Espetáculo: Barrela.
Credenciais
do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor Teatral.
Garoto
de onze anos é dopado, maltratado e assassinado pelo próprio pai e madrasta. Jovem
estudante é espancado e golpeado no rosto com uma lâmpada fluorescente, pelo
simples fato de ser gay. Um dentista é queimado vivo dentro do próprio
consultório por criminosos que buscavam dinheiro. Adolescente de dezesseis
anos, proibido de jogar vídeo game, mata a facadas a própria avó dentro de
casa. Menina de cinco anos morre depois de ser arremessada pelo pai e madrasta
do sexto andar do prédio onde morava. Garoto de seis anos tem corpo arrastado no
asfalto por sete quilômetros durante assalto ao veículo da mãe.
O
que outrora poderiam ser bons argumentos para uma dramaturgia sem filtros
literários hoje se confundem com a própria realidade. E tudo se torna ainda mais
grave quando temos os dois maiores grupos de comunicação do estado disputando a
preferência do leitor e utilizando-se de um marketing ardiloso que expõe, sem
nenhum constrangimento em suas capas dos noticiários policiais, fotos de gente
em situação degradante - dos acidentes de trânsito aos mutilados por selvageria
criminosa. O que nos resta a fazer,
então, quando a realidade insiste em nos fazer acreditar que seu roteiro
trágico, cruel e bizarro deixou de ser ficção?
Esta
parece ser uma questão imperiosa para os que hoje se aventuram com a
dramaturgia de Plínio Marcos. De traço dramatúrgico caracteristicamente seco e
propositadamente fiel a situação-limite que retrata, o autor da cidade de
Santos não se esforça por embelezar a fábula e desenvolve o gênero dramático,
pela primeira vez no Brasil, pela ótica do marginal, denunciando o processo de
coisificação que atravessa todos aqueles que são alijados de sua
humanidade.
O
grupo Os Varisteiros tomou pra si este
desafio: encarar a dramaturgia de Plínio, confrontando-o com a realidade de
violência gratuita e desmedida citada anteriormente. O texto escolhido não
poderia oferecer maior dificuldade: Barrela,
o drama inaugural na carreira do autor que retrata o caso real de um garoto
currado na cadeia, ocorrido em 1958; o garoto se vinga dois dias depois matando
quatro dos seus algozes. A noticia que na época chocou o Palhaço Frajola -
alcunha que o mesmo assumiu quando trabalhava no circo - hoje não alcançaria a
mesma repercussão chocante na população ou mesmo espaço relevante na imprensa
local acostumada a explorar casos mais sanguinários e brutais.
O
primeiro mérito dos Varisteiros,
portanto, encontra-se exatamente no fato de não fazer da temática central da
obra - o estupro do garoto na prisão - a
questão principal que move a montagem. O que se coloca em primeiro plano, ao
invés disso, é a situação de animalização dos encarcerados e seus dramas individuais.
Acompanhamos as personagens durante uma noite na cela da cadeia e verificamos
como este lugar inóspito furta o pouco de dignidade que ainda pode restar num
ser humano; importante destacar que não estou me referindo ao ocorrido com o
garoto barrelado, mas sim ao estado de perplexidade de Bereco - personagem
considerada o "xerife" da cela - com o desfecho trágico do Portuga ao
final da peça; é o momento do confronto com o espelho - tomada de consciência
da personagem - revelando-lhe aquela carcaça de homem que sobrou diante da
situação atroz.
Esta
dimensão proposta pela montagem está diretamente ligada a relação palco-plateia
desenvolvida pela encenação: uma arena intimista numa sala razoavelmente
pequena - dependências da Casa Dirigível Espaço Cultural - com todos os
espectadores colocados sentados no chão nu, tendo todas as paredes cobertas com
panadas pretas. Assim disposta, o espaço da montagem nos coloca dentro da cela
e não precisamos de muito tempo para sentir o desconforto, próprio deste lugar:
o calor vai se impondo gradativamente; a dor na bunda e nas costas por estarmos
sentados no chão duro; a sensação de clausura pela ausência de janelas e de luz
externa.
É
curioso observar, no entanto, o gesto que o Carcereiro realiza durante boa
parte da montagem: caminha solenemente demarcando um quadrado em torno dos
demais atuantes; para em cada canto do quadrado e ergue até a altura da sua testa
o molho de chaves que carrega realizando movimentação ritualizada; vai
construindo assim, alegoricamente, as grades invisíveis que aprisionam as
personagens. Temos, aqui então o que considero ser uma fissura na encenação,
pois se a relação palco-plateia mencionada anteriormente se presta a nos
colocar dentro da cela, ao estabelecer a alegoria da cela dos encarcerados por
meio deste gesto do Carcereiro nos é remetida a ideia de uma cela dentro de uma
cela. Este fato encontra-se reforçado no modo como todos os atuantes
interpretam seus papeis: trabalhando na perspectiva da quarta parede, isto é,
sem estabelecer nenhum contato direto ou indireto com os espectadores. E é
exatamente aqui que a montagem perde em intensidade dramática, pois, ao nos
apartar do drama somos colocados na condição de meros voyeurs dos acontecimentos. O curioso é que estamos tão perto de
tudo, sentimos os respingos de suor - e não são poucos - dos atuantes, mas
somos ignorados pelos olhares cheios de vida de todas as personagens.
