Edson
Fernando: Ator e Diretor Teatral; Professor de Teoria do Teatro da Escola de
Teatro e Dança da UFPA; Coordenador do Projeto TRIBUNA DO CRETINO
O brasão do estado localizado
ao fundo do palácio do Rei Édipo nos ata irremediavelmente aos acontecimentos
trágicos da Cidade-Estado de Tebas. O elemento estranho ao texto de Sófocles é,
talvez, o que mais o potencializa na montagem da Escola de Teatro e Dança da
UFPA – ETDUFPA, resultado dos cursos técnicos de Figurino, Cenografia e Ator,
com curtíssima temporada no Museu do Estado do Pará – MEP.
Além de estranho à
tragédia o supracitado brasão, sendo parte integrante do próprio Museu, não
poderia ser retirado dali, ainda que a equipe de Cenografia assim o desejasse;
talvez um elemento cenográfico conseguisse ocultá-lo de nossas vistas, mas
felizmente isso não ocorre; a imagem emblemática localizada entre as colunas
centrais do museu é o fundo cenográfico adequado para atualizar a tragédia do
desventurado rei tebano, remetendo-o e remetendo-nos ao próprio destino trágico
em curso no estado do Pará há décadas. Distantes no tempo e no espaço, Tebas e
o Pará sofreriam do mesmo mal arrebatador: o governante que outrora
apresentasse como ícone de esperança e prosperidade para o povo de sua cidade,
numa questão tempo se transforma no algoz nefasto que perpetra o caos e a
miséria.
Sob a vigilância do brasão,
acompanhamos o desenrolar dos fatos já conhecidos da trajetória de ascensão e
queda de Édipo. O espelho que se constrói e que nos permite a relação com nossa
própria conjuntura local, curiosamente, é estabelecido pelo nível de requinte e
precisão presentes nos elementos formais da montagem: a suntuosidade do Museu entra
numa espécie de osmose com os figurinos e a maquiagem; a iluminação evidência
ainda mais a beleza do lugar, valorizando detalhes e construindo camadas de
contrastes – sombra a luz – que tornam a cenografia imponente; o canto inicial
preenche o espaço com uma atmosfera tensa e sombria; a ambientação sonora,
realizada ao vivo, estabelece o tom taciturno da tragédia; e o elenco de jovens
atores e atrizes que se dilatam em cena, apoderam-se do lugar com intimidade,
apropriam-se do texto rebuscado e refinado com tamanha naturalidade que o jogo
dialógico ação-reação nos mantém atentos durante toda a apresentação e, via de
regra, não cedem a exageros e canastrices nas representações dos papeis – a
exceção, neste caso, poderia ser aplicada ao papel da Jocasta, que não sofre de
canastrice, mas também não consegue acompanhar o ímpeto trágico do papel do
Édipo; quanto ao papel de Tirésias a atuação recorre a um desenho de voz que o
coloca numa linha tênue entre a caricatura e o grotesco, e isso ocorrendo no
momento da peripécia da tragédia. A direção da montagem sublima todos estes
elementos com um desenho preciso e econômico de movimentações, construindo uma
forte atmosfera de verossimilhança. Assim, é o elevado e elaborado grau
estético da montagem que nos permite a aproximação com o trágico de Sófocles.
Em outras palavras, é quando somos levados para Tebas da Grécia Clássica que
podemos nos enxergar em nossa tragédia cotidiana e familiar. A montagem nos dá
Tragédia Grega de boa qualidade, para que reconheçamos nossa tragédia paraense
miserável. O velho paradoxo de distanciar para aproximar, estranhar para
identificar, bem aplicado nesta montagem.
Tu
bem vês que Tebas se debate
numa crise de calamidades, e que nem sequer pode erguer a cabeça do abismo de
sangue em que se submergiu (...); que teu reinado não nos faça pensar que só
fomos salvos por ti, para recair no infortúnio, novamente! (...). Visto que
desejas continuar no trono, bem melhor será que reines sobre homens, do que
numa terra deserta. De que vale uma cidade, de que serve um navio, se no seu
interior não existe uma só criatura humana?
É pela boca do
Sacerdote que Sófocles nos apresenta a situação da cidade e faz questão de
alertar, desde o início, sobre os auspícios dirigidos aos que detêm o poder. O
ensinamento é universal e, portanto, se aplica perfeitamente ao nosso contexto
dominado por cidadãos que mais parecem zumbis conduzidos por demagogos de colarinho
branco.
