Edson
Fernando: Ator e Diretor Teatral; Professor de Teoria de Teatro da UFPA;
Coordenador do Projeto TRIBUNA DO CRETINO.
Três possíveis
respostas se apresentam, de imediato, para a questão-título que move as
reflexões voltadas ao espetáculo Querem
Caferem?: Priscila Romana, Palhaça Estrelita ou o Palhaço Uisquisito. Qual
destas três personalidades seria a dona da cozinha, das receitas, dos segredos
gastronômicos e dos ingredientes secretos?
Como um detetive
tupiniquim – desengonçado e arredio aos métodos ortodoxos – resolvo seguir
algumas pistas espalhadas durante a apresentação do trabalho. A primeira delas:
quem me oferece o café? O hábito nacional de oferecer um cafezinho poderia me levar
facilmente, ao dono ou dona, do pó de café, do bule, do fogão e fatalmente da
cozinha. Surpreendo-me com a brilhante dedução, encho-me de orgulho e sinto que
posso ter uma carreira de dar inveja a Dick Tracy. Pois bem, quem oferece a
bebidinha ainda no início da apresentação é a senhorita Priscila Romana Melo. A
distinta e discreta dama que carrega no nome sua descendência direta ao
imperador Júlio Cezar, obviamente seria a proprietária da cozinha. Ela é a
primeira suspeita.
Não posso, no entanto,
me contentar com esta constatação tão rápida e rasa – isso colocaria minha
reputação de detetive em cheque, comprometendo minha aspiração de me tornar um
agente do CSI Belém. Cauteloso, resolvo continuar seguindo as pistas. E elas me
são oferecidas pela boca da própria suspeita; com ar de quem pretende jogar
conversa fora ela nos conta – enquanto passa o primeiro cafezinho – de suas
aventuras com o prestigiado Trapalhão Didi desde os tempos de sua tenra
infância. Pessoa gabaritada e importante esta Romana, penso eu em suspiros
altos e, por um instante, distraio-me sendo levado a eliminá-la da minha lista
suspeitas. Mas é só por um instante, pois logo em seguida a matreira senhorita
deixa escapar, lacanianamente, uma informação valiosa: a danada é nutricionista
formada de carteirinha, Mestre em embutidos agridoces. Não me restam dúvidas.
Ela é a operadora de todo o esquema gastronômico, responsável pela organização
e uso da cozinha. Conclusão digna de rivalizar com o Inspetor Clouseau.
Minhas certezas se
evadem num passe de mágica, pois furtivamente por detrás de uma simples xícara
de café a jovem Romana desaparece e dá lugar a personalidade muito mais
suspeita, isto é, a Palhaça Estrelita.
Chegando como quem não
quer nada, a palhaça logo procura se mostrar íntima dos utensílios da cozinha.
Risonha e cheia de alegria, Estrelita parece uma criança de cinco anos que foi
deixada em casa sozinha e que se vê descobrindo o universo da culinária; parece
aquela criança deslumbrada com a possibilidade de imitar a mãe no preparo da
comida, no pilotar do fogão, enfim, na combinação pouco criteriosa entre
ingredientes suspeitos de provocar uma bomba de dor de barriga. Embora as
evidências apontem agora para Estrelita, pois é ela quem efetivamente se
apropriada de toda a cozinha – dos utensílios aos ingredientes – minha intuição
a lá Ed Mort me deixa intrigado. Há algo estranho na desenvoltura da palhaça
doce: seus movimentos e partitura corporal parecem um pouco fora do ponto,
falta um pouco de sal e azeite no trato com o jogo rítmico, com a batida da
música, com o desenho dos gestos, com o gramelô
usado com o bichinho de pelúcia. A soma desses ingredientes faz de Estrelita
uma refeição palatável, mas com a suspeita de que o sal, o azeite e algumas
ervas aromáticas poderiam torná-la muito mais apetitosa.
Antes, porém, que
conseguisse chegar a uma conclusão sobre Estrelita, a danada também se evade e,
desta vez, sem ao menos precisar de uma xícara de café pra se esconder. Bem aos
nossos olhos nos escapa Estrelita sem que retorne Romana, mas fazendo surgir o
terceiro suspeito: o Palhaço Uisquisito. O impacto de sua aparição é
incomensuravelmente maior. Se prato fosse, seria uma autêntica degustação
paraense: partitura facial e corporal precisas, ritmo cadenciado e equilibrado,
fala rabugenta arrastada, qualidade de presença psicofísica dilatada, controle
no jogo com o inusitado, enfim, uma verdadeira maniçoba do Círio. Meu apetite
se abre na hora.
Mas algo estranho
também ocorre com este novo suspeito. Não propriamente com ele, mas na sua
relação com o lugar. O Palhaço parece conhecer aquela cozinha, reconhece o
lugar, mas não parece ser seu dono. Mas que isso, parece ser apenas um
visitante recorrente, mas não dono. Logo, meu faro de Sherlock Holmes me faz
perceber que este palhaço amargo – no bom sentido – não pertence a cozinha, mas
passeia por ela; Uisquisito pertence a outro universo: universo do Bar, da
boemia e da sedução cafajeste. Em pouco tempo, sua presença na cozinha é o
suficiente para nos esquecermos da cozinha e atentarmos somente para sua figura
e jogo envolvente. A tentativa de aproximá-lo da cozinha por meio de seu jogo
com a comida provoca um efeito curioso, pois serve para demonstrar que sua
receita de sanduíche de ovo funciona independente da cozinha – ele não utiliza
nenhum utensílio dela –, funcionaria se ele tentasse realizá-la em uma esquina
ou mesmo numa parada de ônibus. O mesmo se aplica ao seu truque de sedução
feito com o ovo e a garrafa. Uisquisito não precisa da cozinha, logo não pode
ser seu dono.
Após o levantamento das
pistas, a catalogação dos suspeitos e a averiguação do local, arrisco uma
conclusão para o enigma que conduz esta investigação: Estrelita é a dona da
cozinha – mas precisa apurar a combinação dos ingredientes – Uisquisito é o
dono da casa – está pronto para visitar qualquer cômodo e, principalmente, para
suas saídas boêmias – e Priscila Romana
é a dona da vida dos dois palhaços – a Mestre Cuca que tornou possível a
insólita e apetitosa degustação agridoce servida com requinte e carinho.
Haverá outros pratos
para serem servidos? A expectativa é que nossa chefe de cozinha não demore
muito a responder.
Edson
Fernando
05
de Maio de 2016.
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