Autor da Crítica: Edson Fernando, Professor de Teoria do Teatro da Escola de Teatro e Dança da UFPA.
Considerações a Performance "Em caso de emergência quebre o vidro".
Endógena
Tudo que nos resta é
tomar uma cerveja. ### Antes que seja
mal interpretado, esclareço que sou apreciador de uma boa cerveja gelada; o
primeiro copo quando vertido sem intervalos, a goles largos, provoca uma
sensação de prazer inigualável a qualquer outra bebida alcoólica. Se a pedida
for servida numa latinha ou na charmosa garrafinha long neck, invisto em dois ou três goles grandes, ininterruptos,
para garantir o mesmo deleite do primeiro copo. Depois da primeira, seguir
vertendo mais algumas – ou muitas – deliciosas “louras” é quase um ato
incontrolável, dado o contato solene e divino instaurado a partir da primeira
degustação. ###
É a dimensão dionisíaca que se abre com todo o seu furor e arrebatamento; nela,
elevamo-nos também a categoria de deuses e somos lançados para o ponto anterior
a instalação do teathron; como
ditirambos de outrora nos é solicitado entoar os cânticos a Dioniso, mas apenas
alguns se atrevem timidamente a gravar suas impressões subjetivas no muro em
ruínas do edifício teatral; ao que parece, o verme da consciência ainda não
ruiu completamente com nosso textocentrismo e seguimos na ávida expectativa
pelo acontecimento de caráter elevado, digno de tomar o centro da arena-santuário
###
A história do teatro localiza na Poética de Aristóteles os elementos que
constituem o paradigma para o estabelecimento do Drama Absoluto – conceito este
proposto por Peter Szondi. Definindo a tragédia grega como “imitação de uma
ação de caráter elevado, completa (...), imitação que se efetua não por
narrativa, mas mediante atores, e que suscitando ‘terror e piedade’, tem por
efeito a purificação dessas emoções” (1987, p. 205), o Estagirita instituiria a
tríade Ação/ Imitação/ Catarse como os elementos propulsores do novo gênero
artístico que surge por volta do século V a.C.; guardando suas peculiaridades
de forma e conteúdo, o Drama Absoluto operaria pela mesma tríade ###
“Vocês vieram assistir teatro? Vieram no lugar errado!” é a sentença disparada
pelo ciclope digital; o gigante mítico de um olho só e de poderes premonitórios
de outrora, se apresenta agora em estatura baixa e portando um terceiro olho na
palma da mão direita; este terceiro olho, que parece nos vigiar, traz o
vaticínio: a caverna cibernética é o lugar de se RE[ATAR] a vida, reassumir o
protagonismo ditirâmbico, potencializar ao máximo o RE[ATOR] que existe em cada
um dos presentes. ###
Órfãos dos grandes mythos que somos, estamos
fadados a lidar com a Ação em nível micro e suas subseqüentes fragmentações,
comprometendo a unidade de lugar e de tempo da mimesis e, por conseguinte, a estruturação e desenvolvimento de uma
ação catártica nos moldes aristotélicos. É a sintomática crise do drama
instalada no Teatro Contemporâneo. ###
Após o vaticínio do ciclope digital é uma questão de tempo para que minha
relação com a caverna cibernética se redimensione, se atualize e potencialize um
novo contorno: a sinestesia sonora e imagética. As sombras melódicas,
barulhentas e multicoloridas que não cessam de atravessar e invadir o espaço me
embala agora numa viagem poética cujo centro está voltado para meu próprio ser;
trata-se de uma auto poiesis digna de
rivalizar com os pseudos protagonistas da rádio novela digital que ali se delineia
aos farrapos. Finalmente assumimos que estamos em terras dionisíacas e como
bons devotos elevamos nossos copos – ou latinhas – em honra a deidade. Reconhecendo-nos
como partícipes do acontecimento um novo imperativo ganha forma e força:
importa a troca, o contato e o encontro humano. Tudo o que se apresenta como
possível obstáculo ao imperativo soa estranho e afronta a estabilidade,
qualidade e fluidez do ato, pois passo a realizar minha própria linha de ação
com a parceira que se encontra ao meu lado; nossa troca e contato humano –
regada a terceira ou quarta cerveja estupidamente gelada – atualiza e dá
sentido àquele momento único que se abre somente entre nós dois; o jogo se
inverte, pois se antes o equívoco ou inadequação se encontrava na expectativa
de acompanhar a história que viria a ser apresentada de modo linear ###
condição do espectador por excelência, que aguarda o desenvolvimento do drama
em toda sua extensão, até o desenlace ###,
agora encontrando a chave adequada para me relacionar com a caverna cibernética,
são as irrupções dos pseudos protagonistas da rádio novela digital que soam
inapropriadas, pois interrompem o contato com minha parceira de ato. Ocorre o
entrecruzamento entre os farrapos do ficcional e a gestação de um autêntico Happening ###
Movimento vanguardista marcadamente dos anos sessenta do século XX, cujos
princípios de criação se pautavam pelo acaso, o imprevisto, o aleatório e a
renuncia a todo elemento mimético fixado num texto; as obras deveriam se
estabelecer a partir do frescor inusitado e, por vezes, altamente arriscado dos
acontecimentos. Curioso notar como a estruturação da Performance “Em caso de
emergência quebre o vidro” pretende instalar essa temperatura e ambientação,
própria do happening, na sala de
apresentação; quando finalmente isso se instaura e ganha consistência entre os
presentes, os resquícios da forma dramática que “costuram” a performance se
chocam com estes elementos altamente imprevisíveis e, por isso mesmo,
organicamente gestados como happenings.
