Edson
Fernando: Ator e Diretor Teatral, Professor de Teoria do Teatro na UFPA.
O genial Nelson
Rodrigues certa vez vaticinou, a meu ver com precisão, sobre a cultura do povo
brazuca: “O brasileiro é um feriado.” Por sua vez, o jornalista e colunista do
Jornal Folha de São Paulo, José Simão, não cansa de repetir em suas bem
humoradas crônicas políticas que “O Brasil é o país da piada pronta.” Seguindo
a linha de pensamento desses autores, eu diria que o Brasil é o país da sátira
pronta, do gestus social pronto, da fábula
política capaz de hibridizar as obras de Bertolt Brecht, Alfred Jarry e Franz
Kafta. Imersos nesta estranha, mas produtiva, matéria estético-social, como
lidar e se relacionar com esta realidade tão estetizada, numa cultura do
espetáculo como a que predomina atualmente? Como superar o esteticismo da
realidade e revertê-lo em obra artística sem recair ou nas armadilhas
ideológico-panfletárias, ou na mera imitação formal dos personagens e
situações? Em outras palavras: como fazer teatro com dialética sem abrir mão da
primazia dos elementos poéticos da criação?
Antes de articular
estas questões com Baden-Baden: Sobre o
Acordo, montagem teatral conclusão das turmas do 2º Ano dos Cursos Técnicos
de Cenografia, Figurino e Ator da Escola de Teatro e Dança da UFPA, apresento o
esboço de possíveis roteiros para exercício de criação poética. Trata-se de uma
tentativa de demonstrar o potencial estético presente em nossa realidade
conjuntural.
*
* *
Breve
Roteiro para Exercício Poético
Quadro
1
República Democrática
de Rilexine. O Rei-Barbudo chega ao poder depois de três tentativas
malsucedidas. Ufanista incorrigível resolve reescrever os fatos com sua própria
caneta do tempo professando repetidas vezes a máxima “Nunca antes na história
desta república...”. Tudo se transforma miraculosamente. O Povo dança Bundalelê Music.
Quadro
2
República Democrática
de Rilexine – mesmo ano. A Câmara Alta e a Câmara Baixa do Legislativo são
compostas pelos mesmos 300 Picaretas de sempre. O Rei-Barbudo, embora já
desacostumado do trabalho pesado dos tempos do sindicato, resolve trabalhar com
as Picaretas a pretexto de construir obras sociais. A indústria das Bolsas
prospera. O Povo está feliz e dança o Aiseeutepego
Music.
Quadro
3
República Democrática
de Rilexine – 1ª Passagem de Tempo. O Rei-Barbudo é traído por um dos
Picaretas. Mantendo o ufanismo de sempre o Rei-Barbudo se dirige até o terraço
de uma pizzaria no centro da república e, vestido de anjo, anuncia o novo
decreto nacional: “O Rei nunca sabe de nada!!!”. O Povo perde a cena hilária
por estar à frente da TV assistindo o último capítulo do melodrama das nove.
Quadro
4
República Democrática
de Rilexine – 2ª Passagem de Tempo. Cansado de beber leite na teta da vaca, mas
disposto a não mudar sua dieta rica de lactose, o Rei-Barbudo convoca a
Rainha-Louca para assumir o trono. A Câmara Alta e a Câmara Baixa do
Legislativo são renovadas por Picaretas que praticam tiro ao alvo enquanto lêem
a Bíblia. O Povo dança Rebolacion Music.
