domingo, 8 de maio de 2016

Édipo Atualizado Sem Truques – Por Edson Fernando

Edson Fernando: Ator e Diretor Teatral; Professor de Teoria do Teatro da Escola de Teatro e Dança da UFPA; Coordenador do Projeto TRIBUNA DO CRETINO

O brasão do estado localizado ao fundo do palácio do Rei Édipo nos ata irremediavelmente aos acontecimentos trágicos da Cidade-Estado de Tebas. O elemento estranho ao texto de Sófocles é, talvez, o que mais o potencializa na montagem da Escola de Teatro e Dança da UFPA – ETDUFPA, resultado dos cursos técnicos de Figurino, Cenografia e Ator, com curtíssima temporada no Museu do Estado do Pará – MEP.
Além de estranho à tragédia o supracitado brasão, sendo parte integrante do próprio Museu, não poderia ser retirado dali, ainda que a equipe de Cenografia assim o desejasse; talvez um elemento cenográfico conseguisse ocultá-lo de nossas vistas, mas felizmente isso não ocorre; a imagem emblemática localizada entre as colunas centrais do museu é o fundo cenográfico adequado para atualizar a tragédia do desventurado rei tebano, remetendo-o e remetendo-nos ao próprio destino trágico em curso no estado do Pará há décadas. Distantes no tempo e no espaço, Tebas e o Pará sofreriam do mesmo mal arrebatador: o governante que outrora apresentasse como ícone de esperança e prosperidade para o povo de sua cidade, numa questão tempo se transforma no algoz nefasto que perpetra o caos e a miséria.
Sob a vigilância do brasão, acompanhamos o desenrolar dos fatos já conhecidos da trajetória de ascensão e queda de Édipo. O espelho que se constrói e que nos permite a relação com nossa própria conjuntura local, curiosamente, é estabelecido pelo nível de requinte e precisão presentes nos elementos formais da montagem: a suntuosidade do Museu entra numa espécie de osmose com os figurinos e a maquiagem; a iluminação evidência ainda mais a beleza do lugar, valorizando detalhes e construindo camadas de contrastes – sombra a luz – que tornam a cenografia imponente; o canto inicial preenche o espaço com uma atmosfera tensa e sombria; a ambientação sonora, realizada ao vivo, estabelece o tom taciturno da tragédia; e o elenco de jovens atores e atrizes que se dilatam em cena, apoderam-se do lugar com intimidade, apropriam-se do texto rebuscado e refinado com tamanha naturalidade que o jogo dialógico ação-reação nos mantém atentos durante toda a apresentação e, via de regra, não cedem a exageros e canastrices nas representações dos papeis – a exceção, neste caso, poderia ser aplicada ao papel da Jocasta, que não sofre de canastrice, mas também não consegue acompanhar o ímpeto trágico do papel do Édipo; quanto ao papel de Tirésias a atuação recorre a um desenho de voz que o coloca numa linha tênue entre a caricatura e o grotesco, e isso ocorrendo no momento da peripécia da tragédia. A direção da montagem sublima todos estes elementos com um desenho preciso e econômico de movimentações, construindo uma forte atmosfera de verossimilhança. Assim, é o elevado e elaborado grau estético da montagem que nos permite a aproximação com o trágico de Sófocles. Em outras palavras, é quando somos levados para Tebas da Grécia Clássica que podemos nos enxergar em nossa tragédia cotidiana e familiar. A montagem nos dá Tragédia Grega de boa qualidade, para que reconheçamos nossa tragédia paraense miserável. O velho paradoxo de distanciar para aproximar, estranhar para identificar, bem aplicado nesta montagem.

Tu bem vês que Tebas se debate numa crise de calamidades, e que nem sequer pode erguer a cabeça do abismo de sangue em que se submergiu (...); que teu reinado não nos faça pensar que só fomos salvos por ti, para recair no infortúnio, novamente! (...). Visto que desejas continuar no trono, bem melhor será que reines sobre homens, do que numa terra deserta. De que vale uma cidade, de que serve um navio, se no seu interior não existe uma só criatura humana?

É pela boca do Sacerdote que Sófocles nos apresenta a situação da cidade e faz questão de alertar, desde o início, sobre os auspícios dirigidos aos que detêm o poder. O ensinamento é universal e, portanto, se aplica perfeitamente ao nosso contexto dominado por cidadãos que mais parecem zumbis conduzidos por demagogos de colarinho branco.