###
Mas a essa altura, o verme da minha consciência já havia corroído o que me
restava de textocentrismo e, então, não hesitei em abandonar por completo os
farrapos daquela história de amor e desilusão que insistia para ainda ser
notada aos sobressaltos. Tudo o que restava era seguir a linha orgânica do meu happening. Tudo o que nos resta é tomar
uma cerveja. ###
Mesmo evidenciado as sucessivas crises da forma dramática na atualidade, essa
espécie da Frankenstein chamado “Drama”, consegue encontrar fissuras e por elas
se alojar, instalando-se como uma espécie de parasita a espreita do bote
derradeiro. Note-se ainda que a Performance na acepção do alemão Hans-Thies
Lehamann, sendo o terceiro elemento situado entre o Drama e o Teatro, opera com
maior destreza nos momentos de fuga das convenções estabelecidas pela tradição
teatral. Logo, a dramaturgia de Denio Maués só foi relegada a segundo plano, na
minha recepção, na medida em que irrompeu reivindicando status de ação central na
Performance. Certamente, a dramaturgia opera com maior potência em sua versão
de rádio novela digital, dada a acompanhar na instalação localizada no hall de entrada do Estúdio Reator.
Exógena
Tudo que nos resta é
tomar uma cerveja. Embora altamente aprazível pelo ato de degustar, a
constatação não deixa de ser perturbadora se levado em consideração o índice de
reclusão colocado na premissa. O que temos feito para enfrentar a situação
adversa, humilhante e ultrajante para os artistas de teatro na cidade de Belém
do Pará ao longo dos últimos dezesseis anos? Há quanto tempo não nos
reconhecemos como uma categoria teatral?
Houve um tempo –
suspeito eu, em minha ligeira inocência romântica – em que bebíamos cerveja para
potencializar atos criativos, subversivos e fundamentalmente poéticos; ato
agregador e altamente sociável, beber cerveja colocava no mesmo patamar
artistas de teatro de diferentes gerações, classes sociais e níveis de
formação. Em volta da mesa do bar minha iniciação a “loura gelada” me colocou
lado a lado com artistas que admirava por seu potencial criador, mas, sobretudo
pelo posicionamento político e de enfrentamento que o teatro em Belém sempre
teve – uma rápida visita a história recente do teatro em Belém, atesta o vigor
e o engajamento político empreendido pelos artistas que criaram os grupos Norte
Teatro Escola do Pará e o Cena Aberta, pra citar apenas dois dos mais
importantes.
Mas fico com a
impressão, de que hoje, o nível de enfrentamento político ficou reduzido à
sobrevivência de espaços alternativos que foram abertos na cidade. Essa
política dos artistas de teatro de territorialização de novas salas de
apresentações injetou, certamente, animo novo aos produtores locais, pois os
teatros públicos oficiais encontram-se de portas fechadas – ou completamente
sucateados, vide o caso do Teatro Experimental Waldemar Henrique – para os
artistas da terra há pelo menos uma década e meia. O marco desse processo de
territorialização se estabeleceu na virada do século numa queda de braço entre
a categoria teatral – que na ocasião ainda se agrupava politicamente na
moribunda FESAT, para logo em seguida fundar a APLAUSO, associação que, segundo
me consta, não vingou por mais de três anos – e o então governador Almir
Gabriel, capitaneado por seu fiel escudeiro, Secretário de Cultura Paulo Chaves.
O símbolo maior do embate: O Teatro Experimental Waldemar Henrique. O momento
crítico: a reinauguração do Teatro Experimental Waldemar Henrique que contou
com a presença do Governador Almir Gabriel, do próprio secretário Paulo Chaves,
além de um seleto grupo de convidado exceto, é claro, a classe teatral que ficou
impedida de entrar na cerimônia que ocorria nas dependências internas do
teatro. O fato enfureceu os artistas que protestaram esmurrando portas e
janelas do prédio em repúdio ao tamanho desprestígio e desrespeito. A situação
foi tão tensa que o governador precisou sair do prédio escoltado pelo batalhão
de choque da policia militar, sob intensas vais dos artistas-manifestantes.
