Autora: Alana Lima – discente do curso
Técnico em Artes Dramáticas – ênfase na formação de ator, ETDUFPA.
Falar da
loucura ou dos conflitos da mente sempre foi delicado e perigoso. É um terreno
no qual, ao menor tropeço, pode-se desabar a estória toda. O Grupo de Teatro Universitário/Noturno
de 2015 decidiu correr o risco e, nos últimos dias 12 a 15 de novembro, levou
aos palcos do Teatro Universitário Claudio Barradas o espetáculo “Dúbio”.
Ao dar os
primeiros três passos de entrada no teatro, o espectador é imediatamente
inserido em um universo tenso, instigante e, para alguns quem sabe até
assustador. A imagem que se tem é de uma enfermeira, parcialmente coberta por
um biombo antigo de hospital, manipulando uma corda com angústia. Em seguida,
todos são levados a entrar pelas laterais do biombo e se deparam com mais uma
cena curiosa: os personagens estão deitados pelo chão do teatro; alguns tremem,
outros têm pequenos espasmos, e os espectadores tem de driblar aqueles corpos
no chão para se encaminhar até onde for sentar. A sensação é incômoda,
provocativa. O cenário já leva os mais atentos a sentirem-se em um manicômio,
semelhante aos assustadores que vemos nos filmes.
De súbito, os
personagens todos se levantam com lanternas e provocam o público com aquelas
“pequenas luzes” em meio ao breu do teatro. É a porta de entrada para a
sequência de cenas que virá a seguir, apresentando os personagens. No entanto,
tudo que até ali trazia uma mistura de sensações e provocações, começa a se
perder a partir do momento em que o primeiro texto é pronunciado. O discurso da
primeira personagem “dúbia” remete diretamente aos recentes discursos
feministas postados nas redes sociais, discutindo o estupro e todo abuso
sofrido pelas mulheres diariamente. E desde esse momento, a dramaturgia do
espetáculo torna-se enfadonha, não só por sequências textuais longas e
repetitivas, mas por ser toda elaborada segundo um didatismo desnecessário no
drama.
Há uma
contradição que carrega o espetáculo do início ao fim: a proposta cênica versus
a dramaturgia. Ao propor uma estética surreal e uma temática delicada como a
loucura, seria importante que a dramaturgia compactuasse com essa perspectiva.
Mas o excesso de explicações para as críticas que o espetáculo propõe chega a
ser uma afirmação de que a cena não daria conta por si só. O que não é verdade.
Em cena, três macacos caracterizados de médicos, brincam com a plateia e se
estapeiam no que eu chamo de “jogo de alienação”, no qual recaem na tradicional
imagem dos três macacos sábios. A metáfora provoca. E o texto é acessório na
cena, não essencial. Seriam eles médicos do manicômio? Enfermeiros? Por meio do
texto só é possível saber que detêm um conhecimento que os demais não tem. São
racionais e, de fato, sábios. Alienam-se por sabedoria.
A sequência do
espetáculo traz a história de mais quatro personagens, através da perspectiva
de suas mentes. E aqui reside mais um problema: a estória nos leva a entender
que os conflitos vividos pelos personagens os levaram à loucura e que agora
estão divididos mentalmente por esses conflitos que são os mais corriqueiros –
um homossexual que não se aceita por medo da sociedade; uma mulher estuprada;
uma enfermeira infeliz com o serviço. Das cinco estórias contadas, apenas duas
remetem à loucura – Tomás, que aparenta ser um esquizofrênico em crise com
ratos e Luiza, uma mulher que acredita no nascimento e na morte de um filho que
nunca existiu. Os demais apresentam conflitos diários sofridos por muitos dos
que ali assistiam e mesmo dos que atuavam. Conflitos estes que, não por si só,
levam à loucura. Nesse aspecto novamente sinto uma dramaturgia frágil, sem
aprofundamento sobre o assunto e fugindo um pouco da proposta inicial,
parece-me que tentando trazer conflitos sociais atuais para a cena.
Um ponto
interessante sobre a proposta e a dramaturgia é a tentativa de discutir a
loucura para além do manicômio e do estereótipo social do doente mental. Isso é
pontuado alguns momentos ao mostrar que os enfermeiros do hospital também têm
traços da loucura. Mas isso é pouco abordado pelo espetáculo, fica abafado
pelas recorrentes afirmações de traumas e crises vivenciadas pelos personagens.