O
orgulho é que produz o tirano; e quando tiver em vão acumulado excessos e
imprudências, precipitar-se-á do fastígio de seu poder num abismo de males, de
onde não mais poderá sair. (...) A todo aquele que se mostrar prepotente por
suas ações ou por suas palavras: (...) que uma funesta morte o castigue,
punindo-o por sua insolência!
O alerta agora vem do Coro ou, se quisermos
torná-lo mais didático, da boca do próprio povo que em situações-limite se
insurge precipitando-se com toda violência contra qualquer forma de poder, como
atesta a história universal da humanidade e como vemos novamente ocorrer em
atos julgados avessamente, por quem detém o poder, como radicalismos extremos
eclodindo de modo pontual pelo país. Em terras parauaras parece ainda haver
certo conformismo movido pela preguiça ou pela falta de um Tirésias
confrontador; do sábio adivinho ancião parece termos herdamo apenas a cegueira
estéril e imobilizadora. Melhor para os monarcas paraenses que continuam a
usurpar o poder que lhes foi concedido legalmente, quase sem nenhuma
resistência ou contestação.
Nada disso, no entanto,
poderia ser arrolado com a conjuntura local se a montagem não estivesse
ajustada aos elementos motrizes da tragédia. Desse modo, observo que a proporção
usada entre as forças geradoras da tragédia, Apolo e Dioniso – segundo a visão
do jovem Nietzsche –, é desenvolvida na montagem de modo interessante: Baco é o
soberano das cenas iniciais, a volúpia e o desregramento desencadeado por ele
afeta o coro que canta e dança lascivamente nos arremessando, logo de imediato,
para a dimensão empática dos excessos; a vontade é de fazer parte do coro,
abraçar os corpos e entrar no êxtase coletivo; nossa sensibilidade é excitada,
mas o impacto inicial logo será contido pelas representantes de Apolo, as
Pitonisas; o anuncio da profecia que se abaterá sobre Laio é o marco que
estabelece a predominância apolínea na montagem. Todo o jogo que se desencadeia
a partir de então é o tensionamento das ações que se precipitarão até a
fatídica decadência de Édipo. A direção, desse modo, parece apenas e
acertadamente perseguir as pistas e elementos presentes na própria dinâmica do
texto de Sófocles – não é por acaso que Aristóteles elege esta tragédia como
sendo um exemplo lapidar de elaboração de Reconhecimento e Peripécia.
As aves agoureiras, no
entanto, atravessam a cena em momentos pontuais da montagem, suspendendo por
alguns instantes a métrica apolínea de Sófocles para nos lembrar que é impossível
escapar dos tormentos tenebrosos determinados pelo destino. Elas – as aves
agoureiras – sempre estarão ali, tal como nossos urubus no Ver-O-Peso,
espreitando os habitantes dos palácios do poder. A ave solitária do brasão do
estado agora já possui companhia para voar. O sangue nobre de Jocasta já desce
os degraus do palácio e chega aos nossos pés. Édipo destronado e cego já pode
ser banido do poder e se dirigir até os portões da cidade. Ao atravessá-lo
cumpri seu destino trágico. O encontro do rei decaído com o povo às portas do
Museu é o sinal de que algo estranho permanece, não em Tebas, mas aqui.
A montagem se encerra;
aplaudimos a tragédia, mas não podemos deixar que a catarse nos domine a ponto
de acreditarmos que nossos males foram expurgados, pois diferente de Édipo,
nossos monarcas jamais admitirão seus erros graves, jamais se deixarão
convencer de que são a própria hemorragia do estado. Já estão cegos, mas
precisam ser banidos do palácio do poder. Não são reis nobres, apenas tiranos
disfarçados de democratas, e nossa tragédia é acreditar que a história se
incumbirá por si de expulsá-los do palácio.
Évoe!!! Os artistas de
teatro invadiram o palácio do poder!!! Não é o suficiente. “Não consideremos
feliz nenhum ser humano, enquanto não tiver atingido, sem sofrer os golpes da
fatalidade, o termo de sua vida” são as palavras derradeiras do Corifeu.
Edson
Fernando
07
de Maio de 2016
Ótima crítica, edson!
ResponderExcluirNão esperava um menor comprometimento narrativo e nenhuma isenção política de sua parte.
ResponderExcluirBravo!