segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Encantarias - Por Silvia Luz

Silvia Luz: Atriz e Professoa Mestre em Artes pelo PPGArtes - ICA/UFPA. 
[...] Num terreiro de Oxum
Os tambores sagrados
Bateram pra mim.
[...] Sou iluminada, eu sou,
Sou de Keto sim (Roque Ferreira)

Corpos pequenos nos recebiam harmonicamente. Adentrar ao espaço foi um convite para o olhar para dentro de si. Corpos e saias circulavam num imenso corredor. Luzes apagam-se, eis que surge um corpo na parte de cima do teatro, luz!!! Uma senhora? Nanã? Meus olhos vidrados acompanhavam seu andar, eis que de sua saia, saem mais cinco saias que são entregues aos atuantes que estavam embaixo, no palco.
Nós ficamos sentados nas laterais e as cenas aconteciam entre a duas laterais, um túnel do tempo; no meio de uma lateral ficava o sonoplasta que ao vivo nos embalava com sons que nos remetiam para diversos lugares do passado ao futuro. Tudo acontecia sem truques, era o corpo que dilatava e tomava conta de mim e do espaço. Confesso que no início ao vê-los tão esmirrados, pensei: Não vão dar conta da potência que o espaço cênico e a sonoplastia trazem.
Três moças e três rapazes, uma relação equilibrada de energias. Os tambores anunciam a presença dos Orixás e caboclos. Em cena esses corpos esmirrados cresceram de uma forma que arremessavam em meu peito sua potência, de tão forte, a energia voltava para eles, os olhos vidrados, uma sincronia que mexia comigo. Segundo a antropologia teatral de BARBA (1995), o espectador é afetado fisicamente pelo nível pré-expressivo do corpo do ator e da representação. Senti-me na cena, dancei, suei, gritei, extasiei-me.
A pré-expressividade preocupa-se em deixar a energia do ator cenicamente viva, ou seja, de manter no ator uma presença que atraia imediatamente a atenção do espectador. Essa energia cenicamente viva é o denominado nível pré-expressivo.  
Corroborando com Barba, “a expressão do ator, de fato, deriva – quase apesar dele – de suas ações, do uso de sua presença física. É o fazer, e o como é feito, que determina o que o ator expressa.” (1995, p. 187).  O ator tem vida em cena, a atuante que fez Oxum dilatou de uma forma que seu corpo irradiava vida pelos poros, sua segurança e presença me tencionavam psicofisicamente, isso segundo Pavis (2008) “é o nível Kinestésico que diz respeito à comunicação entre atores e espectadores, como, por exemplo, a tensão do corpo do ator ou a impressão que uma cena pode causar ‘fisicamente’ no público”.
Da Cabeça aos pés faz jus ao vocábulo “Espetáculo”. A sensibilidade e a inteligência para criar algo tão intenso e impactante, simplesmente com uma atuação compromissada com àquilo que se está fazendo aqui e agora; a voz era a extensão do corpo, inundou o espaço como uma fumaça. Os jovens atuantes revelaram-se a si mesmos ali diante de nós espectadores, a capacidade criadora da direção de fugir do senso comum dos rituais de terreiros e ainda trazer nossa história, foi algo que enriqueceu a performance de todos. O conjunto da obra foi excepcional, permito-me dizer que o Boi-bumbá que ali estava na presença do boiadeiro e das músicas cantadas, que o Erê que contava histórias me fez perceber universos aparentemente distantes tão intrínsecos.
A atuação cênica e a sonoplastia foi algo que se completou de uma forma mágica. A iluminação precisa, e graças a ela os meus sentidos foram despertados. A apresentação totalmente sinestésica, pois teve cheiro, cor, forma, som e gosto. O corpo falava, pulsava, as cores tinham cheiro, a face de Oxum me devorava, sentia minhas entranhas ofegando a cada movimento dela. Iemanjá me levava nos braços com sua luz irradiada não sei de onde, inexplicável. Dom Sebastião saiu das águas para contar seu paradeiro, reinou ali diante de todos. O corpo era a voz que ecoava o Touro que brilhou pelos olhos do Boi Bumbá.
A apresentação estava tão pulsante que enquanto espectadora queria mais. Em um determinado momento entrou uma projeção no espaço: o datashow lançara imagens com depoimentos de pessoas, no fundo do teatro. Nesse momento os espectadores pareceram sair de um sono profundo e começaram a conversar, uns pegaram o celular, olharam, sussurravam, enquanto a projeção rolava. Não demorou, mas poderia ser mais breve. Mas isso em nenhum momento comprometeu o vigor do espetáculo.
Para finalizar uma chuva de papel picado amarelo caindo sobre nossas cabeças, os papeis tinham cheiro e nesse momento senti-me na procissão do Círio de Nazaré. O que é isso? Magnífico!!!
Vivemos numa escassez de quase tudo, de amor, gentilezas, afetividade, respeito, mas o que vivi hoje é uma fartura inexplicável de tudo isso, sinestesias múltiplas. Mergulhei no meu, no teu, no nosso mar de Rio e saí revigorada. Um espetáculo que arrepiou da cabeças aos pés, de cima para baixo, de dentro para fora. Gosto dessa entrega. GEMTE se faz com gente.

Bravíssimo!!!
Por Silvia Luz
20.09.2015

Referências
PAVI, Patrice. Dicionário de Teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3. ed – São Paulo: Perspectiva, 2008.

BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator. São Paulo/Campinas: Hucitec/Unicamp, 1995.

Um comentário:

  1. Tuas palavras inundam e transbordam meu ser! Uma critica embasada e sensível que, acompanha a eferverscência do Teatro! Faz-me acreditar ainda mais que estamos seguindo o curso das águas doces. Banhado de Dadivas!
    Obrigada pela tua DOAÇÃO!
    Axe! Ewoe!

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