quinta-feira, 5 de maio de 2016

De quem é a cozinha? – Por Edson Fernando

Edson Fernando: Ator e Diretor Teatral; Professor de Teoria de Teatro da UFPA; Coordenador do Projeto TRIBUNA DO CRETINO.

Três possíveis respostas se apresentam, de imediato, para a questão-título que move as reflexões voltadas ao espetáculo Querem Caferem?: Priscila Romana, Palhaça Estrelita ou o Palhaço Uisquisito. Qual destas três personalidades seria a dona da cozinha, das receitas, dos segredos gastronômicos e dos ingredientes secretos?
Como um detetive tupiniquim – desengonçado e arredio aos métodos ortodoxos – resolvo seguir algumas pistas espalhadas durante a apresentação do trabalho. A primeira delas: quem me oferece o café? O hábito nacional de oferecer um cafezinho poderia me levar facilmente, ao dono ou dona, do pó de café, do bule, do fogão e fatalmente da cozinha. Surpreendo-me com a brilhante dedução, encho-me de orgulho e sinto que posso ter uma carreira de dar inveja a Dick Tracy. Pois bem, quem oferece a bebidinha ainda no início da apresentação é a senhorita Priscila Romana Melo. A distinta e discreta dama que carrega no nome sua descendência direta ao imperador Júlio Cezar, obviamente seria a proprietária da cozinha. Ela é a primeira suspeita.
Não posso, no entanto, me contentar com esta constatação tão rápida e rasa – isso colocaria minha reputação de detetive em cheque, comprometendo minha aspiração de me tornar um agente do CSI Belém. Cauteloso, resolvo continuar seguindo as pistas. E elas me são oferecidas pela boca da própria suspeita; com ar de quem pretende jogar conversa fora ela nos conta – enquanto passa o primeiro cafezinho – de suas aventuras com o prestigiado Trapalhão Didi desde os tempos de sua tenra infância. Pessoa gabaritada e importante esta Romana, penso eu em suspiros altos e, por um instante, distraio-me sendo levado a eliminá-la da minha lista suspeitas. Mas é só por um instante, pois logo em seguida a matreira senhorita deixa escapar, lacanianamente, uma informação valiosa: a danada é nutricionista formada de carteirinha, Mestre em embutidos agridoces. Não me restam dúvidas. Ela é a operadora de todo o esquema gastronômico, responsável pela organização e uso da cozinha. Conclusão digna de rivalizar com o Inspetor Clouseau.
Minhas certezas se evadem num passe de mágica, pois furtivamente por detrás de uma simples xícara de café a jovem Romana desaparece e dá lugar a personalidade muito mais suspeita, isto é, a Palhaça Estrelita.
Chegando como quem não quer nada, a palhaça logo procura se mostrar íntima dos utensílios da cozinha. Risonha e cheia de alegria, Estrelita parece uma criança de cinco anos que foi deixada em casa sozinha e que se vê descobrindo o universo da culinária; parece aquela criança deslumbrada com a possibilidade de imitar a mãe no preparo da comida, no pilotar do fogão, enfim, na combinação pouco criteriosa entre ingredientes suspeitos de provocar uma bomba de dor de barriga. Embora as evidências apontem agora para Estrelita, pois é ela quem efetivamente se apropriada de toda a cozinha – dos utensílios aos ingredientes – minha intuição a lá Ed Mort me deixa intrigado. Há algo estranho na desenvoltura da palhaça doce: seus movimentos e partitura corporal parecem um pouco fora do ponto, falta um pouco de sal e azeite no trato com o jogo rítmico, com a batida da música, com o desenho dos gestos, com o gramelô usado com o bichinho de pelúcia. A soma desses ingredientes faz de Estrelita uma refeição palatável, mas com a suspeita de que o sal, o azeite e algumas ervas aromáticas poderiam torná-la muito mais apetitosa.
Antes, porém, que conseguisse chegar a uma conclusão sobre Estrelita, a danada também se evade e, desta vez, sem ao menos precisar de uma xícara de café pra se esconder. Bem aos nossos olhos nos escapa Estrelita sem que retorne Romana, mas fazendo surgir o terceiro suspeito: o Palhaço Uisquisito. O impacto de sua aparição é incomensuravelmente maior. Se prato fosse, seria uma autêntica degustação paraense: partitura facial e corporal precisas, ritmo cadenciado e equilibrado, fala rabugenta arrastada, qualidade de presença psicofísica dilatada, controle no jogo com o inusitado, enfim, uma verdadeira maniçoba do Círio. Meu apetite se abre na hora.
Mas algo estranho também ocorre com este novo suspeito. Não propriamente com ele, mas na sua relação com o lugar. O Palhaço parece conhecer aquela cozinha, reconhece o lugar, mas não parece ser seu dono. Mas que isso, parece ser apenas um visitante recorrente, mas não dono. Logo, meu faro de Sherlock Holmes me faz perceber que este palhaço amargo – no bom sentido – não pertence a cozinha, mas passeia por ela; Uisquisito pertence a outro universo: universo do Bar, da boemia e da sedução cafajeste. Em pouco tempo, sua presença na cozinha é o suficiente para nos esquecermos da cozinha e atentarmos somente para sua figura e jogo envolvente. A tentativa de aproximá-lo da cozinha por meio de seu jogo com a comida provoca um efeito curioso, pois serve para demonstrar que sua receita de sanduíche de ovo funciona independente da cozinha – ele não utiliza nenhum utensílio dela –, funcionaria se ele tentasse realizá-la em uma esquina ou mesmo numa parada de ônibus. O mesmo se aplica ao seu truque de sedução feito com o ovo e a garrafa. Uisquisito não precisa da cozinha, logo não pode ser seu dono.   
Após o levantamento das pistas, a catalogação dos suspeitos e a averiguação do local, arrisco uma conclusão para o enigma que conduz esta investigação: Estrelita é a dona da cozinha – mas precisa apurar a combinação dos ingredientes – Uisquisito é o dono da casa – está pronto para visitar qualquer cômodo e, principalmente, para suas saídas boêmias –  e Priscila Romana é a dona da vida dos dois palhaços – a Mestre Cuca que tornou possível a insólita e apetitosa degustação agridoce servida com requinte e carinho.
Haverá outros pratos para serem servidos? A expectativa é que nossa chefe de cozinha não demore muito a responder.
Edson Fernando

05 de Maio de 2016.  

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