Credenciais do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor
Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA.
Poucos espetáculos de Teatro,
em Belém do Pará, conseguem a façanha de sobreviver a mais de uma temporada de
apresentações – via de regra, limitadas há um final de semana. Romper este
cerco estabelecido pela (dês)política cultural para a categoria teatral na
cidade – mais de uma década sob a tutela do jactancioso Secretário de Cultura
Paulo Chaves; e a FUMBEL, será que ainda existe? – já merece destaque e faz
deste ato um posicionamento político contumaz, uma espécie de tapa com luva de
pelica na face do soberbo secretário e da moribunda secretária municipal:
existimos, resistimos e não perdemos a ternura!
Embora seja da opinião
que a resposta da classe teatral diante da conjuntura cultural na cidade
devesse ser mais contundente, organizada e politizada, reconhecer a
persistência e resistência de alguns grupos de teatro na cidade – o GRUTA, por
exemplo, com mais de quatro décadas de trajetória – traz um alento e a lembrança
de que há vida criativa e inteligente para além do milionário Festival de Ópera
da SECULT-PA.
Curiosamente, na mesma
semana em que o Teatro Cuíra anunciou sua morte ainda em tenra infância – foram
nove anos de portas abertas para atividades culturais na cidade –, o Grupo de
Teatro Universitário/GTU entra no hall destes grupos que resistem ao tempo e as
mazelas sociais ao trazer ao público, pelo terceiro ano consecutivo, o
espetáculo Animalismo – A Nova Ordem
Mundial. A estratégia de sobrevivência deste grupo e espetáculo parece
seguir a cartilha da classe teatral na cidade: ocupação de novos territórios
como salas de espetáculos. O Fórum Landi – prédio histórico localizado na Praça
do Carmo – desta vez foi o território ocupado. É sobre este espetáculo que
dedicarei algumas considerações a seguir.
O primeiro destaque me
parece, já foi indicado, isto é: a duradoura sobrevida desta montagem que além
do já mencionado ato de resistência política, possibilita o amadurecimento dos
diversos elementos da encenação. Em segundo lugar, terei oportunidade de
refletir novamente sobre este trabalho. No entanto, ao contrário da primeira
crítica que teci em Setembro/2013 – onde, na ocasião, explorei a dimensão
metafórica da fábula e sua articulação com a conjuntura do país – gostaria de
focar nas questões formais da montagem para não ser repetitivo nas
considerações.
Resgato então, a
provocação final que encerra a crítica passada e a partir dela desdobro meus
novos questionamentos: “(...) o grito expresso nos cartazes continuarão
aprisionados na ficção se não ultrapassarem a porta do Teatro. Qual o lugar e o
tempo da revolução que queremos?”
De alguma forma,
enquanto assistia a apresentação da montagem, esta questão me atravessou novamente,
reelaborada numa perspectiva de compreensão das engrenagens da encenação, coisa
que a torna ainda mais inquietante: como articular ficção de conteúdo político
com uma forma não-dramática sem, no entanto, incorrer em panfletarismo
ideológico ou epicização gratuita? Como potencializar a obra de tal modo que as
discussões políticas da fábula repercutam também no seio da sociedade? Isso é
possível ou uma utopia de quem vos escreve?
Não há como refletir, a
meu ver, sobre estas questões sem visitar o léxico conceitual que estabelece em
campos antitéticos a forma dramática e a forma épica. Questão proeminente:
Animalismo é uma montagem dramática? A rigor não. Fatalmente, então, seria uma
montagem épica? Mesmo admitindo que não haja pureza nos gêneros, a resposta não
é simples e nem imediata, pois a obra transita flertando com ambos os gêneros
sem, no entanto, estabelecer-se como alternativa eqüidistante entre eles. Por
vezes, me convenço que é drama com elementos épicos: a histórica se intensifica
até atingir um nível de tensão aguda – clímax – com a morte do cavalo Sansão,
ápice/síntese do drama social dos animais da Granja dos Bichos. A tensão é
construída, no entanto, em saltos épicos de tempo e fragmentação da montagem em
três intervalos, momentos estes de clara adesão a quebra da quarta parede. A
quebra proporcionada pelo anuncio do intervalo se limita a formalidade deste
ato na medida em que não aciona, sugere ou indica questões junto à platéia.
Assim, permanecemos na condição de espectadores a testemunhar um procedimento
formal épico. Então, até que ponto os intervalos propostos não se voltam contra
a própria estrutura da encenação?
