Ceci Bandeira: Graduanda em Filosofia pela Universidade Estadual do Pará - UEPA.
Estamos em Atenas, que,
desde 510 a.C., havia substituídos a tirania pela democracia: não é mais a um
chefe que os gregos obedecem, mas a uma soma de sentimentos coletivos, ou seja,
à polis. Ou será que estamos em qualquer outro Estado democrático existente no
ocidente do século XXI?
Ao manusear a mitologia
grega, o trágico Ésquilo constrói suas personagens em função da fábula, tomando
a posição de substituir a liberdade pela fatalidade, e faz com que a Moíra, o destino cego de punição, se
torne a medida de todas as coisas, e não o ánthropos,
como posteriormente pensarão outros trágico gregos. O sofrimento é, para o teatro
esquiliano, um preceito necessário contido nas etapas de obtenção da sabedoria.
A dor redime e concilia. Devemos seguir a lei divina de “sofrer para
compreender”, como nos diz o Coro no Agamênon
– primeira das tragédias da trilogia Orestes. No entanto, esta lei não
contempla o âmbito da responsabilidade individual, mas está abrigada em um
grupo de indivíduos unido pelos laços de sangue (guénos), em que a falta de um recai sobre todos.
Após degolar a mãe,
Clitemnestra, junto ao cadáver do amante para vingar o sangue de seu pai,
Agamênon, derramado pela mulher, a hamartía
(erro que determina a queda de um herói trágico) hereditária de Orestes está consumada
e o drama da luta pela maldição familiar se reflete no último texto da trilogia
trágica de Ésquilo: Eumênides – que
em grego significa “benevolentes”, o eufemismo conciliatório buscado por Atena
para apaziguar as Erínias destronadas
e sedentas por vingança. Apolo envia Orestes a Atenas para ser julgado por um
tribunal, o qual o júri será presidido por Atena, a deusa patriarcal,
assessorada por doze cidadãos atenienses. As Erínias, deusas das trevas, estão
ali para acusar e vingar o matricídio cometido por Orestes. A votação do júri
mortal termina empatada. Cabendo, por esse mesmo motivo, à Atena o voto de
desempate. Orestes fora absolvido. E seu voto nascia para todo o sempre.
É dessa forma entramos
no cenário de Atena em Solo Viril, remontagem do texto Eumênides de Ésquilo, feito pelo Grupo de Investigação do
Treinamento Psicofísico do Atuante (GITA), dirigido por Edson Fernando e
representado pela atuação Geane Oliveira na pele de Atena – a deusa gerada da
mente de Zeus e que, por isso, se posicionará a frente do direito dos deuses
novos (dike), que habitam os altos
inundados de luz do Olimpo, para derrubar o direito dos deuses antigos (thémis), que habitam as trevas do Hades.
Atena é a figura
feminina que, pela ausência do arquétipo matriarcal, não compartilha conosco as
reminiscências saudosistas da gineocracia – fase primitiva da civilização
humana, segundo Johann Jakob Bachofen, em que a mulher, unicamente ela, era
autoridade e legisladora, conhecida por governar tanto o grupo familiar quanto
a sociedade, que englobava sobretudo a religião, mas que foi derrotada pela
androcracia, governo patriarcal que vigora até os dias de hoje. Por não possuir
vínculos estreitos com o solo, símbolo da Terra-mãe universal que aceita
passivamente todos os fenômenos naturais, ela sentirá necessidade de defender o
oposto, a autoridade incontestável do pai na família e o papel preponderante do
homem numa sociedade hierarquicamente organizada, ou seja, fará justiça pelo
sangue do varão Agamênon.
Desde o momento em que
entramos na arena, tempo depois dos homens que foram primeiramente chamados a
sala, e somos convidadas a sentar no chão constituindo um círculo periférico ao
círculo principal formado pelas cadeiras em que estão alojados os homens, já somos
Erínias. Nós, que hoje discutimos e procuramos as mais possíveis formas de nos
livrarmos das amarras de uma sociedade machista e opressora, somos introduzidas
no momento exato, segundo Ésquilo, em que toda a liberdade nos foi extirpada.
Estamos ali para ver de longe o sangue das hamartías ser oferecido por Atenas
aos doze juízes, os “homens horados” que votarão a favor da justiça. Da sua
justiça. Da justiça relegada as deusas sombrias condicionadas em ser mulher.
Teremos que sofrer para compreender.
Após encontrar a figura
de Orestes dentre os cidadãos de bem, Atena se entrega a voluptuosa situação do
julgamento, no êxtase do domínio de poder: a sua díke está prestes a ser estabelecida naquela polis, a limitação, a
hierarquia, a ordem e o logos enfim substituirão o caos, a natureza, a
liberdade, o éros. Somos aos poucos
despidas moralmente e desonradas pela ideia desta nova justiça que será
implantada daqui a poucos minutos, através da fala de uma deusa misógina, e que
nos perseguirá, nos torturará e nos matará durante todo o percurso seguinte da
história humana.
É necessário que chegue
apenas o momento em que os votos dos doze homens estabeleça um empate, para a
deusa-inteligência sentenciar Orestes como inocente: perante os deuses, este
homem não possui culpa alguma, a justiça divina fecha os olhos para o
matricídio, pois este sangue materno não exerce influência sobre a criação do
filho: para o patriarcado, a mãe, como a terra, é apenas o depósito, a matriz
fria e passiva, da semente semeada pelo pai, que seria o grande responsável
pela germinação. Ora, por isso Atena é a defensora do patriarcado, somente uma
mulher que não tenha sido formada nas sombras de um seio materno lutaria pela
submissão de suas semelhantes. Ou somete mulheres que tenham sido educadas por
homens para renegar as tradições geneocráticas imanentes da sua existência.
Ela, agarrada as regras
civis basilar da sociedade ocidental, oferece o sangue dessa tragédia familiar
para os cidadãos legítimos que pisam junto dela naquele solo viril, não nos
deixando provar nem os requisitos desse vinho sanguinário – prefere derramá-lo
por completo através de seu falo fantasioso (fantasioso já que este lhe foi
negado quando condicionada ao feminino), naquele solo que poucos terão a
privilegio de pisar. E nos convence (ou nos força) protegê-los durante o
percurso de suas vidas, em troca de honrarias divinas para nos persuadir a não
nos vingarmos da (in)justiça decidida pelos deuses novos. No íntimo do
patriarcado, se encontra o medo de que nos revoltemos contra este sistema do lógos, por isso a preocupação de Atena
em nos comunicar, rapidamente após a decisão do júri, sobre o eufemismo e nos
entregar a honraria suprema de proteger a sua cidade.
Se lutássemos até a
última instância nossa thémis
retomaria, pois todos naquele tribunal têm conhecimento de que para as Erínias,
“enquanto o matricida não for punido com a morte, a terra, ferida em sua
fertilidade, não produzirá frutos, nem cumprirá seu destino material” (BRANDÃO,
Junior de Souza, 1985), impedindo que todos os cidadãos atenienses perpetuem a
sua espécie.
E assim termina o
espetáculo de Atena sobre o seu adorado solo viril. Não provamos o vinho
sanguinário. Não nos aproximamos do solo viril. Saímos com a certeza de que
possuímos um poder imanente extraordinário, e que somos todos os dias coagidas
a esquecê-los. Com mais dúvidas do que respostas. Entretanto, com uma profunda
imersão na história e cultura das mulheres que nos antecederam na luta pela
retomada do magnífico caos erotikós
que é ser mulher e ao mesmo tempo livre.
Ceci
Bandeira
09
de Março de 2016
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