Edson Fernando: Ator, Diretor
Teatral e Professor de Teoria do teatro da ETDUFPA.
A
Performance-Art continua se impondo
como desafio aos que pretendem desvendá-la enquanto linguagem. Não é o que
pretendo ao abordar a massagem xamânica de Leandro Haick, definida por ele como
Instalação-Performance “Em busca do meu Xamã”. O trabalho pôde ser conferido
por duas semanas ininterruptas na Ocupação Artística do Solar das Artes – Solar
da Beira prédio tombado, localizado no centro da feira do Ver-o-Peso. Visitei a
ocupação no último dia 21 de Maio e renovei minha vontade de resistir ao
assalto da cultura operada pelo estado, município e federação. Passando algumas
horas ao lado daqueles diversos artistas que montaram acampamento ali e
produzem arte e política cultural a despeito do abandono, negligência e
desfaçatez do gestor municipal – Sua Excelência, o Prefeito Zenaldo Coutinho – pude
perceber a necessidade de se pensar outros modos de compreender e fazer arte. Alinhado
a esta perspectiva o trabalho de Leandro me desafiou a pensar outra forma de
encarar a vida – na sua condição de performer-ativista
– e outro modo de registro das minhas impressões críticas. É o que procuro fazer a seguir, fugindo das
operações analíticas.
“Fui
pego de assalto: “Me fale um pouco de ti.” Minha expectativa inicial de ser
conduzido passivamente a uma massagem relaxante foi frustrada com esta simples
premissa. Frente a frente, olhos nos olhos, corpo a corpo; não havia escapatória
a não ser me reconhecer como elemento ativo, co-partícipe do jogo, encontro
cruel no tempo e espaço da liminaridade. O doce e sincero sorriso do xamã abriu
a primeira porta de modo tão simples que paradoxalmente pude ver de imediato a
vastidão dos caminhos que eu podia trilhar. Uma lágrima escorreu por dentro. Embora
desconcertado e surpreso não hesitei, não vacilei; desatei a falar enfileirando
uma porção de palavras – por vezes desconexas – na tentativa de definir aquilo
que sou, aquilo que fui, aquilo que gostaria de ser. Havia iniciado, então, sem
que percebesse, o vôo solitário do abutre sedento por carniça. O olhar e
atenção do xamã são guias indispensáveis, mas sigo só devorando o próprio fígado,
alimentando-me da própria bílis colérica de outrora. Nos olhos atentos do guia encontro
a certeza de que não desejo expurgar nada, não desejo purificação, nada de
santidade, nada de beatificação. O desejo é de escuta. Os partícipes da
liminaridade parecem desse modo, estabelecer o laço de confiança necessária
para avançar nos ritos. Meu corpo já pode prostrar-se na cabana do xamã. O
momento agora é de entrega. Quando minhas costas tocam o chão da cabana e
minhas pálpebras tombam instintivamente cerrando minha visão, sinto alargar minha
sensibilidade. Subitamente refaço o trajeto que me conduziu até ali: ainda fora
da cabana sou convidado a despir os pés; o faço sem resistência; quando se abre
a fresta e adentro na cabana sou apresentado aos elementos do rito: um vaso com
tajás, filtro dos sonhos, pequenas cumbucas e um alguidar com banho de ervas;
este último é o que mais captura minha atenção e não contendo o laço afetivo
que me ata a ele, peço para tocar as ervas; o xamã permite sem, no entanto, deixar
passar a oportunidade para fazer a primeira revelação: sou ansioso demais; tudo
tem o seu tempo. Toco as ervas, sinto-me nelas, encontro-me nelas na intensidade
das coisas boas e ruis que me remetem. A janela da cabana está aberta e permite
atravessar o luar e as suaves rajadas de vento frio. Conhecida a cabana é hora
do encontro; sentamo-nos frente a frente, olhos nos olhos, corpo a corpo; a
camiseta e o cinto são despidos antes da fatídica premissa: “Me fale um pouco
de ti.” Já prostrado na cabana, a premissa se impõe, agora, de outro modo: o passeio
das mãos do xamã no meu corpo rasga a pele como um bisturi; toque que fere, que
machuca para além dos músculos; rasga a epiderme somatizada de convenções. É
inevitável a explosão de imagens que se precipitam na zona fronteiriça entre a vigília
e o sono. A sonoridade excessiva da aldeia atravessa a cabana, atravessa meu
corpo sem, no entanto, interromper o toque do bisturi. Este encontra meu ponto
de maior vulnerabilidade e fragilidade: o centro do plexo solar. Contenho a vontade
de gritar, pois reconheço a necessidade do bisturi operar a cisão cruel. Sigo
resoluto assimilando cada golpe; de peito pra cima, de peito pra baixo, o
bisturi segue com as incisões, eliminando as adiposidades. Atravessamos a sala
de cirurgia. É hora de revestir o corpo nu, suturado. Aqueço-me, agora, na fumaça
do cachimbo do xamã; é ela quem forja minha nova pele revestida com pigmentação
vermelha; meu corpo carrega as insígnias da minha própria busca. O silêncio se impõe.
Talvez o sinal determinando que seja hora do retorno. Mas é precisamente o
momento aonde vou mais longe; leve, me depreendo do chão e pairo suspenso num
lugar que desconheço. Ainda silencio. O lugar é agradável. Desconfio que seja
hora de retornar. O silencio persiste, e eu persisto no lugar. Instantes de
incertezas. Silencio. Retornei. Sou amparado pelos braços do xamã que me ergue
a partir da posição fetal – indício do (re)nascimento operado. O sorriso dele
persiste; e naquele sorriso encontro o convite para o regresso da liminaridade.
Sigo com a certeza de que é preciso (re)inventar as operações mais simples da
vida, para que ela ainda faça sentido.”
31.05.2015
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