Edson Fernando ator e diretor
teatral, professor da Escola de Teatro e Dança da UFPA, Coordenador do Projeto
TRIBUNA DO CRETINO.
Existem personalidades que
se firmaram no imaginário popular de tal modo que se transformaram em ícones de
virtude, vício elevação ou degradação moral. Embora carreguem uma complexa rede
de acontecimentos em torno de sua pessoa, uma interpretação, por vezes
imprecisa e controversa, acaba se consolidando como a versão convencionalmente
aceita e estabelecida socialmente. Maria Madalena, a personagem bíblica mencionada
nos Evangelhos canônicos de João, Marcos e Lucas, certamente habita no hall dessas personalidades e desperta curiosidade
e interesse por sua proximidade com a figura de Jesus.
Apesar da exegese da tradição
cristã reserva-lhe um lugar de honra e considerar um equívoco identificá-la
como prostituta, o imaginário popular costuma associar sua imagem a mulher
pecadora, adúltera e que foi exorcizada pelo próprio filho de deus que lhe
expulsou sete demônios. Os evangelhos apócrifos – dentre eles o próprio
Evangelho de Maria Madalena – e a obra de David Brow intitulada “O Código Da
Vinci”, publicada em 2003 e inspirada nos evangelhos apócrifos, embora não
corroborem com a versão da Madalena prostituta, reforçam uma imagem bem
diferente do que o cristianismo postula e aceita canonicamente. Neles
encontramos Madalena como uma liderança a frente dos apóstolos, a mulher em
quem Jesus deposita total confiança, a ponto de só a ela revelar alguns
ensinamentos secretos. Esse aspecto é curioso e importante, pois inverte a
lógica patriarcal que se encontra na bíblia canônica e na própria fundação da
igreja cristão, colocando uma mulher a frente de todos os doze apóstolos de
Jesus.
Observo que a montagem
teatral Casa das Madalenas, de algum
modo, transita e flerta com estas três imagens criadas em torno da personagem
bíblica – seja a canônica ou a dos apócrifos – gerando uma expectativa
desnecessária em torno do trabalho muito bem produzido pelo Grupo de Teatro
Universitário – GTU.
O primeiro fator a se destacar
é a escolha pelo caráter melodramático na encenação da narrativa. Considerando
que o melodrama é o gênero que encontra maior eco junto ao espectador quando
trabalhado na perspectiva ilusionista do palco italiano, a opção pela relação
palco-plateia da montagem ao colocar os espectadores dentro do cabaré, numa
espécie de arena espelhada de atuação – espectadores dispostos nas duas
extremidades do teatro, separados pelo palco ao centro – fragiliza a própria
natureza da narrativa, pois não consegue preservar a distância necessária para aflorar
o envolvimento emocional dos espectadores – coração do melodrama – e nem
consegue quebrar de fato a “quarta parede” na medida em que só ocasionalmente
os espectadores são considerados parte ativa da encenação – em boa parte da
narrativa continuamos assistindo pelo buraco da fechadura.
Em conseqüência desse
desajuste no formato da encenação, sou levado a conhecer Madalenas com vários
traços característicos do melodramático: a prostituta apresentada como vítima,
em oposição ao caráter maligno do Cafetão, do Barão e do filho do Barão garantindo,
assim, o típico antagonismo entre bons e maus, traços estes que associo, por
aproximação, a visão cristianizada de Maria Madalena, aquela que se arrepende
de seus pecados e se converte às virtudes morais cristãs. Não obstante,
deposita-se nestas mesmas Madalenas melodramáticas-cristãs a esperança de que
sejam vistas como modelos de força e luta, características que associo, por
aproximação, a visão de Madalena como liderança feminina que consta nos apócrifos.
Considero que é uma equação que não se adequada – seja pela forma, seja pelo
conteúdo.
O flerte com a
sexualidade – misto de sedução e seminudez – reforça ainda mais o caráter de
Madalena arrependida. Temos um elenco predominantemente feminino em cena, cujas
genitálias foram interditadas. A nudez dos seios, neste sentido, ao invés de
indicar desprendimento moral, entrega e comprometimento com o universo da
sexualidade explicita das prostitutas, acaba por se transformar em índice de
pudor e comedimento, censura moral de ordem cristã que tanto persegue e tolhi
as mulheres. O corpo da mulher só a ela pertence, e ela deve fazer o que bem
entender com ele. Então, se a encenação arrola o jogo da nudez para a montagem,
qual o motivo de não assumi-lo plenamente para os corpos femininos? A virgem
Madalena da montagem ao se entregar aos prazeres sexuais pela primeira vez sem
despir-se de sua calcinha, sela o pacto com a cristandade apresentando-se tal
como a virgem Maria que concebe um filho sem ter perdido a própria virgindade.
O empoderamento do corpo
feminino frente a um corpo docilizado e pudico me parece ser questão
fundamental que ainda não foi resolvido na montagem, pois depende
exclusivamente do posicionamento pessoal de cada atuante. A arte atravessa a
dimensão existencial dos atuantes e cobra o seu preço.
A situação se agrava
quando a montagem assume o desejo de discutir pautas sociais voltadas à
igualdade de gênero, pois a estrutura melodramática da encenação me arremessa sempre
para uma espécie de “catarse social” que compromete ou desestimula qualquer
tipo de reflexão crítica de minha parte (cf. PAVIS, 200, p.239). Acredito que
sem esta pretensão, a montagem possa se dedicar e aprimorar o que ela tem de
melhor: entretenimento. Como disse antes, a montagem é bem produzida, conta com
uma excelente banda ao vivo, um elenco vigoroso e afinado entre si e com uma
estrutura dramatúrgica que permite bons momentos de descontração e
divertimento. É bastante coisa para um grupo cuja maioria dos participantes
encontra-se no início de suas experiências teatrais na cidade.
Bertolt Brecht fez
questão de afirmar que teatro antes de qualquer coisa é divertimento. Ele se
questionou tentando encontrar o tipo de divertimento que considerava ser
adequado para o seu tempo. Observo com preocupação que atualmente as demandas e
pautas sociais, cada vez mais, colocam em segundo plano os elementos formais da
linguagem teatral. Uma espécie de ditadura do conteúdo, em detrimento da forma,
levando o teatro a beira do panfletarismo ideológico. O teatro se tornando
ferramenta, instrumento a serviço de uma demanda social. Por mais justa que
seja a demanda social, o teatro não pode se deixar diminuir dessa forma. Mais
arte, menos ideologia.
Felizmente esta pecha
não pode ser infligida à Casa das
Madalenas que encontra seu vigor no divertimento leve e bem produzido.
Acredito que seja necessário, no entanto, se descomprometer com causas sociais
que a montagem, por sua natureza melodramática, não dá conta. Talvez, deixando
de lado este peso social pela discussão da igualdade de gênero, a montagem consiga
repercutir mais e melhor, exatamente este tema.
Aceito um drink, mas exijo que o programa seja
completo.
Edson
Fernando
15
de Outubro de 2016.
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