segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Utopia... Negro... Alentos Possíveis... - Por Edson Fernando

Autor da Crítica: Edson Fernando. Ator, Diretor e Professor de Teoria do Teatro da ETDFUFPA.
Falo de um lugar muito particular: o vazio de quem perdeu a utopia. É deste lugar insólito que minhas impressões críticas partem e se chocam com o espetáculo Negro, montagem teatral do Grupo de Pesquisa Cênica com temporada de estréia ocorrida na A Casa da Atriz. O centro cultural – o considero assim – que recebe a montagem, aliás, oportuniza aos espectadores reflexões tão relevantes quanto à temática do espetáculo – a montagem aborda a delicada questão racial no Brasil. A Casa da Atriz e Negro, nesta ordem, me confrontaram com o meu total estado de desalento com conjuntura local e nacional, principalmente às questões ligadas a produção teatral e a classe artística da cidade.
Utopia
O espaço conhecido como A Casa da Atriz existe – ou no dizer de um dos donos da casa, Paulo Porto, RESISTE – há cinco anos localizada na Rua Oliveira Belo nº 95, entre Generalíssimo Deodoro e Dom Romualdo de Seixas. Não foi a primeira vez que estive no local conferido o trabalho de atores e atrizes da cidade, mas a primeira em que pude ouvir os relatos sinceros e orgulhosos de seu Paulo sobre o legado que este lugar tem estabelecido para a classe teatral de Belém. Ele estima que cerca de quatro mil pessoas já visitaram a Casa que abriga regularmente montagens teatrais, instalações, oficinas, leituras dramatizadas ou o que a cabeça desvairada dos artistas desejar. Simpático e efusivo ele nos narra fluentemente – estamos sentados na barraca de lanches armada na frente da Casa e o relato que apresento é fruto dos depoimentos espontâneos de Paulo Porto – como nasceu o projeto de criação deste espaço cultural.
A ligação com o Teatro se estabeleceu pela matriarca da família, a atriz de cerca de 30 anos de atuação Yeyé Porto; logo, a relação com o marido e as filhas Luciana e Juliana Porto foram também construídas sob este vínculo artístico. Idealizado no início como uma biblioteca pelas filhas Luciana e Juliana Porto, o projeto saiu do plano teórico impulsionado pelo desejo e necessidade de alguns artistas que participavam de um processo criativo ao lado de Yéye; a Casa que já abrigava ensaios e outras atividades artísticas fora cogitada, então, por Aílson Braga, Adriana Barroso e Aníbal Pacha como espaço para experimentação teatral daquela montagem. Como já havia este desejo por parte do casal dono da residência, a ideia foi imediatamente acolhida e colocada em prática. Mas como arcar financeiramente com tal iniciativa? Eram necessárias adaptações e pequenas reformas que possibilitassem receber artistas e público assegurando o mínimo de conforto e qualidade para a cena – o forro, por exemplo, precisava ser pintado na cor azul. A solução foi encontrada recorrendo aos amigos próximos, proprietários de empreendimentos vizinhos a Casa – dentre eles a G2 Comunicações e a Dom Cookie, localizados ao lado e em frente, respectivamente – que forneceram e até hoje fornecem apoio cultural em forma de banners, material gráfico, etc. A tinta para pintura do forro também foi conseguida sem custos com outro amigo, dono de uma loja de material de construção. E assim A Casa da Atriz abria suas portas pela primeira vez no ano de 2010, trazendo no nome do espaço a referência e merecida homenagem a atriz proprietária e moradora do lugar.
Este peculiar “sistema de mecenato” é um dos meios que mantém o espaço vivo, pulsante e catalisador de experimentações diversas até os dias atuais. Orgulhoso da iniciativa que engendrou e ajuda a preservar, Paulo Porto segue afirmando que o espaço nunca recebeu recursos financeiros do estado para se manter – salvo nos casos em que concorrem em editais públicos – fato este que garante a total autonomia e independência do lugar: quem decide quais projetos serão realizados, sob que termos financeiros se efetivará a parceria e como serão desenvolvidas as ações, cabe a família Porto decidir. A liberdade e autonomia no gerenciamento do espaço permitem estabelecer os termos para muito além da nefasta lógica do mercado. O espaço que tem capacidade para receber até vinte espectadores por sessão segue o princípio claro e objetivo: faz-se Teatro para vinte do mesmo modo e com a mesma qualidade e empenho do que se faz para somente um espectador. O que importa, frisa sempre Paulo, não é o retorno financeiro e sim os momentos de reflexão, emoção e outros modos de produzir entretenimento com projetos teatrais que buscam dialogar intensamente com temas relevantes para cidade. Tudo isso se apresentando como demarcação política importante para afrontar e enfrentar o cenário desolador da política cultural de Belém e do estado do Pará.
