Silvia Luz: Atriz e Professora
Mestra em Artes pelo PPGArtes – ICA/UFPA
Eumênides é uma
tragédia grega, de autoria de Ésquilo. Orestes, Apolo e as Erínias[1]
vão ao Areópago ateniense para serem julgados pela deusa Atena e os atenienses.
A questão é se o fato de Orestes ter assassinado a própria mãe, Clitemnestra,
torna-o merecedor do tormento infligido pelas Erínias. A votação do julgamento
termina empatada, mas a deusa Atena dá seu voto final, desempatando em favor de
Orestes.
Os primeiros a pisarem
no solo de Atena foram os homens e depois as mulheres. Atena vai até a porta de
entrada do teatro e pede para que formem duas filas, uma de mulheres e outra de
homens, em seguida adentra o espaço conduzindo a fila dos homens e depois de um
certo tempo, volta e, pede para as mulheres entrarem. Essa atitude já causou
burburinho entre as mulheres presentes, uma insatisfação.
Quando entramos, nos
deparamos com um círculo fechado. Seria o círculo dançante feito pelas Erínias?
O inferno de Dante, onde são punidas as almas violentas? Esse círculo que
naquele momento representou a totalidade, dentro do círculo é uma coisa só,
circundada e limitada. Esse seria o objetivo espacial? O círculo sugere
imediatamente uma totalidade, quer no tempo, quer no espaço. Na Wicca o círculo
também representa a Deusa em seu aspecto de Mãe, fazendo com que, ao entrar num
círculo mágico o adepto esteja penetrando no útero dela, no caso Atena, e sendo
guiado aos seus mistérios universais. Seria o vinho uma hemorragia menstrual? O
sangue da morte ou da vida? Ou simplesmente festa?
Na verdade eram dois
círculos, o dos homens e o das mulheres. O dos homens composto por 15 cadeiras,
sendo que algumas ocupadas pelos homens presentes na sessão e outras
permaneceram vazias. Fomos conduzidas pela Deusa a sentar no chão ao redor
deste círculo, ao sentar olhei ao redor e percebi nos semblante das mulheres,
certa decepção. Claro! A estreia aconteceu no dia Internacional da Mulher e,
nos pedem para assistir a um espetáculo sentadas no chão? Sem conforto algum,
enquanto os homens estavam sentadinhos em suas cadeiras, no mínimo frustrante.
O público feminino
seria as Erínias, pois desde o início foi atraído pela deusa Atena, esta que
manipula os homens e que os favorece, ora sim ora não. Engabeladas por ela, nós
mulheres, a partir de agora Erínias fomos serenamente sentar-nos no chão, como
na Grécia Antiga, a verdadeira morada destas, “embaixo da terra”, dando honras
aos cidadãos atenienses e de sua forma de julgar. No chão, reprimidas, e talvez
quem sabe, por bom comportamento poderíamos ser chamadas de “Eumênides”, isto
é, “benfazejas”, para que possam então mascarar a antiga guerra entre os sexos,
aqui simbolizada pelo ciclo da vingança de Clitemnestra e Agamenon.
O Solo viril de Atena
nos leva a essa descida, às entranhas da terra numa reviravolta feminista que
metamorfoseia o ódio original de suas Erínias numa gargalhada silenciosa e
ecoada pela Deusa Atena no centro do círculo, por meio de suas roupas pretas e
seu forjado gozo, delatando a fragilidade da razão masculina que é inábil de
compreender as intenções femininas, pontuadas pelo gozo premeditado da Deusa.
Atena seria um espelho
diante da platéia masculina, os juízes daquele julgamento. Ela age como homem,
absolve o culpado, como se ele fosse um dos seus. Na contramão disso está o
silêncio representado pelo público feminino, o poder da fêmea reside em sua
resistência a todos os desmandos masculinos, representado pelos juízes, ações e
falas de Atena, onde a atuante Geane Oliveira em determinados momentos revela
arrebatadoramente a fêmea transgressora ao ideal do comportamento feminil
adotado pela sociedade ateniense do séc. V. a.c e do século atual, pois ainda
vi entre o público em geral, olhares pedidos ou sem saber para onde olhar, na
cena da masturbação em que a atuante pratica carícias com o Pé de um dos
presentes, talvez chegando a atiçar alguns de nossos sentidos, tornando-nos
testemunhas auditivas, olfativas e/ou da visão involuntariamente.
