domingo, 16 de outubro de 2016

Outras Madalenas – Por Edson Fernando

Edson Fernando ator e diretor teatral, professor da Escola de Teatro e Dança da UFPA, Coordenador do Projeto TRIBUNA DO CRETINO. 
Existem personalidades que se firmaram no imaginário popular de tal modo que se transformaram em ícones de virtude, vício elevação ou degradação moral. Embora carreguem uma complexa rede de acontecimentos em torno de sua pessoa, uma interpretação, por vezes imprecisa e controversa, acaba se consolidando como a versão convencionalmente aceita e estabelecida socialmente. Maria Madalena, a personagem bíblica mencionada nos Evangelhos canônicos de João, Marcos e Lucas, certamente habita no hall dessas personalidades e desperta curiosidade e interesse por sua proximidade com a figura de Jesus.
Apesar da exegese da tradição cristã reserva-lhe um lugar de honra e considerar um equívoco identificá-la como prostituta, o imaginário popular costuma associar sua imagem a mulher pecadora, adúltera e que foi exorcizada pelo próprio filho de deus que lhe expulsou sete demônios. Os evangelhos apócrifos – dentre eles o próprio Evangelho de Maria Madalena – e a obra de David Brow intitulada “O Código Da Vinci”, publicada em 2003 e inspirada nos evangelhos apócrifos, embora não corroborem com a versão da Madalena prostituta, reforçam uma imagem bem diferente do que o cristianismo postula e aceita canonicamente. Neles encontramos Madalena como uma liderança a frente dos apóstolos, a mulher em quem Jesus deposita total confiança, a ponto de só a ela revelar alguns ensinamentos secretos. Esse aspecto é curioso e importante, pois inverte a lógica patriarcal que se encontra na bíblia canônica e na própria fundação da igreja cristão, colocando uma mulher a frente de todos os doze apóstolos de Jesus.
Observo que a montagem teatral Casa das Madalenas, de algum modo, transita e flerta com estas três imagens criadas em torno da personagem bíblica – seja a canônica ou a dos apócrifos – gerando uma expectativa desnecessária em torno do trabalho muito bem produzido pelo Grupo de Teatro Universitário – GTU.
O primeiro fator a se destacar é a escolha pelo caráter melodramático na encenação da narrativa. Considerando que o melodrama é o gênero que encontra maior eco junto ao espectador quando trabalhado na perspectiva ilusionista do palco italiano, a opção pela relação palco-plateia da montagem ao colocar os espectadores dentro do cabaré, numa espécie de arena espelhada de atuação – espectadores dispostos nas duas extremidades do teatro, separados pelo palco ao centro – fragiliza a própria natureza da narrativa, pois não consegue preservar a distância necessária para aflorar o envolvimento emocional dos espectadores – coração do melodrama – e nem consegue quebrar de fato a “quarta parede” na medida em que só ocasionalmente os espectadores são considerados parte ativa da encenação – em boa parte da narrativa continuamos assistindo pelo buraco da fechadura.
Em conseqüência desse desajuste no formato da encenação, sou levado a conhecer Madalenas com vários traços característicos do melodramático: a prostituta apresentada como vítima, em oposição ao caráter maligno do Cafetão, do Barão e do filho do Barão garantindo, assim, o típico antagonismo entre bons e maus, traços estes que associo, por aproximação, a visão cristianizada de Maria Madalena, aquela que se arrepende de seus pecados e se converte às virtudes morais cristãs. Não obstante, deposita-se nestas mesmas Madalenas melodramáticas-cristãs a esperança de que sejam vistas como modelos de força e luta, características que associo, por aproximação, a visão de Madalena como liderança feminina que consta nos apócrifos. Considero que é uma equação que não se adequada – seja pela forma, seja pelo conteúdo.
O flerte com a sexualidade – misto de sedução e seminudez – reforça ainda mais o caráter de Madalena arrependida. Temos um elenco predominantemente feminino em cena, cujas genitálias foram interditadas. A nudez dos seios, neste sentido, ao invés de indicar desprendimento moral, entrega e comprometimento com o universo da sexualidade explicita das prostitutas, acaba por se transformar em índice de pudor e comedimento, censura moral de ordem cristã que tanto persegue e tolhi as mulheres. O corpo da mulher só a ela pertence, e ela deve fazer o que bem entender com ele. Então, se a encenação arrola o jogo da nudez para a montagem, qual o motivo de não assumi-lo plenamente para os corpos femininos? A virgem Madalena da montagem ao se entregar aos prazeres sexuais pela primeira vez sem despir-se de sua calcinha, sela o pacto com a cristandade apresentando-se tal como a virgem Maria que concebe um filho sem ter perdido a própria virgindade.    
O empoderamento do corpo feminino frente a um corpo docilizado e pudico me parece ser questão fundamental que ainda não foi resolvido na montagem, pois depende exclusivamente do posicionamento pessoal de cada atuante. A arte atravessa a dimensão existencial dos atuantes e cobra o seu preço.
A situação se agrava quando a montagem assume o desejo de discutir pautas sociais voltadas à igualdade de gênero, pois a estrutura melodramática da encenação me arremessa sempre para uma espécie de “catarse social” que compromete ou desestimula qualquer tipo de reflexão crítica de minha parte (cf. PAVIS, 200, p.239). Acredito que sem esta pretensão, a montagem possa se dedicar e aprimorar o que ela tem de melhor: entretenimento. Como disse antes, a montagem é bem produzida, conta com uma excelente banda ao vivo, um elenco vigoroso e afinado entre si e com uma estrutura dramatúrgica que permite bons momentos de descontração e divertimento. É bastante coisa para um grupo cuja maioria dos participantes encontra-se no início de suas experiências teatrais na cidade.
Bertolt Brecht fez questão de afirmar que teatro antes de qualquer coisa é divertimento. Ele se questionou tentando encontrar o tipo de divertimento que considerava ser adequado para o seu tempo. Observo com preocupação que atualmente as demandas e pautas sociais, cada vez mais, colocam em segundo plano os elementos formais da linguagem teatral. Uma espécie de ditadura do conteúdo, em detrimento da forma, levando o teatro a beira do panfletarismo ideológico. O teatro se tornando ferramenta, instrumento a serviço de uma demanda social. Por mais justa que seja a demanda social, o teatro não pode se deixar diminuir dessa forma. Mais arte, menos ideologia.
Felizmente esta pecha não pode ser infligida à Casa das Madalenas que encontra seu vigor no divertimento leve e bem produzido. Acredito que seja necessário, no entanto, se descomprometer com causas sociais que a montagem, por sua natureza melodramática, não dá conta. Talvez, deixando de lado este peso social pela discussão da igualdade de gênero, a montagem consiga repercutir mais e melhor, exatamente este tema.
Aceito um drink, mas exijo que o programa seja completo.     
Edson Fernando

15 de Outubro de 2016.

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