Em compensação, as cenas de Tomás e Luiza nos inserem no universo da metáfora
pelo corpo, mais do que da audição do texto. Não são precisas muitas palavras
pra que se compreenda a dor e a loucura de ambos. As atuações também
corroboram, mas isto é um ponto que não há o que questionar a respeito do
espetáculo. Os atores, ainda que interpretando personagens e texto cansativos,
levam a proposta até o fim com esmero.
O excesso de
drama, na tentativa de emocionar o público, é também desnecessário no contexto
do espetáculo. Parece-me que há duas linguagens contrastando durante os 86
minutos de apresentação – dramaturgia e atuação. Várias cenas que se mostravam
completas pela técnica, corpo e expressão, são quebradas com a entrada do
texto. Um exemplo são as cenas em que os macacos aparecem, provocando sempre
entrelinhas que não precisariam das linhas, mas como as trazem me deixam sentir
que, enquanto público, eu não seria capaz de compreender aquela cena sem
tamanha explicação. A mesma sensação se dá na última cena de Dúbio, na qual a
enfermeira do início retorna e lança um discurso quase manifesto antes de
suicidar-se. O discurso da culpa, do preconceito, apontando os dedos para que a
plateia saísse chocada ou decepcionada por se ver naquela situação. Se era essa
a intenção, fracassou.
Por conta de
uma dramaturgia não condizente com a proposta cênica, como já dito, Dúbio não
me provocou reflexão senão estas que exponho aqui. Não me fez pensar sobre o
preconceito com a loucura ou sobre questões como a luta antimanicomial, algo
recente e silenciado por todos nós, especialmente quando apresentam no fim os
personagens se “curando” de seus problemas... O homossexual passa a se aceitar
como é; Tomás decide “tomar seu remédio” para enfim ser feliz em sociedade.
Deixemos os
méritos evidentes à banda, que acompanha e dá gás à trama o tempo inteiro, aos
atores pelo empenho em investir na proposta dos personagens, à cenografia pelo
trabalho inteligente e à direção, por contornar os desvios causados pelo texto
e ainda assim, tentar levar aos palcos um teatro surreal e novo, com um elenco
quase todo de novos atores e poucos recursos.
18 de Novembro de 2015
parabéns pelo texto, alana. é importante que espetáculos como "dúbio" sejam comentados, pois a crítica funciona como ponto de equilíbrio diante do "experimentalismo voraz" (o termo é do prof. edson) que constitui a cena paraense, e do qual o gtu é um bom exemplo. eu acrescento que, em projetos como esse, em que a dramaturgia é construída em processo e não é o único ponto de partida, a cena local parece ter dificuldade de precisar o lugar do texto na poética, resultando não só no descompasso que vc aponta, mas também em problemas de interpretação e no enfraquecimento do discurso do espetáculo. o texto acaba entrando em concorrência com a cena, ora querendo ocupar forçadamente o primeiro plano, como vejo que é o caso de "dúbio", ora sendo desprezado, como enxergo até mesmo em "santa pocilga de misericórdia", em que participei como ator (sintomaticamente, o prof. edson usou a mesma palavra que vc, "enfadonho", pra falar do santa, em crítica publicada aqui). talvez as deficiências de nossa formação literária, e também a falta de tradição crítica em belém, são fatores que resultam nesse cenário. por fim, um exemplo de espetáculo que parte de experimentações e consegue harmonizá-las com beleza e potência com o texto e a cena é o "da cabeça aos pés", do gemte, que felizmente deve voltar em cartaz em breve. abraço. arthur ribeiro
ResponderExcluirOla Alana, muito bom seu texto, me fez parar para observar algumas coisas que talvez tenha perdido, so uma correção, o personagem Tomás, o qual você cita no texto, na verdade se chama Alberto, o Tomás de fato, é o personagem homossexual.
ResponderExcluirAss.: Jairo dos Anjos, diretor do espetáculo.
Grata pela correção, Jairo. Realmente não me atentei para a confusão com os nomes. Vou consertar. E novamente parabéns pelo trabalho!
ExcluirQue isso eu que agradeço a disposição em escrever sobre nós.
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