domingo, 31 de maio de 2015

Nu Espelho

Edson Fernando: Ator, Diretor Teatral e Professor de Teoria do teatro da ETDUFPA.  
A Performance-Art continua se impondo como desafio aos que pretendem desvendá-la enquanto linguagem. Não é o que pretendo ao abordar a massagem xamânica de Leandro Haick, definida por ele como Instalação-Performance “Em busca do meu Xamã”. O trabalho pôde ser conferido por duas semanas ininterruptas na Ocupação Artística do Solar das Artes – Solar da Beira prédio tombado, localizado no centro da feira do Ver-o-Peso. Visitei a ocupação no último dia 21 de Maio e renovei minha vontade de resistir ao assalto da cultura operada pelo estado, município e federação. Passando algumas horas ao lado daqueles diversos artistas que montaram acampamento ali e produzem arte e política cultural a despeito do abandono, negligência e desfaçatez do gestor municipal – Sua Excelência, o Prefeito Zenaldo Coutinho – pude perceber a necessidade de se pensar outros modos de compreender e fazer arte. Alinhado a esta perspectiva o trabalho de Leandro me desafiou a pensar outra forma de encarar a vida – na sua condição de performer-ativista – e outro modo de registro das minhas impressões críticas.  É o que procuro fazer a seguir, fugindo das operações analíticas.  
“Fui pego de assalto: “Me fale um pouco de ti.” Minha expectativa inicial de ser conduzido passivamente a uma massagem relaxante foi frustrada com esta simples premissa. Frente a frente, olhos nos olhos, corpo a corpo; não havia escapatória a não ser me reconhecer como elemento ativo, co-partícipe do jogo, encontro cruel no tempo e espaço da liminaridade. O doce e sincero sorriso do xamã abriu a primeira porta de modo tão simples que paradoxalmente pude ver de imediato a vastidão dos caminhos que eu podia trilhar. Uma lágrima escorreu por dentro. Embora desconcertado e surpreso não hesitei, não vacilei; desatei a falar enfileirando uma porção de palavras – por vezes desconexas – na tentativa de definir aquilo que sou, aquilo que fui, aquilo que gostaria de ser. Havia iniciado, então, sem que percebesse, o vôo solitário do abutre sedento por carniça. O olhar e atenção do xamã são guias indispensáveis, mas sigo só devorando o próprio fígado, alimentando-me da própria bílis colérica de outrora. Nos olhos atentos do guia encontro a certeza de que não desejo expurgar nada, não desejo purificação, nada de santidade, nada de beatificação. O desejo é de escuta. Os partícipes da liminaridade parecem desse modo, estabelecer o laço de confiança necessária para avançar nos ritos. Meu corpo já pode prostrar-se na cabana do xamã. O momento agora é de entrega. Quando minhas costas tocam o chão da cabana e minhas pálpebras tombam instintivamente cerrando minha visão, sinto alargar minha sensibilidade. Subitamente refaço o trajeto que me conduziu até ali: ainda fora da cabana sou convidado a despir os pés; o faço sem resistência; quando se abre a fresta e adentro na cabana sou apresentado aos elementos do rito: um vaso com tajás, filtro dos sonhos, pequenas cumbucas e um alguidar com banho de ervas; este último é o que mais captura minha atenção e não contendo o laço afetivo que me ata a ele, peço para tocar as ervas; o xamã permite sem, no entanto, deixar passar a oportunidade para fazer a primeira revelação: sou ansioso demais; tudo tem o seu tempo. Toco as ervas, sinto-me nelas, encontro-me nelas na intensidade das coisas boas e ruis que me remetem. A janela da cabana está aberta e permite atravessar o luar e as suaves rajadas de vento frio. Conhecida a cabana é hora do encontro; sentamo-nos frente a frente, olhos nos olhos, corpo a corpo; a camiseta e o cinto são despidos antes da fatídica premissa: “Me fale um pouco de ti.” Já prostrado na cabana, a premissa se impõe, agora, de outro modo: o passeio das mãos do xamã no meu corpo rasga a pele como um bisturi; toque que fere, que machuca para além dos músculos; rasga a epiderme somatizada de convenções. É inevitável a explosão de imagens que se precipitam na zona fronteiriça entre a vigília e o sono. A sonoridade excessiva da aldeia atravessa a cabana, atravessa meu corpo sem, no entanto, interromper o toque do bisturi. Este encontra meu ponto de maior vulnerabilidade e fragilidade: o centro do plexo solar. Contenho a vontade de gritar, pois reconheço a necessidade do bisturi operar a cisão cruel. Sigo resoluto assimilando cada golpe; de peito pra cima, de peito pra baixo, o bisturi segue com as incisões, eliminando as adiposidades. Atravessamos a sala de cirurgia. É hora de revestir o corpo nu, suturado. Aqueço-me, agora, na fumaça do cachimbo do xamã; é ela quem forja minha nova pele revestida com pigmentação vermelha; meu corpo carrega as insígnias da minha própria busca. O silêncio se impõe. Talvez o sinal determinando que seja hora do retorno. Mas é precisamente o momento aonde vou mais longe; leve, me depreendo do chão e pairo suspenso num lugar que desconheço. Ainda silencio. O lugar é agradável. Desconfio que seja hora de retornar. O silencio persiste, e eu persisto no lugar. Instantes de incertezas. Silencio. Retornei. Sou amparado pelos braços do xamã que me ergue a partir da posição fetal – indício do (re)nascimento operado. O sorriso dele persiste; e naquele sorriso encontro o convite para o regresso da liminaridade. Sigo com a certeza de que é preciso (re)inventar as operações mais simples da vida, para que ela ainda faça sentido.”  
31.05.2015                 

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