Felizmente
trata-se de uma fissura na encenação e pode ser avaliada pelos Varisteiros a partir dos elementos
propulsores que fundam a poética desta montagem. E, sem dúvida nenhuma, um
destes elementos encontra-se no trabalho vigoroso e pre-expressivo dos atuantes.
A encenação, aliás, utiliza mínimos recursos de iluminação, pouquíssimos
elementos cenográficos e figurino realista, pois, deposita toda sua confiança
na qualidade de presença de todos os seus atuantes. São os corpos dilatados dos seis atuantes que
nos envolvem no drama e nos possibilitam ultrapassar a dimensão dramatúrgica do
texto de Plínio.
Desde
o início esta esfera pre-expressiva está posta: enquanto todos dormem no chão
da cela o atuante que interpreta o Portuga encontra-se em absoluta qualidade de
atenção com olhar fixo a frente, respiração firme, controlada e compassada e
base corporal extra-cotidiana. Ao longo da apresentação os demais atuantes
demonstram a mesma qualidade na interpretação - tanto nos momentos de
contracena direta onde os olhares se confrontam numa espécie de embate
derradeiro, quanto nos momentos de contracena indireta onde cada atuante se
mantém ocupado na escuta do contexto da cena sem desperdiçar energia com movimentações
desnecessárias e aleatórias. O conjunto das ações dramáticas, desse modo,
mantém um calculo de qualidade de presença milimétrico tornando a fábula
intensa para além de seu conteúdo. E isto é que nos mantêm ligados e instigados
a perseguir o desenrolar dos acontecimentos, pois, vamos sendo alimentados com
a sensação de que a qualquer momento a situação ultrapassará o limite do
suportável.
O
mérito, neste caso, deve ser compartilhado com a direção da montagem que
apresenta-se segura na condução do ritmo equilibrado de clímax e relaxamento do
drama - característica peculiar na dramaturgia pliniana. Perseguindo a
alternância destes estados - clímax e relaxamento do drama - ao longo da
montagem, o diretor Maycon Douglas porta-se como um maestro decifrando e
regendo as partituras da obra. O trabalho, desse modo, consiste em administrar
tanto os elementos colocados na própria dramaturgia de Plínio, quanto o
trabalho pre-expressivo dos atuantes.
Uma
última questão, que remete a primeira suscitada nesta crítica, refere-se aos
motivos de se visitar a primeira obra dramatúrgica de Plínio. Embora, mereça
destaque pelos elementos aqui apontados a montagem oferece apenas pistas para a
questão: o que desejo discutir e comunicar ao montar Barrela, de Plínio Marcos? A questão parece permanecer aprisionada
na cela criada pelo gesto do Carcereiro. E uma das pistas mais valiosas me
parece encontrar-se exatamente no outro gesto significativo da montagem: o atuante
que interpreta o Carcereiro é o mesmo que interpreta o Garoto que será currado.
Temos assim, a possibilidade de pensar as duas faces da situação-limite da peça
fugindo à lógica da vitimização dos encarcerados, pois aquele que cria a cela -
o Carcereiro - é o mesmo que sofrerá as consequências dos dispositivos de poder
instalados dentro da cela. É uma provocação muito interessante, mas que esbarra
nos limites das pistas oferecidas pela montagem. O caminho talvez seja explorar
mais a dimensão gestual da peça, apropriando-se dos seus elementos mais
significativos e fazendo-os interagir com os espectadores revisando, portanto,
a relação palco-plateia.
Edson Fernando
20.09.2014
oi, professor. gostei muito da crítica. em meu texto sobre a primeira temporada da montagem (http://oteatrocomoelee.wordpress.com/2014/06/13/plinio-marcos-honrado-pelos-varisteiros/) ressaltei também o domínio da direção e algumas questões políticas de se montar plínio. gostei em especial de seu comentário sobre os estados psicofísicos dos atores, frutos de um notável (e corajoso, eu diria) trabalho pré-expressivo, e sua percepção sobre o carcereiro e o barrelado serem o mesmo atuante. deixo uma pergunta em caráter de provocação: o fato do público estar muito perto, mas, como dizes, ser ignorado do início ao fim pela ação dramática, não pode caracterizar uma escolha consciente da montagem, no sentido de dar ao espectador a mesma indiferença sistemática e agoniante que os presos sofrem? obrigado!
ResponderExcluirarthur ribeiro