segunda-feira, 2 de maio de 2016

A conjuntura nacional como fábula grotesca ou da Possibilidade de se fazer sátira política sem Brecht – Por Edson Fernando

Edson Fernando: Ator e Diretor Teatral, Professor de Teoria do Teatro na UFPA.

O genial Nelson Rodrigues certa vez vaticinou, a meu ver com precisão, sobre a cultura do povo brazuca: “O brasileiro é um feriado.” Por sua vez, o jornalista e colunista do Jornal Folha de São Paulo, José Simão, não cansa de repetir em suas bem humoradas crônicas políticas que “O Brasil é o país da piada pronta.” Seguindo a linha de pensamento desses autores, eu diria que o Brasil é o país da sátira pronta, do gestus social pronto, da fábula política capaz de hibridizar as obras de Bertolt Brecht, Alfred Jarry e Franz Kafta. Imersos nesta estranha, mas produtiva, matéria estético-social, como lidar e se relacionar com esta realidade tão estetizada, numa cultura do espetáculo como a que predomina atualmente? Como superar o esteticismo da realidade e revertê-lo em obra artística sem recair ou nas armadilhas ideológico-panfletárias, ou na mera imitação formal dos personagens e situações? Em outras palavras: como fazer teatro com dialética sem abrir mão da primazia dos elementos poéticos da criação?
Antes de articular estas questões com Baden-Baden: Sobre o Acordo, montagem teatral conclusão das turmas do 2º Ano dos Cursos Técnicos de Cenografia, Figurino e Ator da Escola de Teatro e Dança da UFPA, apresento o esboço de possíveis roteiros para exercício de criação poética. Trata-se de uma tentativa de demonstrar o potencial estético presente em nossa realidade conjuntural.         
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Breve Roteiro para Exercício Poético    
Quadro 1
República Democrática de Rilexine. O Rei-Barbudo chega ao poder depois de três tentativas malsucedidas. Ufanista incorrigível resolve reescrever os fatos com sua própria caneta do tempo professando repetidas vezes a máxima “Nunca antes na história desta república...”. Tudo se transforma miraculosamente. O Povo dança Bundalelê Music.

Quadro 2
República Democrática de Rilexine – mesmo ano. A Câmara Alta e a Câmara Baixa do Legislativo são compostas pelos mesmos 300 Picaretas de sempre. O Rei-Barbudo, embora já desacostumado do trabalho pesado dos tempos do sindicato, resolve trabalhar com as Picaretas a pretexto de construir obras sociais. A indústria das Bolsas prospera. O Povo está feliz e dança o Aiseeutepego Music.    

Quadro 3
República Democrática de Rilexine – 1ª Passagem de Tempo. O Rei-Barbudo é traído por um dos Picaretas. Mantendo o ufanismo de sempre o Rei-Barbudo se dirige até o terraço de uma pizzaria no centro da república e, vestido de anjo, anuncia o novo decreto nacional: “O Rei nunca sabe de nada!!!”. O Povo perde a cena hilária por estar à frente da TV assistindo o último capítulo do melodrama das nove.

Quadro 4
República Democrática de Rilexine – 2ª Passagem de Tempo. Cansado de beber leite na teta da vaca, mas disposto a não mudar sua dieta rica de lactose, o Rei-Barbudo convoca a Rainha-Louca para assumir o trono. A Câmara Alta e a Câmara Baixa do Legislativo são renovadas por Picaretas que praticam tiro ao alvo enquanto lêem a Bíblia. O Povo dança Rebolacion Music.

Quadro 5
República Democrática de Rilexine – mesmo ano. A eloqüente Rainha-Louca por não estar acostumada com o trono resolve promulgar novamente a tábua com os dez mandamentos da república: “1 – Derrubar árvores plantadas pela natureza é altamente lucrativo; 2 – Essas estradas de água são a forma mais barata de transporte; 3 – Você pode chuchar uma arvore e cair uma manga na sua cabeça; 4 – A mulher abre o negócio, tem seus filhos, cria os filhos e se sustenta, tudo isso abrindo o negócio; 5 – Eu vi. Você veja.... Eu já vi, parei de ver. Voltei a ver e acho que o Neymar e o Ganso tem essa capacidade de fazer a gente olhar; 6 – A auto-suficiência sempre foi insuficiente; 7 – Esse respeito pelo ET de Varginha está garantido; 8 – O meio ambiente é sem dúvida nenhuma uma ameaça ao desenvolvimento sustentável; 9 – Eu ia ler os nomes, não vou mais. Por que não vou mais? Eu não estou achando os nomes. Logo, não posso lê-los. 10 – Depois que a pasta de dente sai do dentifrício ela dificilmente volta pra dentro do dentifrício. 11 – O dia da criança é o dia da mãe, do pai e das professoras, mas também é o dia dos animais, sempre que você olha uma criança, há sempre uma figura oculta, que é um cachorro atrás.” O gigante Povo acorda, mas, por coincidência, está passando a final do BBB e ele resolve descansar mais um pouco em frente a TV. O Rei-Barbudo se finge de morto.

