Peça:
Auto da feira
Crítica produzida pela Prof.ª
Msc. Silvia Luz
Atmosfera
calma e familiar era o colorido da feira do Ver-o-peso em tempos de Círio de
Nazaré, o cenário era de uma feira diferente. A peça era “O auto da feira”,
encenada pelo grupo de teatro da UNIPOP. O texto de Gil Vicente foi adaptado
por Hudson Andrade e Carlos Corrêa. Com o olhar curioso e memória voltada aos
textos de Gil Vicente, os tipos sociais presentes na peça, eram os que datavam
do século XVI, mas que cabe como uma luva em pleno século XXI – nobreza, clero
e povo. Sabemo-nos que estas classes primam pelo bom caráter e virtudes, em
oposição a incansável busca pelo poder, este advindo do dinheiro. Esta busca
enreda os personagens presentes no auto – Mercúrio, Roma, Tempo, Serafim e
Diabo a utilizarem de meios nada éticos em busca dos seus objetivos.
O
jogo cênico com a plateia começou empatado, atuantes e espectadores, esperavam
para quem ia começar o jogo, ou melhor, a feira. Diante da falta de jogo
inicial a apresentação ficou no plano visual, cenário, figurinos e objetos
cênicos que compunham uma feira onírica e no plano não terreno, talvez. Par ou
ímpar? O personagem Mercúrio ordena a feira que não é um espaço comercial
qualquer, mas um espaço determinante para que os personagens possam comprar ora
as virtudes “vendidas” pelo anjo, ora as “torpezas” vendidas na Tenda do Diabo
e quase que despercebido dois bonecos dialogavam sobre suas esposas que estavam
fazendo a feira.
Dependendo
da lábia do vendedor o produto era vendido ou não. Agora o que devemos comprar,
brincos ou Gentilezas? Este é momento que põe em cheque o livre arbítrio, onde se
revela um tempo atual, no tempo em que as pessoas tinham seus destinos
ordenados por dogmas religiosos, os mesmos de sempre, um deles é o pobre obedecer
quem tem o poder. Na peça a nobreza representada pela personagem Roma, que
demonstrou está alheia à realidade atual, ditando regras que ela mesma não
cumpre, prova disso é sua escrava que fica acorrentada em seu braço, sendo
liberta por uma crença popular: um banho de quebra corrente, ou algo
semelhante, vendido pelo Diabo que engana a senhora.
Aproveito
e faço um contraponto com o nosso momento eleitoral em relação aos candidatos,
mas o importante agora não é dizer que esta realidade desigual é secular, que
“pau que nasce torto nunca se endireita” ou “filho de peixe peixinho é”. O mais
intrigante que quem abre os olhos para esta realidade é o próprio Diabo, ele
invoca os espectadores a uma reflexão de seus próprios atos enquanto cidadão,
levando-os a ter noção de que o caráter que possuem não é questão de destino,
mas de livre arbítrio, sendo cada um responsável por seus atos.
Nos
autos de Gil Vicente o alicerce basicamente é a luta do bem contra o mal, mas
aí eu pergunto, será que ainda dá pra dividir os lados? Dos personagens
presentes na peça, quais são do bem e do mal?
Ou tudo depende de qual lado você está? O texto apresentado teve
adaptações que foram postas de uma forma consistente no que tange a realidade
atual, revelou as mazelas sociais ludibriadas pela hipocrisia humana.
O
personagem Mercúrio é um exemplo disso quando enumera suas qualidades de
mercador e impõe uma feira, não mais em Portugal, mas em Belém do Pará. Vejo
este personagem como um político atual, mas que traz uma herança velha, a
corrupção em seus objetivos. A peça em um determinado momento nos remete a um
templo sagrado, exatamente naquele momento “santo”, o da oferta. Quando
eficientemente o diretor Alexandre Luz, usa este momento para arrecadar
dinheiro para ajudar uma pobre senhora que fora vítima do Diabo na feira das
virtudes. O elenco resolve passar as sacolinhas feitas nos moldes das igrejas
atuais, na famosa rodada de chapéu. Neste exato momento mais uma vez o
personagem Diabo apronta e leva a sacolinha do dinheiro. Esse ato é típico de
um mau caráter, mas que atualmente roubar uns trocados não é pecado, furar fila
não é falta de ética, sentar no assento reservado ao idoso é legal, que quem
não passa o outro para trás é besta. O Diabo revela que para ser desonesto
basta à pessoa ser obcecada pela riqueza para usar de artifícios mais sujos
possíveis para conseguir o que quer.
Roma
vê o Serafim como anódino, um alívio para o tormento que tanto a assola. A peça
revela nos personagens Tempo e Serafim, personagens que zelam por um valor
ético e moral, enquanto o Diabo, o espertalhão que abusa das fragilidades dos
seus clientes, aponta os pecados ocultos dos religiosos. Estes personagens revelam
que os representantes da igreja que insistem em ditar regras, mas que nem eles
e seus fiéis escudeiros são capazes de cumprir o que pregam. O interessante da
apresentação que apesar de não ter gerado um jogo cênico no ritmo que a feira
pedia, ficou claro o bem e o mal nas atuações de Caroline Dominguez e Vanda
Lopes, respectivamente Serafim e Diabo, quando o anjo desiste de compreender o porquê
das pessoas quererem somente as coisas materiais e o Diabo quando tudo que
oferece tem alguém que compre, isso nos mostra que nós também nos interessamos
apenas por aquilo que satisfaz as nossas necessidades imediatas, ao invés de se
preocupar com os outros.
Silvia Luz
10.09.2014
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