Espetáculo: O Auto
da Feira.
Credenciais
do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor Teatral, Prof. de
Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO DE ANIMADORES DE CAIXA e como
pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do
Atuantes.
Começo
alertado para a possível categorização-problema sugerida no título desta
crítica. O alerta serve para não incorrermos no equívoco de rotularmos a
montagem teatral apresentada pelo Grupo da Unipop com um ou outro adjetivo
categórico. O Auto da Feira
apresentado por este grupo – que recebe a adaptação do texto de Gil Vicente
realizada pelos dramaturgos Hudson Andrade e Carlos Correia Santos – a rigor
não pode ser definido nem como uma “Feira sem Farsa” e nem como uma “Farsa sem
Feira”, mas antes como um lugar eqüidistante entre estes dois pólos. O título,
portanto, traz uma provocação para pensarmos a partir deste lugar intermediário
que se plenifica na encenação proposta e, fundamentalmente, no trabalho dos
atuantes. Assim sendo, usarei estes pólos como parâmetro para este pequeno
exercício de impressão crítica.
A
montagem começa tímida: depois de um pequeno cortejo com o elenco entoando uma
canção sobre a “feira de virtudes” que se estabelecerá no local da apresentação
e que percorre os arredores da semi-arena localizada no Memorial dos Povos
Indígenas no Complexo Ver-o-Rio, temos propriamente o início da apresentação.
Mercúrio é o personagem que abre o prólogo inicial contextualizando a trama e
convidando à cena os dois principais feirantes: Tempo e Serafim. Tudo se passa
numa atmosfera celestial, pois afinal se trata de uma feira de virtudes. O modo
delicadamente poético como tudo se estabelece neste início de apresentação (a
visualidade dos elementos de cena, a cenografia, os figurinos, a sonoplastia
acústica e, fundamentalmente, o modo como estes três atuantes desenvolvem seu
trabalho) nós levam para longe da agitação e inquietude peculiares a qualquer
feira de nossa cidade. Estamos, portanto, tendendo para o pólo da “Farsa sem
Feira”, isto é, os papéis que até então dominam a cena (Mercúrio, Tempo e Serafim), embora tenham sua constituição comungando dos elementos farsescos –
neste caso a constituição corporal que recorre à elaboração exagerada do
gestual e o uso de caretas – não instituem o alvoroço e o clima de balburdia de
uma feira. O clima de quietude que se passa até a entrada do Capeta – típico
personagem de um auto – chega a incomodar pela falta de jogo com a platéia (os
“clientes da feira”).
É
interessante observar como a encenação vai investindo no pólo oposto – “Feira
sem Farsa” – exatamente a partir da entrada do Capeta, uma espécie de feirante
inescrupuloso que assume toda a carga moral negativa da trama fazendo o
contraponto com as personagens “virtuosas”, ou pelo menos com aqueles que
negociam a venda das virtudes (Mercúrio, Tempo e Serafim). Boa parte do êxito,
neste sentido, deve-se a atriz que interpreta o papel, Vanda Lopez. Experiente,
a atuante tem boa desenvoltura na construção corporalmente farsesca de seu
papel: burlesco, caricato e levemente grotesco. O jogo com a platéia vai se
estabelecendo numa crescente a partir da entrada desta personagem, responsável
pelo contraponto que nos possibilita refletir sobre a questão central que move
a montagem: a aquisição ou não de virtudes morais. Curioso notar como o
trabalho desta atuante embora notadamente farsesco não recai no exagero do
gênero e, por isso, considero que ela mais institui o clima de feira do que
propriamente o gênero Farsa.
Sobre
a questão central da montagem – a aquisição ou não de virtudes morais – o
assunto não poderia ter melhor ocasião para ser visitado do que o momento de
eleições presidenciais em que vivemos. O esvaziamento das questões éticas,
tanto no plano nacional quanto local – nos dá o diagnóstico de que os produtos
vendidos na “feira de virtudes” da montagem caíram há muito tempo em desuso em
nosso mundo real por parte não somente dos candidatos, mas também do próprio
eleitor que vislumbra o momento do pleito como possibilidade para levar alguma
vantagem particular – seja ganhando um trocado nas famigeradas bandeiradas de
esquina, na venda do voto por cesta básica, medicamento ou carrada de aterro ou
num possível cargo ao lado do candidato eleito. Desse modo, não é difícil
perceber a verossimilhança que a montagem nos propõe. Em particular, destaco os
produtos oferecidos pelo Capeta: toda sorte de falsificação e embustes
possíveis para se levar vantagem no dia a dia de uma sociedade corrompida e
corruptível como a nossa. Prova inconteste disso foi o “Diploma de Adevogado”
que o Capeta me ofereceu, talvez de mesma origem que o do excelentíssimo
ex-prefeito de Belém e agora candidato ao senado federal, Duciomar Costa, só
que este último tem um de médico.
Retomando o raciocínio para o desenvolvimento
da encenação o clima de feira vai ganhando contornos cada vez mais
significativos na medida em que os outros personagens popularescos vão ganhando
espaço na trama. Na medida em que isso ocorre a platéia vai se sentindo mais
atraída pro interior da fábula; a montagem ganha em vigor e ritmo atingindo o
clímax na cena em que é necessário recuperar o dinheiro perdido por uma das
personagens trapaceadas pelo Capeta. Merece destaque a solução cênica
encontrada para se resolver este conflito: a tradicional rodada do chapéu com o
público presente. Tal solução estabelece um elo perfeito entre a fábula e o
nosso mundo real e novamente aponta para este lugar comum entre os dois
universos distintos, mas com semelhanças tragicamente idênticas.
E
para finalizar o raciocínio que estabeleci no início do texto a partir dos
pólos que vão da “Farsa sem Feira” – início da montagem – até a “Feira sem
Farsa” – do meio até o final – necessito elencar os outros elementos que embora
sejam ferramentas da Farsa não se instituem como tal na montagem. São eles: uso
das máscaras ou meia-máscara, linguajar das personagens popularescas,
expressões faciais caricatas, gestualidade dilatada. Penso que todos estes
elementos são trabalhados numa freqüência de menor intensidade que os
desconectam propriamente da farsa enquanto gênero, muito mais propenso aos
histrionismo e obscenidade propositadamente carregada. O mérito, neste caso,
pode ser creditado em boa parte a direção do trabalho que não permite o uso
excessivo de improvisos – os famosos “cacos” na gíria teatral – recurso
invariavelmente recorrente em quem pretende provocar o riso a todo e qualquer
custo. Mas devo também frisar o trabalho de adaptação do texto de Gil Vicente
para nosso contexto local. Hudson e Carlos trabalham com uma dramaturgia que sem
recorrer aos clichês paraoaras consegue aproximar bastante a obra para nosso
contexto familiar.
Edson Fernando
06.09.2014
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