Quadro 6
República Democrática de Rilexine – 3ª Passagem de Tempo. O trono da Rainha-Louca está em frangalhos. Para se redimir e se manter ainda confortável na cadeira de monarca resolve, então, investir em promessas pra Santo Expedito: fazer a economia voltar a crescer, reduzir a conta de energia elétrica, não aumentar impostos, assegurar direitos trabalhistas, ampliar acesso a saúde, melhorar qualidade da educação. O Povo assiste ao campeonato mundial de gol e, embora frustrado com a surra de 7 x 1 que a seleção nacional tomou, segue feliz dançando o Lepolepo Music. O Rei-Barbudo se finge de morto.

Quadro 7
 República Democrática de Rilexine – 4ª Passagem de Tempo. O trono da Rainha-Louca está salvo, mas precisa de reforma. Sem fundos em caixa, a monarca resolve fazer uma vaquinha; em sistemático e pessoal passeio de bicicleta pelo reino, segue visitando escolas, hospitais e universidades exigindo a colaboração em dinheiro de cada súdito. A medida não é bem vinda e a Rainha-Louca descobre que o pneu da bicicleta está furado. O Povo fica indignado – dado importante, pois é a primeira vez que isso ocorre em décadas – e sai às ruas exigindo a cabeça da Rainha-Louca para fazer uma sopa. O Rei-Barbudo se finge de morto.

Quadro 8
República Democrática de Rilexine – mesmo ano. Um juiz da província de Moro – localizada ao sul da capital da república – promove um torneio de caça aos lobos e às raposas. Temendo deixar os rabos expostos à caça implacável, a Câmara Alta e a Câmara Baixa do Legislativo se resguardam elegendo um Lobo-Mor para comandar cada uma das alcatéias. Mais sanguinário que os demais, o Lobo-Mor, Edward I, presidente da Câmara Baixa, resolve devorar o fígado da Rainha-Louca pra salvar o próprio rabo. O Rei-Barbudo ressurge das cinzas, mas encontrando-se desdentado, não consegue defender nem a si mesmo e nem a Rainha-Louca.

Quadro 9
República Democrática de Rilexine – mesmo ano. A república está dividida. De um lado os que odeiam a Rainha-Louca por ela usar sempre o mesmo vestido vermelho; do outro, os que não curtem a Rainha-Louca, mas diante de sua insanidade desmedida se apiedam e resolvem defender o trono da monarca, mas não a monarca. O Rei-Barbudo mostra a boca desdentada, mas não assusta ninguém.     

