Autor
da Crítica: Ator e diretor, mestre e doutor em Artes Cênicas,
professor da ETDUFPA.
A Cia Rubro de Teatro
não podia ter escolhido lugar melhor para estrear seu primeiro trabalho. A Casa
da Atriz, residência e espaço cultural da família Porto (Yeyé, Luciana, Juliana
e Paulo), serviu como uma luva ao espetáculo Antes de Ir Embora, protagonizado por Giscele Damasceno e Diana
Klautau, com direção de Etna Campbell – as três responsáveis pela dramaturgia.
O trabalho apresenta o reencontro entre duas irmãs, Carmen e Izabel, na casa
onde cresceram, hoje habitada por Carmen, a mais velha, e sua família. A casa
antiga da família Porto, com seu pé direito alto, janelas e portas em madeira
de lei pesadas e com desenhos estilosos, os ladrilhos hidráulicos, as marcas do
tempo e até o cachorro – que late em momentos pontuais –, é o cenário perfeito
para o encontro das duas irmãs e o destrinchar de suas histórias.
Encontramo-nos na sala com
Carmen, uma mesa e duas cadeiras. Izabel chega batendo forte na porta (a porta
mesmo da casa/teatro por onde entramos), clamando para que a irmã abra logo a
porta, porque chove muito. Entra toda molhada na casa da irmã, que não entende
a razão da repentina visita noturna de Izabel. Carmen parece recatada, presa a
valores rígidos, a irmã mais descolada, liberta. Silêncio preenchem os
estranhamentos que o tempo parece ter imposto entre elas. Dores e rancores
pairam no ar. Aos poucos as palavras desenham a história das duas irmãs, em que
vamos percebendo pouco a pouco e claramente o embate entre uma vida presa a
valores caducos e arraigados e outra em luta contra estes mesmos valores.
Carmen representa o comodismo, Izabel a revolta.
Não há nada de muito
novo e ousado na montagem. É teatro realista, drama familiar. Mas o tratamento
despojado e livre de pretensões modernóides transforma o trabalho em um espetáculo
bom de ser ver, que nos toca e nos faz refletir – não a toa os 20 lugares
estiveram lotados em todas as sessões desta primeira temporada. E as atrizes,
ainda com pequenos desequilíbrios – nada tão relevante que não se ajustará com
o tempo –, seguram bem o desenrolar da narrativa.
Descobrimos, nesta
lavagem de roupa suja entre as duas irmãs, que o pai faleceu, a mãe encontra-se
em um asilo, a mais velha ficou na casa, casou e tem uma filha com a qual não
se dá bem. A mais nova caiu no mundo, é forte e destemida, pois luta contra o
estigma e o preconceito contra aqueles que praticam o amor que não ousa dizer o
nome, como bem nomeou Oscar Wilde. É com este preconceito que a irmã mais velha
faz o primeiro ataque à Izabel, perguntando-lhe sobre sua namorada (depois, ao
falar de sua frustração sexual, pergunta como é o sexo entre duas mulheres). E assim,
em meio a ataques e afagos também, porque as irmãs se amam, vamos descobrindo
os motivos de tantas dores, de tanta revolta e tanta resignação. Carmen leva uma
vida frustrada e medíocre, mas apoiada nos valores impostos pelos pais: perdeu
a beleza de outrora, um possível grande amor, mas mantém-se recatada e do lar.
Justifica tudo isso como um modo de defender a irmã, que se rebelou, sobretudo
porque, com a desculpa de combater seu desejo pelo mesmo sexo, o pai bêbado, abusava
sexualmente dela.
Neste ponto a peça toca
em uma questão bem latente hoje, sobretudo quando nos encontramos diante do
assombroso caso de uma jovem de 16 anos estuprada por 33 homens, na cidade do
Rio de Janeiro, caso que ganhou grande repercussão nacional e internacional. É
uma dor que nos toca a todos, principalmente quando sabemos que 70% dos casos
de abuso sexual são praticados por parentes (pais, irmãos, tios) ou pessoas bem
próximas das vítimas – estas, muitas vezes, são obrigadas a calar, calam-se ou
fogem. Izabel foge, mas volta anos depois mais forte e neste derradeiro
encontro com a irmã grita sua dor e revolta a ela e a nós, um grito que se
junta ao grito de milhares de mulheres do mundo todo – mulheres hoje empoderadas
e com coragem de relatar seus casos nas redes sociais, esfregando na cara da
sociedade esta ferida exposta, fruto do machismo e do patriarcado, da
misógina ditadura do falo que não aceita
nem perdoa uma mulher no comando. A falocracia brocha, velha e velhaca que
golpeia há anos o Brasil, rouba suas divisas e deixa seu povo na indigência, e
é incapaz de se indignar quando uma filha sua é estuprada com requinte por mais
de 30 homens.
O drama de Izabel e
Carmen, o drama das irmãs, é também o drama de muitas famílias brasileiras, é
também o nosso drama. Após dizerem tudo o que tinham que dizer uma a outra, já
bêbadas de álcool e dor, as irmãs expõem o grande afeto que as une. Carmen sai
em busca de algo que deseja mostrar à irmã. Izabel aproveita e vai embora.
Carmen queda-se, resignada com a escolha que fez,
embriagada na pequenez de seu mundo medíocre. Izabel cai no mundo, volta pra
rua e segue na luta. Carmen é conformismo e aceitação, Izabel indignação e
luta.
Tem mais duas mulheres
envolvidas no trabalho: Ellen de Jah (produção) e Luciana Porto (iluminação).
Fecham a equipe Renan Coelho (preparação corporal), Kauan Amora (assessoria) e
Wan Aleixo (visualidade). Todos têm suas formações ligadas à Escola de Teatro e
Dança da UFPA. Rubro é vermelho como o sangue, as mulheres sangram, de ciclo ou
de dor. A Cia Rubro de Teatro é feminina na sua essência: que seja muito bem
vinda e siga abordando temas tão relevantes às mulheres.
Marton
Maués
30
de Maio de 2016
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