Foi pontual a cena
final quando a atuante Urina vinho (sangue) no chão, esse ato é pontualmente
masculino, de macho Escroto, que é capaz de babar e ejacular vendo uma mulher
em trajes “ditos sensuais”, pois isso é “coisa” de Macho. Essa ação foi um ato
transgressor para o contexto da peça, uma mulher que Mija de pé, que nem Homem
de verdade e que ainda por cima, Urina com prazer e escárnio.
Um ato misógino, que
traz a tradição misógina do pensamento da Grécia Antiga, ouso em dizer
atualíssimo, que observa o domínio feminino como uma necessidade em resposta a
constante ameaça representada pelo poder e pela natureza das mulheres. Nesta
mesma cena cai por terra o comportamento das mulheres bem-nascidas atenienses.
A Atena feita por Geane Oliveira é uma mulher de caráter transgressor,
ultrapassa o limite do “permitido” ao feminino.
A dramaturgia
apresentada tem como cerne a ação originada da protagonista, destarte ela serve
como o catalisador dos eventos mesmo quando ele é o principal objeto de
investigação. O aspecto masculino está em sua fala, essa mulher de alma viril,
dona de uma excepcional habilidade retórica e persuasiva e, que se mostra ao
longo da apresentação, como implacável, corajosa e cruel.
Mulher viril que enfrenta
os infortúnios da vida, como um macho, mas que revela sua força na manipulação
da plateia masculina e por vez a feminina, pois Atena nesta apresentação
aparece como hermafrodita, ora homem, ora mulher. Pena que em determinados
momentos a atuante quebra o ritmo do jogo cênico, seu corpo some no escuro,
como a chama de uma vela, pois suas ações pulsam e morrem com a mecanicidade do
texto dado. Confesso que por um único momento cheguei à beira do abismo, estava
prestes a me jogar e de repente, a ruptura, estanco abruptamente na beira do
abismo. A atuante mais uma vez some no escuro e junto com ela a vida da cena. O
texto foi dito apenas pela boca, não pelo corpo.
O jogo imposto pela
atuante foi pauleira, aqui e agora, mas em algumas partidas, passou a vez e
tive que esperar a próxima jogada. A atuação de Geane Oliveita foi uma caixa de
Pandora, está às vezes presa ao jarro (jarra), ou melhor, ao texto que muitas
vezes sai de sua boca, porque está decorado, mas sem o vigor necessário para
unificar corpo e voz. Geane adentrou a jarra de vinho, deixando escapar todos
os males do mundo, menos a sua entrega total. Beba o vinho. Lambuze-se,
embriague-se e goze!
Para finalizar, da
Idade Média Antiga até a atualidade a imagem que possuímos do sexo feminino –
para parafrasear Simone de Beauvoir – nos é transmitida pelos homens que ao
longo do tempo não só escreveram como decidiram o que era digno de ser
registrado como parte da história.
REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zigmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. Inquietações da vida contemporânea e suas formas atuais de organização: uma relação de imanência.
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990 p,225-226.
SILVA, Maria de Fátima. A tradição grega em Simone de Beauvoir, Le deuxieme sexe. Artigo recebido em 18 de janeiro de 2011 a provado em 24 de maio de 2011.
KAPLAN, E. Ann. O mal-estar no pós-modernismo: teorias e práticas. Trad. Vera Ribeiro – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. 1993.
https: wiccaniano.wordpress.com<acesso
em 15/03/2016.
[1] “Deusas
punidoras dos crimes cometidos por pessoas contra seus consanguíneos”.
Dicionário Mítico – Etimológico de Mitologia Grega. Petrópolis: Editora Vozes,
2000, p. 352.
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