Quadro 10
 República Democrática de Rilexine – mesmo ano. É uma grande festa. Os lobos da Câmara Baixa, capitaneado por Edward I, reúnem-se para cortar a cabeça da Rainha-Louca. Atada a guilhotina ela deve ouvir os discursos de cada lobo antes da decisão final. Eles capricham no confete e transmitem nacionalmente o show de patriotismo: uivam homenagens a antigos torturadores, pastores, família, aos animais de estimação e agregados. O Rei-Barbudo volta a se fingir de morto.
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Os dez quadros apresentados dialogam diretamente com a situação nacional do Brasil. Mas que isso, tem sua linha de ações centrais estruturadas observando o quadro sócio-político-econômico que atravessamos. A estrutura épica permite distanciar personagens e situações, enxergá-los na perspectiva de seus papéis sociais, mas pouco esforço precisou ser investido para engendrar ficção, pois não é necessário, na medida em que a própria situação real se incumbiu de munir cada quadro com doses maiores ou menores de estranhamento. A realidade é atravessada por fatos, burlescos, grotescos, nefastos, desumanos e sombrios, como se ela própria seguisse o roteiro de uma peça épica. A similitude é tamanha que em algumas passagens sequer é necessário inventar as falas dos personagens principais. O material da peça, portanto, encontra-se pronto em nossa atualidade, como se já tivesse passado por um tratamento estético. Como problematizá-lo na dimensão estética do palco teatral, pois se considerarmos que ele já se encontra estetizado, não recairíamos numa meta metalinguagem? Conseguiríamos romper com este ciclo vicioso?  
Enquanto assistia Baden-Baden: Sobre o Acordo, essas questões foram aos poucos me consumindo. Cada tentativa da montagem teatral de estabelecer conexão direta com os fatos da nossa realidade política me deixava mais inquieto, pois minha sensação era de que algo ali não se coadunava. Cito duas imagens projetadas em vídeo que considero particularmente emblemáticas: as imagens do deputado federal Jair Bolsonaro; e fotos da irmã Dorothy Stang assassinada com tiros na cabeça e no corpo. Ambas remetem a fatos históricos traumáticos para o país. Em ambas, a potência da imagem é capaz de me devorar pela crueldade real que representam; e então por serem tão potentes, elas se bastam em si, se consolidam no plano dos fatos históricos, me desplugando do plano narrativo da peça. Embora compreenda o propósito de colocar as referidas imagens no contexto da discussão do enredo da montagem, isto é, a problematização do progresso científico na perspectiva social, acredito que são imagens pouco afeitas ao embate dialético com outro contexto, pois talvez já possuam uma dialética social própria. Trata-se de mais um caso onde os fatos históricos – pelo modo completamente absurdo e surreal com que ocorreram – testemunham uma estetização atroz da realidade. Como tematizá-los na atualidade é um grande desafio.   
Chego, então, a questão que me punge durante boa parte da montagem: como estabelecer dialética com uma realidade de estética atroz? Como confluir, articular ou implodir esses roteiros prontos que o país e o mundo vêm colecionando ao longo da história? Como tornar o palco o lugar adequado para romper esta lógica delirante, grotesca e estetizante?
Certamente não tenho respostas. Certamente não as encontraremos nos escritos ou peças de Brecht. E o motivo é simples: não há formulas. O próprio Brecht era arredio a idéia de tornar-se um modelo a ser seguido. Estas observações servem, então, para alertar que o que compartilho aqui são minhas impressões críticas, inquietações e angustias de quem também tenta construir um discurso dialético que entre em rota de colisão com a realidade, e não máximas categóricas com o intuito de demonstrar o modo como o teatro dialético deve ser feito. Um caminho útil demonstrado por Brecht para se fazer dialética no palco é primeiramente fazer dialética na vida. E quando, então, estivermos ambientados com a dialética na vida, quando nos reconhecermos como agentes da dialética, então, estaremos prontos para transportá-la para o processo criativo, fazendo do próprio processo uma dialética evitando tratá-la como elemento estético, técnico ou formal – vide pequeno ensaio intitulado “A dança ignorada de Brecht”, de Eugênio Barba (2012, p.106).
Outro elemento angustiante, neste sentido, é a relação palco-plateia proposta pela montagem. Mesmo com o palco ostentando somente os gigantescos elementos cenográficos – pedaços da fuselagem de um avião –, desprovido de cadeiras e panadas, mesmo com a dinâmica das cenas variando de lugar exigindo que o espectador acompanhe e se dirija para onde cada uma cena irá acontecerá, mesmo com os atuantes se dirigindo constante e diretamente para os espectadores, ainda sim considero que temos o estabelecimento da quarta parede. Estou dentro do jogo, mas não jogo efetivamente, pois o jogo é tecido milimetricamente – méritos da direção e do ímpeto e execução técnica do elenco – entre o coro e os solistas ao longo de quase todas as cenas.  E aqui outro elemento me inquieta: o jogo entre coro e solista é tão forte, ambos empregam tanta energia, volume de voz e ímpeto no uso das palavras que, a meu ver, vai se estabelecendo um verniz dramático na peça, um tom esquisitamente melodramático que emprenha as cenas de um sentimentalismo desnecessário e estéril. O canto e a trilha sonora também corroboram com essa percepção.
É sintomático que a montagem opte por começar e terminar a narrativa fora do teatro. Revela o desejo de ultrapassar o palco, as paredes, mas também as convenções teatrais estabelecendo relação direta com o mundo. Duas considerações finais sobre esta questão: 1 – O início da apresentação: o elenco em peso invade a frente do teatro aos gritos, berros e uivos; uma massa sonora disforme que ainda não conseguimos identificar, nos deixa sobressaltados. Eu e alguns amigos, por alguns instantes, acreditamos se tratar de um assalto ou arrastão, sintoma de cidadãos que se sentem completamente desprotegidos diante da avassaladora violenta que nos assola. A dialética com o mundo acontece na sua inteireza, neste instante. Identificamos o elenco e a dialética é rompida, dando vez as convenções teatrais. Os fragmentos de poema ditos na frente do teatro não conseguem exercer em mim a mesma dialética experimentada há poucos instantes – a sensação do sobressalto inicial. Vai se estabelecendo e ficando mais nítida a separação entre realidade e fábula teatral, em prejuízo desta última que me soa clichê em alguns momentos como, por exemplo, quando se recita os versos de Arnaldo Antunes, Sérgio Brito e Marcelo Fromer – Como é água / bebida é pasto/ Você tem fome de que? –. O contraste com a realidade se revela tão grande que os versos, embora permaneçam atuais, não conseguem me mobilizar pra lugar nenhum. 2 – O final da apresentação: o elenco inteiro abandona o palco e se dirige para fora do teatro. Somos deixados pra trás; ficamos sós, “aprisionados” dentro da caixa preta sem ao saber ao certo o que fazer; as pontes com o mundo mais uma vez são fragilizadas; se levantamos e saímos do teatro é para ir ao encontro dos artistas, agradecer-lhes por seu ofício bem executado, e não para intervir, modificar ou implodir os valores do mundo. A dialética com o mundo novamente se vê fragilizada.
Até quando continuaremos confinados às quatro paredes do teatro? Guarnecidos pelas muralhas dos nossos castelos institucionais perdemos a oportunidade de intervir na realidade que clama para ser estetizada, não pela via da desfaçatez politiqueira rasa e sensacionalista, mas da dialética capaz de demolir o escárnio dissimulado daqueles que se dizem homens públicos de bem, com um escárnio criativo ilimitadamente voraz contra todas as cores e bandeiras ideológicas.

Edson Fernando
         01 de Maio de 2016               

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