Quadro
5
República Democrática
de Rilexine – mesmo ano. A eloqüente Rainha-Louca por não estar acostumada com
o trono resolve promulgar novamente a tábua com os dez mandamentos da república:
“1 – Derrubar árvores plantadas pela natureza é altamente lucrativo; 2 – Essas
estradas de água são a forma mais barata de transporte; 3 – Você pode chuchar
uma arvore e cair uma manga na sua cabeça; 4 – A mulher abre o negócio, tem
seus filhos, cria os filhos e se sustenta, tudo isso abrindo o negócio; 5 – Eu
vi. Você veja.... Eu já vi, parei de ver. Voltei a ver e acho que o Neymar e o
Ganso tem essa capacidade de fazer a gente olhar; 6 – A auto-suficiência sempre
foi insuficiente; 7 – Esse respeito pelo ET de Varginha está garantido; 8 – O
meio ambiente é sem dúvida nenhuma uma ameaça ao desenvolvimento sustentável; 9
– Eu ia ler os nomes, não vou mais. Por que não vou mais? Eu não estou achando
os nomes. Logo, não posso lê-los. 10 – Depois que a pasta de dente sai do
dentifrício ela dificilmente volta pra dentro do dentifrício. 11 – O dia da
criança é o dia da mãe, do pai e das professoras, mas também é o dia dos
animais, sempre que você olha uma criança, há sempre uma figura oculta, que é
um cachorro atrás.” O gigante Povo acorda, mas, por coincidência, está passando
a final do BBB e ele resolve descansar mais um pouco em frente a TV. O
Rei-Barbudo se finge de morto.
Quadro
6
República Democrática
de Rilexine – 3ª Passagem de Tempo. O trono da Rainha-Louca está em frangalhos.
Para se redimir e se manter ainda confortável na cadeira de monarca resolve,
então, investir em promessas pra Santo Expedito: fazer a economia voltar a
crescer, reduzir a conta de energia elétrica, não aumentar impostos, assegurar
direitos trabalhistas, ampliar acesso a saúde, melhorar qualidade da educação. O
Povo assiste ao campeonato mundial de gol e, embora frustrado com a surra de 7
x 1 que a seleção nacional tomou, segue feliz dançando o Lepolepo Music. O Rei-Barbudo se finge de morto.
Quadro
7
República Democrática
de Rilexine – 4ª Passagem de Tempo. O trono da Rainha-Louca está salvo, mas
precisa de reforma. Sem fundos em caixa, a monarca resolve fazer uma vaquinha;
em sistemático e pessoal passeio de bicicleta pelo reino, segue visitando escolas,
hospitais e universidades exigindo a colaboração em dinheiro de cada súdito. A
medida não é bem vinda e a Rainha-Louca descobre que o pneu da bicicleta está
furado. O Povo fica indignado – dado importante, pois é a primeira vez que isso
ocorre em décadas – e sai às ruas exigindo a cabeça da Rainha-Louca para fazer
uma sopa. O Rei-Barbudo se finge de morto.
Quadro
8
República Democrática
de Rilexine – mesmo ano. Um juiz da província de Moro – localizada ao sul da
capital da república – promove um torneio de caça aos lobos e às raposas.
Temendo deixar os rabos expostos à caça implacável, a Câmara Alta e a Câmara
Baixa do Legislativo se resguardam elegendo um Lobo-Mor para comandar cada uma
das alcatéias. Mais sanguinário que os demais, o Lobo-Mor, Edward I, presidente
da Câmara Baixa, resolve devorar o fígado da Rainha-Louca pra salvar o próprio
rabo. O Rei-Barbudo ressurge das cinzas, mas encontrando-se desdentado, não
consegue defender nem a si mesmo e nem a Rainha-Louca.
Quadro
9
República Democrática
de Rilexine – mesmo ano. A república está dividida. De um lado os que odeiam a
Rainha-Louca por ela usar sempre o mesmo vestido vermelho; do outro, os que não
curtem a Rainha-Louca, mas diante de sua insanidade desmedida se apiedam e
resolvem defender o trono da monarca, mas não a monarca. O Rei-Barbudo mostra a
boca desdentada, mas não assusta ninguém.
Quadro
10
República Democrática
de Rilexine – mesmo ano. É uma grande festa. Os lobos da Câmara Baixa, capitaneado
por Edward I, reúnem-se para cortar a cabeça da Rainha-Louca. Atada a
guilhotina ela deve ouvir os discursos de cada lobo antes da decisão final.