Por isso, logo abandono
esta perspectiva de análise para então passar a acreditar que se trata de uma
fábula épica com fortes contornos dramáticos: a história nos é contada em
saltos no tempo, com pelo menos três grandes interrupções – os intervalos –,
uso de canções e placas que distanciam e/ou contextualizam os acontecimentos;
mas em meio a tudo isso uma forma de atuação/interpretação carregada de dramaticidade.
Destaco como exemplo disso a atuação nos papéis de Garganta, Benjamin e Sansão,
atuações que passarei a analisar abaixo.
O primeiro é quem mais exagera
na dramaticidade colocada no papel: a atriz que o interpreta obstina-se tanto em
retratá-lo como o grande vilão da trama que exagera no volume de voz, durante
quase toda sua participação, perdendo boa parte das nuances do texto, nuances
estas que poderiam ser reveladoras do caráter daqueles que costumam ter em mãos
os destinos de uma sociedade, ou seja, o modo dissimulado e ardiloso com que
tratam as questões públicas sobrepondo a elas seus interesses particulares. O
que vemos, no entanto, é o Porco Garganta tecido linearmente como alguém cruel,
arrogante e vil tendo essas qualidades elevadas sempre a potencia máxima que o drama
permite. Perde-se com isso a possibilidade de desenvolvimento da desfaçatez, maquiavelismo
e cinismo próprios dos detentores do poder no Brasil. O papel fica confinado,
deste modo, a sua função dramática de propulsor e intensificador do conflito – uma
espécie de antagonista (vilão) retratado com tinta forte – fragilizando por
demais seus aspectos épicos.
A atuação no papel de Benjamin,
por sua vez, encarrega-se de fazer o contraponto dramático a Garganta. Temos,
neste caso, um tom de interpretação que explora a dimensão emocional do drama social
do Cavalo Sansão. Temos novamente o volume de voz elevado articulado com o tom
de indignação emocional pelo desfecho fúnebre de uma das forças de trabalho
mais valorosa da Granja dos Bichos. O modo emocionado como a atriz que atua Benjamin
conduz as cenas finais da peça, fragiliza o próprio drama social construído ao
longo da história, pois nos apiedamos da sorte individual de Sansão e não do que
esta morte representa na sua dimensão social. Quem morre, portanto, é um cavalo
e não o que este cavalo representa no contexto social da fábula.
A atuação de Sansão é a
que menos fragiliza os elementos épicos da montagem, mas nem por isso deixa de
incorrer em alguns elementos semelhantes: o volume de voz também é exagerado
nos momentos de maior tensão dramática – aliás, este é um problema de quase
todos no elenco nesta temporada – e sua indignação diante da situação de
exploração na granja também nos aciona uma recepção emocional preparando, deste
modo, o desfecho catártico aludido anteriormente.
Outro elemento
intrigante e que merece uma reflexão são os cartazes que aprecem na montagem.
Primeiramente remeto ao cartaz usado na cena de protesto das Galinhas, pois ele
alude quase que diretamente para o grande slogan dos protestos de Junho de
2013: “não é pelos vinte centavos”. Quando foi usado na primeira temporada da
montagem ocorrida em 2013, o resultado em cena foi imediato e facilmente
perceptível na reação calorosa da platéia, pois estabeleceu elo com as demandas
sociais que gritavam nas ruas do país inteiro naquela ocasião. Utilizar um
cartaz com uma legenda histórica tão marcante sem nenhuma contextualização soou
como anacronismo, também facilmente perceptível pela gélida reação da platéia.
O mais instigante, no
entanto, são os cartazes portados pelo elenco no final da montagem: a ênfase,
desta vez, recaiu no apoio à greve dos professores do estado. O curioso e
instigante é que – como tentei demonstrar ao longo desta crítica – a montagem
oscila entre o dramático e o épico, com ênfase para o primeiro. Então, esta
última “cena” da montagem provoca-nos a pensar para além do palco e é o único
momento em que há, de fato, uma quebra da quarta-parede com objetivo de
contextualizar a conjuntura local, superando, portanto, um mero formalismo
épico. É curioso, provocante, mas também estranho, pois passamos quase duas
horas de espetáculo sem nenhuma ação desta natureza antes. Seria esta,
suficiente para nos mover para fora da fábula?
São estas questões que
me fazem continuar perseguindo um modo de compreender e de fazer arte com
engajamento político, ou melhor, uma arte que se reconheça ativista, uma por
assim dizer ARTIVISTA.
17.05.2015
Edson
Fernando
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