O orgulho é que produz o tirano; e quando tiver em vão acumulado excessos e imprudências, precipitar-se-á do fastígio de seu poder num abismo de males, de onde não mais poderá sair. (...) A todo aquele que se mostrar prepotente por suas ações ou por suas palavras: (...) que uma funesta morte o castigue, punindo-o por sua insolência!        

 O alerta agora vem do Coro ou, se quisermos torná-lo mais didático, da boca do próprio povo que em situações-limite se insurge precipitando-se com toda violência contra qualquer forma de poder, como atesta a história universal da humanidade e como vemos novamente ocorrer em atos julgados avessamente, por quem detém o poder, como radicalismos extremos eclodindo de modo pontual pelo país. Em terras parauaras parece ainda haver certo conformismo movido pela preguiça ou pela falta de um Tirésias confrontador; do sábio adivinho ancião parece termos herdamo apenas a cegueira estéril e imobilizadora. Melhor para os monarcas paraenses que continuam a usurpar o poder que lhes foi concedido legalmente, quase sem nenhuma resistência ou contestação. 
Nada disso, no entanto, poderia ser arrolado com a conjuntura local se a montagem não estivesse ajustada aos elementos motrizes da tragédia. Desse modo, observo que a proporção usada entre as forças geradoras da tragédia, Apolo e Dioniso – segundo a visão do jovem Nietzsche –, é desenvolvida na montagem de modo interessante: Baco é o soberano das cenas iniciais, a volúpia e o desregramento desencadeado por ele afeta o coro que canta e dança lascivamente nos arremessando, logo de imediato, para a dimensão empática dos excessos; a vontade é de fazer parte do coro, abraçar os corpos e entrar no êxtase coletivo; nossa sensibilidade é excitada, mas o impacto inicial logo será contido pelas representantes de Apolo, as Pitonisas; o anuncio da profecia que se abaterá sobre Laio é o marco que estabelece a predominância apolínea na montagem. Todo o jogo que se desencadeia a partir de então é o tensionamento das ações que se precipitarão até a fatídica decadência de Édipo. A direção, desse modo, parece apenas e acertadamente perseguir as pistas e elementos presentes na própria dinâmica do texto de Sófocles – não é por acaso que Aristóteles elege esta tragédia como sendo um exemplo lapidar de elaboração de Reconhecimento e Peripécia.      
As aves agoureiras, no entanto, atravessam a cena em momentos pontuais da montagem, suspendendo por alguns instantes a métrica apolínea de Sófocles para nos lembrar que é impossível escapar dos tormentos tenebrosos determinados pelo destino. Elas – as aves agoureiras – sempre estarão ali, tal como nossos urubus no Ver-O-Peso, espreitando os habitantes dos palácios do poder. A ave solitária do brasão do estado agora já possui companhia para voar. O sangue nobre de Jocasta já desce os degraus do palácio e chega aos nossos pés. Édipo destronado e cego já pode ser banido do poder e se dirigir até os portões da cidade. Ao atravessá-lo cumpri seu destino trágico. O encontro do rei decaído com o povo às portas do Museu é o sinal de que algo estranho permanece, não em Tebas, mas aqui.
A montagem se encerra; aplaudimos a tragédia, mas não podemos deixar que a catarse nos domine a ponto de acreditarmos que nossos males foram expurgados, pois diferente de Édipo, nossos monarcas jamais admitirão seus erros graves, jamais se deixarão convencer de que são a própria hemorragia do estado. Já estão cegos, mas precisam ser banidos do palácio do poder. Não são reis nobres, apenas tiranos disfarçados de democratas, e nossa tragédia é acreditar que a história se incumbirá por si de expulsá-los do palácio.
Évoe!!! Os artistas de teatro invadiram o palácio do poder!!! Não é o suficiente. “Não consideremos feliz nenhum ser humano, enquanto não tiver atingido, sem sofrer os golpes da fatalidade, o termo de sua vida” são as palavras derradeiras do Corifeu.        
Edson Fernando

07 de Maio de 2016 

2 comentários:

  1. Não esperava um menor comprometimento narrativo e nenhuma isenção política de sua parte.
    Bravo!

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