Eles capricham no confete e transmitem nacionalmente o show de patriotismo: uivam
homenagens a antigos torturadores, pastores, família, aos animais de estimação
e agregados. O Rei-Barbudo volta a se fingir de morto.
* * *
Os
dez quadros apresentados dialogam diretamente com a situação nacional do
Brasil. Mas que isso, tem sua linha de ações centrais estruturadas observando o
quadro sócio-político-econômico que atravessamos. A estrutura épica permite
distanciar personagens e situações, enxergá-los na perspectiva de seus papéis
sociais, mas pouco esforço precisou ser investido para engendrar ficção, pois
não é necessário, na medida em que a própria situação real se incumbiu de munir
cada quadro com doses maiores ou menores de estranhamento. A realidade é
atravessada por fatos, burlescos, grotescos, nefastos, desumanos e sombrios,
como se ela própria seguisse o roteiro de uma peça épica. A similitude é
tamanha que em algumas passagens sequer é necessário inventar as falas dos
personagens principais. O material da peça, portanto, encontra-se pronto em
nossa atualidade, como se já tivesse passado por um tratamento estético. Como
problematizá-lo na dimensão estética do palco teatral, pois se considerarmos
que ele já se encontra estetizado, não recairíamos numa meta metalinguagem? Conseguiríamos
romper com este ciclo vicioso?
Enquanto
assistia Baden-Baden: Sobre o Acordo,
essas questões foram aos poucos me consumindo. Cada tentativa da montagem teatral
de estabelecer conexão direta com os fatos da nossa realidade política me deixava
mais inquieto, pois minha sensação era de que algo ali não se coadunava. Cito
duas imagens projetadas em vídeo que considero particularmente emblemáticas: as
imagens do deputado federal Jair Bolsonaro; e fotos da irmã Dorothy Stang
assassinada com tiros na cabeça e no corpo. Ambas remetem a fatos históricos
traumáticos para o país. Em ambas, a potência da imagem é capaz de me devorar
pela crueldade real que representam; e então por serem tão potentes, elas se
bastam em si, se consolidam no plano dos fatos históricos, me desplugando do
plano narrativo da peça. Embora compreenda o propósito de colocar as referidas
imagens no contexto da discussão do enredo da montagem, isto é, a
problematização do progresso científico na perspectiva social, acredito que são
imagens pouco afeitas ao embate dialético com outro contexto, pois talvez já
possuam uma dialética social própria. Trata-se de mais um caso onde os fatos
históricos – pelo modo completamente absurdo e surreal com que ocorreram –
testemunham uma estetização atroz da realidade. Como tematizá-los na atualidade
é um grande desafio.
Chego,
então, a questão que me punge durante boa parte da montagem: como estabelecer
dialética com uma realidade de estética atroz? Como confluir, articular ou
implodir esses roteiros prontos que o país e o mundo vêm colecionando ao longo
da história? Como tornar o palco o lugar adequado para romper esta lógica
delirante, grotesca e estetizante?
Certamente
não tenho respostas. Certamente não as encontraremos nos escritos ou peças de
Brecht. E o motivo é simples: não há formulas. O próprio Brecht era arredio a
idéia de tornar-se um modelo a ser seguido. Estas observações servem, então,
para alertar que o que compartilho aqui são minhas impressões críticas,
inquietações e angustias de quem também tenta construir um discurso dialético
que entre em rota de colisão com a realidade, e não máximas categóricas com o
intuito de demonstrar o modo como o teatro dialético deve ser feito. Um caminho
útil demonstrado por Brecht para se fazer dialética no palco é primeiramente
fazer dialética na vida. E quando, então, estivermos ambientados com a
dialética na vida, quando nos reconhecermos como agentes da dialética, então,
estaremos prontos para transportá-la para o processo criativo, fazendo do
próprio processo uma dialética evitando tratá-la como elemento estético, técnico
ou formal – vide pequeno ensaio intitulado “A dança ignorada de Brecht”, de
Eugênio Barba (2012, p.106).