Negro
O panorama traçado por Paulo Porto sobre seu espaço cultural, antes da entrada para conferir a montagem Negro, me atou irremediavelmente as questões sociais e políticas que atravessam e ultrapassam o palco. De alguma forma funcionou em mim como uma espécie de prelúdio a obra com que me defrontei em seguida. Então, à medida que entrei em contato com a fábula, senti necessidade de compreendê-la imediatamente na sua intima relação com a delicada questão racial no país. E o principal elemento que provocou e incomodou minhas impressões foi a dramaturgia. Passo então, a análise de alguns elementos da montagem para apontar, a meu ver, algumas fissuras que prejudicam e/ou fragilizam o discurso e a abordagem da temática proposta.   
A fábula se constitui com os seguintes elementos: um senhor de escravos convive com duas negras em sua residência. A violência no trato dispensado a elas vai sendo revelado à medida que os acontecimentos são precipitados com a chegada de um novo escravo recém adquirido numa feira livre. É a partir deste núcleo de personagens que a trama ou o drama se estabelece. O confronto social Senhor versus Escravo poderia estabelecer a montagem no âmbito épico, mas os acontecimentos são dispostos em escala crescente de tensão, construindo assim uma curva dramática para florescimento do clímax e posterior desenlace da fábula. Esta é o que considero a primeira fissura entre obra e seus desdobramentos para além do palco, posto que o gênero dramático, por natureza, tende a se esgotar na sala de apresentação, ao passo que o épico – se bem estabelecido – tem mais chances de vincular suas questões para além do palco.
Equilibrando ou suavizando – mas não o suficiente – os elementos dramáticos da obra, temos o jogo dialético proposto pela unidade de tempo da ação: aberta oposição entre o tempo presente e passado. Este jogo revela-se uma excelente proposição, pois assenta a fábula no tempo histórico da escravidão negra ocorrida no Brasil até 1888, mas transpondo todas as implicações do nefasto regime escravocrata para o tempo presente. O recurso para atingir esse objetivo é simples: toda a ambientação do lugar é feita com objetos reais que são manuseados pelos atores – sabonete líquido, talheres, pratos, panos de prato, garrafa térmica, xícara e pires, toalha de banho, controle remoto de TV e até mesmo a marca das cuecas dos dois atores que ficam a mostra em determinados momentos. O figurino, neste sentido, estabelece o eixo neutro que induz nosso olhar para os objetos e não para o próprio figurino – o senhor de escravos traja calça e camiseta preta enquanto os três escravos trajam calças e camisetas brancas. Outra pista importante que situa a fábula no tempo presente são as inserções de notícias televisivas que são narradas de fora da cena em pelo menos dois momentos. Todos os casos relatados retratam vítimas reais de preconceito racial, violências ocorridas recentemente.
Todos estes elementos visuais que situam a fábula no tempo presente chocam-se com a dramaturgia que opta por uma escritura tecida na base de chavões e clichês sobre a condição racial dos negros no Brasil. Tais clichês remetem nosso olhar para o tempo passado, um tempo onde os negros eram tratados como “coisas” numa aberta relação de submissão, violência física, abusos sexuais e total humilhação moral. Nesta perspectiva o texto dramático cumpre papel importante em função do efeito de estranhamento que pretende provocar. No entanto, fica também a impressão de um texto demasiadamente melodramático, que peca pela falta de uma intriga mais elaborada, pois se limita ao embate maniqueísta entre o senhor de escravos e os escravos – clara distinção melodramática que separa os personagens bons dos maus. E como não podemos negar que a teledramaturgia brasileira exerce papel preponderante em nossa educação estética, na metade da apresentação fico com a impressão de acompanhar um folhetim novelesco de época da sessão das seis da TV Globo.           
