sábado, 30 de maio de 2015

Nem tão bicho, nem tão gente

Victor Peixe – Ator, participante do projeto Tribuna do Cretino

Qual o valor da hora-aula de um cavalo? Quantas chicotadas um professor aguenta? O que distancia o cavalo, submetido ao trabalho escravo, do homem escravizado pelo trabalho? São questões que Animalismo – A Nova Ordem Mundial do Grupo de Teatro Universitário me provoca, ainda que sem o compromisso de respondê-las.
Uma revolução acontece na Granja dos Bichos. A antiga ordem humana exploratória é abolida em prol de um novo sistema social justo e igualitário que respeita todos os bichos e, assim, o Animalismo é instaurado.
Com o passar dos anos, o novo sistema que em troca do trabalho árduo de todos garantiria o bem estar de galinhas, cavalos, ovelhas, vacas, bois, éguas, ratos e porcos se revela vantajoso apenas para os últimos, que tomam para si a direção do processo revolucionário, sob a justificativa da condição superior do trabalho intelectual dispensado à gerência da granja revolucionária.
Aos poucos, aquele que poderia ter sido um sistema social benéfico para todas as espécies, se revela tão opressor quanto à ordem humana. O sonho de liberdade se esvai, a realidade violenta piora a cada dia, com o novo regime de trabalho se tornando ainda mais exaustivo que o anterior. Os sonhos de esperança e liberdade se tornam um sussurro sonolento depois de um dia exaustivo de trabalho.
A retórica política rapidamente transforma os insatisfeitos em inimigos da revolução, entraves à ordem social e inimigos do progresso, imediatamente me remete à greve dos professores paraenses da rede estadual de ensino, transformados em detestáveis obstáculos da educação diante da generosidade do governo estadual.
Mas além de pensar a violência política que atravessa os ismos, Animalismo, ao atentar para a condição de escravidão a qual animais são submetidos, dá ares quase realistas à metáfora da opressão para além do nível humano, ainda que este não seja o eixo central da encenação.
Nessa provocação, Animalismo utiliza recursos que dialogam com o teatro brechtiano. O primeiro é o próprio espaço. O Fórum Landi não é uma caixa preta preparada para um trabalho cênico, assim o barulho da central de ar e a placa de “banheiro” se tornam camadas dramatúrgicas que quebram com a rigidez formal do espaço teatral.
O corpo-bicho dos atuantes e sua interação com os músicos; as placas que demarcam os atos – tempo; a narração; o intervalo com a entrada da equipe técnica em cena e os atuantes conversando entre si, num estado que não é o do corpo-bicho; a repetição da cena inicial ao final, todos estes são recursos que dialogam com o estranhamento e o distanciamento explorados por Brecht e que dão suporte a se pensar nossa arte para além da efemeridade do gesto cênico, onde no “mundo real” professores são espancados e crianças são mortas em morros por unidades de elite da polícia militar, enquanto a maioridade penal é reduzida.
Retomando a pergunta feita no início dessa crítica, qual é então a diferença, a distância entre homens e animais? O egoísmo e a mesquinhez da nossa raça. Isso pode ser lido na projeção de defeitos humanos como características animais: o político que legisla para si (porcos); os facilmente manipuláveis (ovelhas); submundo (rato); aquele que só vem agourar a vida dos outros (urubu); o barraco/ “galinhagem”; aquele que aguenta uma jornada de trabalho exaustiva (cavalo).
Tamanha é nossa letargia política, que talvez apenas observando a condição de um outro de nossa mesma espécie já não seja o suficiente pra provocar alguma movimentação. Nesse elemento, Animalismo timidamente provoca o público e o Teatro, a pensar para além da opressão e exploração humana, apontado para outro nível de alienação, o que existe entre espécies, na esquizofrenia moral que nos silencia – humanos – à violência contra todas as outras formas de vida animal, na provocação de que os sistemas, sejam quais forem, perpetuam a violência especista. Essa questão é amplamente debatida e enfrentada por grupos de libertação animal.
Mas o homem-bicho especista, abjeta essas comparações, prefere ser coisa do que animal não animal. Ignora que independente dos ismos, a diferença entre galinhas, porcos e humanos não vai além do tipo de abate, se na degola ou na aposentadoria. Isto pode ser metáfora humana, mas é realismo animal. Animalismo já existe, para toda espécie à mercê do açoite humano.
Assim, O Grupo de Teatro Universitário consegue fazer Teatro Político sem ser enfadonho ou panfletário, prezando por uma dramaturgia bem estruturada e pela preparação de seu elenco, aliando de forma coesa a provocação política com o cuidado estético.


16.05.2015

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