A partir do ocorrido a
categoria deu as costas para o teatro Waldemar Henrique numa atitude de
afrontamento político à gestão de Almir e Paulo Chaves e gradualmente passou a
territorializar a cidade com novos espaços. Surgiram, então, na cidade: Teatro
Cuíra, A Casa da Atriz, Teatro Porão Puta Merda, Casarão do Boneco, Espaço
Atores Contemporâneos, Casa Dirigível, Estúdio Reator, entre outros. Alguns já
fecharam as portas e outros lutam bravamente para manter-se de pé,
literalmente. Reconheço, admiro e louvo sinceramente o esforço de cada um
desses artistas que se mantêm na linha de frente das políticas culturais pra
cidade, administrando espaços privados com escassos recursos públicos, mas
voltados para o bem comum, dialogando abertamente com a sociedade,
problematizando-a e apontando rumos diferentes para vencer o cerco da lógica de
mercado capitalista que também assola as artes.
Decorridos, no entanto,
alguns anos dessa aventura de territorialização dos espaços na cidade, é
necessário refletir e mensurar até que ponto o enfrentamento e resistência de
outrora não se transformaram em recolhimento? Empresto o termo de Victor Peixe
que intitula “Teatro do Recolhimento” em contraponto ao “Teatro de
Resistência”. Segundo Victor – e concordando com ele – vivenciamos um momento
em que alguns artistas têm seu próprio espaço de criação, tencionam as
linguagens ao máximo possível – ou ao seu bel prazer – com vistas a extrair
delas um experimento revigorado, afinado com as tendências pós-dramáticas da
contemporaneidade, mas que não conseguem estabelecer-se como voz ou foco de
enfrentamento político. O motivo é aparentemente simples: trata-se de esforços
separados, isolados, recolhidos ao desejo de continuar fazendo teatro com a
liberdade necessária para experimentar o que bem entender e não efetivamente em
construir um discurso afinado de resistência a (des)política cultural do
estado.
E para não ser injusto,
me incluo entre aqueles cujo termo “Teatro do Recolhimento” se adequada
perfeitamente e me permito uma auto-citação, a título de exemplo. Embora não
possua um espaço alternativo particular, usufruo do Teatro Universitário
Claudio Barradas, espaço institucional que abriga minhas experimentações
artístico-acadêmicas há pelo menos cinco anos. Nele, tenho total liberdade – e
custo “zero” – para propor relações poéticas nos processos criativos que dirijo
no grupo de pesquisa do qual faço parte – o GITA – e em todas as minhas demais
produções. É cômodo demais contar com este espaço e, inevitavelmente, acabei me
recolhendo e me contentando em simplesmente tencionar as relações dentro desta
margem de segurança institucional. Mas qual a relação desta minha prática com a
cidade? Em que medida o discurso que instituo ali dentro não fica recluso as
paredes do teatro sem nunca, ou quase nunca, ultrapassá-las? O raciocínio é
valido para todas as demais produções institucionais da Escola de Teatro e
Dança da UFPA e penso que já é hora de avaliarmos criticamente se não nos encontramos
encastelados neste teatro. E o pior, se não tentamos fazer deste espaço uma
espécie de novo Waldemar Henrique – lugar que abrigue todas as produções teatrais
da cidade – justamente para tentar minimizar a lacuna deixada pelo próprio
estado.
Isso é resistência ou
recolhimento?
Reconheço a resistência
histórica e heróica de todos os espaços citados aqui, mas precisamos avançar na
compreensão e efetivação de práticas coletivas que nos devolvam a identidade de
categoria teatral. Do contrário continuaremos isolados e recolhidos aos nossos
desejos e aventuras estéticas. Já passou da hora de colocarmos um pouco de
ética em nossa insatisfação poética. A mesa do bar pode voltar a
potencializando nossos hábitos etílicos canalizando-os para um enfrentamento comum.
Assim, tudo que nos resta é tomar uma cerveja. Cabe a cada um de nós saber, no
entanto, qual cerveja verter: a do recolhimento ou a da resistência?
OBS: A Performance “Em
caso de emergência, quebre o vidro” me possibilitou refletir sobre um termo
instigante que temos discutido ultimamente no projeto TRIBUNA DO CRETINO. No
entanto, as considerações apresentadas aqui – na parte intitulada Exógena – não
se dirigem exclusivamente ao Estúdio Reator, mas sim ao conjunto de espaços
alternativos que mantêm relação semelhante com a cidade inclusive o Teatro Universitário Cláudio Barradas.
Edson
Fernando
28
de Fevereiro de 2016
FICHA
TÉCNICA
PERFORMANCE
“Em caso de emergência quebre o vidro”
Performer:
Dudu Lobato e
Paulí Banhos
Dramaturgia:
Denio Maués
Cenografia
/ Vídeo / Iluminação:
Nando Lima
Door:
Maurício Franco
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