Talvez a chave para entender essa sensação se encontre em outra faceta da dramaturgia com característica marcadamente realista, isto é, os diálogos são inspirados nos discursos e comportamentos racistas da época da escravidão. Some-se isso a encenação também realista que coloca as cenas como quadros que descrevem a situação social do negro naquela época histórica. Mesmo com o efeito de estranhamento provocado pelo choque entre os tempos da ação, os quadros são encadeados de modo à tensão crescente – como dito anteriormente – inviabilizando, comprometendo ou anulando o próprio efeito de estranhar, pois com o desenrolar da fábula nos familiarizamos com a situação. Esta é a segunda e, a meu ver, a mais grave fissura na obra, pois ela limita Negro ao contexto da própria fábula, embora faça alusão a conjuntura de preconceito racial da atualidade.  
O conjunto de atuações dos quatro atores principais da montagem contribui de modo decisivo para o aumento da tensão dramática das cenas. Amanda Alvino, Bonelly Pignatario, Tamires Tavares e Victor Peixe desenvolvem um trabalho primoroso repleto de pré-expressividade e domínio técnico do espaço. Nada realizado por eles é gratuito ou fora de propósito; o desenho das cenas é executado milimetricamente, não há passo em falso ou excessos de movimentação; a força no olhar e o vigor nas ações expressam com inteireza que a pesquisa levou a sério o treinamento energético desenvolvido pelo Grupo LUME de Campinas e aplicado como preparação para o elenco. Somos capturados para o interior dos quadros desde a simples troca de olhares entre os atuantes, carregada de tensão pre-expressiva.       
Alentos Possíveis
A experiência que tive ao conferir a montagem Negro, realizada na Casa da Atriz me proporcionou pensar uma vez mais sobre formas de resistência artivista. Embora ainda me perceba completamente esvaziado de motivação utópica, não deixa de causar impacto o encontro com o frescor revolucionário vindo do relato espontâneo de Paulo Porto sobre sua preciosa Casa da Atriz – o mesmo frescor pode ser notado em Luciana Porto. Seus olhos brilham liberdade, sonho e, sobretudo, expressam posicionamento político contundente contra uma gestão cultural falida, demagógica, elitista e nefasta. Mesmo tendo posicionamento um pouco diferente sobre o modo de enfrentar a ausência de política cultural do estado e município – pois, acredito que é necessária também uma ação coletiva de enfrentamento por parte da categoria teatral, embora tenha perdido a esperança que isso venha há ocorrer algum dia ou num futuro próximo – não posso deixar de concordar que ao manter seu centro cultural independente por cinco anos esse gesto se impõe como um autêntico “tapa com luva de pelica”, principalmente na face daqueles que se encastelaram nas secretarias de cultura de nossa cidade e do estado. Então, isso não deixa de se constituir como um alento em meio à situação kafkiana que vivemos quase passivamente há pelo menos vinte anos.
Por outro lado, entrar em contato com o frescor e vigor pré-expressivo dos atuantes da montagem me faz ter certeza de minha paixão por esta arte tão massacrada e espezinhada. Mais ainda quando percebo que há em cada um deles o ímpeto de seguir fazendo Teatro contra toda adversidade conjuntural e, o que é mais importante, com o desejo de se comunicar politicamente com a cidade e com os cidadãos moribundos.
Talvez sejam pequenas doses necessárias para abater a letargia reinante.   


23 de Novembro de 2015

Um comentário:

  1. oi, professor. o sr. pode explicar melhor o trecho abaixo? fiquei sem entender qual a relação inerente entre dramático-esgotamento e épico-ultrapassagem.

    "(...) o gênero dramático, por natureza, tende a se esgotar na sala de apresentação, ao passo que o épico – se bem estabelecido – tem mais chances de vincular suas questões para além do palco."

    obrigado.
    arthur ribeiro

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