mais importante, com o desejo de
se comunicar politicamente com a cidade e com os cidadãos moribundos.
Talvez sejam pequenas
doses necessárias para abater a letargia reinante.
23
de Novembro de 2015