Outro
elemento angustiante, neste sentido, é a relação palco-plateia proposta pela
montagem. Mesmo com o palco ostentando somente os gigantescos elementos
cenográficos – pedaços da fuselagem de um avião –, desprovido de cadeiras e panadas,
mesmo com a dinâmica das cenas variando de lugar exigindo que o espectador
acompanhe e se dirija para onde cada uma cena irá acontecerá, mesmo com os
atuantes se dirigindo constante e diretamente para os espectadores, ainda sim
considero que temos o estabelecimento da quarta parede. Estou dentro do jogo,
mas não jogo efetivamente, pois o jogo é tecido milimetricamente – méritos da
direção e do ímpeto e execução técnica do elenco – entre o coro e os solistas
ao longo de quase todas as cenas. E aqui
outro elemento me inquieta: o jogo entre coro e solista é tão forte, ambos
empregam tanta energia, volume de voz e ímpeto no uso das palavras que, a meu
ver, vai se estabelecendo um verniz dramático na peça, um tom esquisitamente melodramático
que emprenha as cenas de um sentimentalismo desnecessário e estéril. O canto e
a trilha sonora também corroboram com essa percepção.
É
sintomático que a montagem opte por começar e terminar a narrativa fora do
teatro. Revela o desejo de ultrapassar o palco, as paredes, mas também as
convenções teatrais estabelecendo relação direta com o mundo. Duas
considerações finais sobre esta questão: 1 – O início da apresentação: o elenco em peso invade a frente do
teatro aos gritos, berros e uivos; uma massa sonora disforme que ainda não conseguimos
identificar, nos deixa sobressaltados. Eu e alguns amigos, por alguns
instantes, acreditamos se tratar de um assalto ou arrastão, sintoma de cidadãos
que se sentem completamente desprotegidos diante da avassaladora violenta que
nos assola. A dialética com o mundo acontece na sua inteireza, neste instante.
Identificamos o elenco e a dialética é rompida, dando vez as convenções
teatrais. Os fragmentos de poema ditos na frente do teatro não conseguem
exercer em mim a mesma dialética experimentada há poucos instantes – a sensação
do sobressalto inicial. Vai se estabelecendo e ficando mais nítida a separação
entre realidade e fábula teatral, em prejuízo desta última que me soa clichê em
alguns momentos como, por exemplo, quando se recita os versos de Arnaldo
Antunes, Sérgio Brito e Marcelo Fromer – Como é água / bebida é pasto/ Você tem
fome de que? –. O contraste com a realidade se revela tão grande que os versos,
embora permaneçam atuais, não conseguem me mobilizar pra lugar nenhum. 2 – O final da apresentação: o elenco
inteiro abandona o palco e se dirige para fora do teatro. Somos deixados pra
trás; ficamos sós, “aprisionados” dentro da caixa preta sem ao saber ao certo o
que fazer; as pontes com o mundo mais uma vez são fragilizadas; se levantamos e
saímos do teatro é para ir ao encontro dos artistas, agradecer-lhes por seu
ofício bem executado, e não para intervir, modificar ou implodir os valores do
mundo. A dialética com o mundo novamente se vê fragilizada.
Até
quando continuaremos confinados às quatro paredes do teatro? Guarnecidos pelas
muralhas dos nossos castelos institucionais perdemos a oportunidade de intervir
na realidade que clama para ser estetizada, não pela via da desfaçatez
politiqueira rasa e sensacionalista, mas da dialética capaz de demolir o escárnio
dissimulado daqueles que se dizem homens públicos de bem, com um escárnio
criativo ilimitadamente voraz contra todas as cores e bandeiras ideológicas.
Edson
Fernando
01 de Maio de 2016