quarta-feira, 10 de setembro de 2014

AUTO-PODER EM AUTO DA FEIRA

Peça: Auto da feira
Crítica produzida pela Prof.ª Msc. Silvia Luz

Atmosfera calma e familiar era o colorido da feira do Ver-o-peso em tempos de Círio de Nazaré, o cenário era de uma feira diferente. A peça era “O auto da feira”, encenada pelo grupo de teatro da UNIPOP. O texto de Gil Vicente foi adaptado por Hudson Andrade e Carlos Corrêa. Com o olhar curioso e memória voltada aos textos de Gil Vicente, os tipos sociais presentes na peça, eram os que datavam do século XVI, mas que cabe como uma luva em pleno século XXI – nobreza, clero e povo. Sabemo-nos que estas classes primam pelo bom caráter e virtudes, em oposição a incansável busca pelo poder, este advindo do dinheiro. Esta busca enreda os personagens presentes no auto – Mercúrio, Roma, Tempo, Serafim e Diabo a utilizarem de meios nada éticos em busca dos seus objetivos.
O jogo cênico com a plateia começou empatado, atuantes e espectadores, esperavam para quem ia começar o jogo, ou melhor, a feira. Diante da falta de jogo inicial a apresentação ficou no plano visual, cenário, figurinos e objetos cênicos que compunham uma feira onírica e no plano não terreno, talvez. Par ou ímpar? O personagem Mercúrio ordena a feira que não é um espaço comercial qualquer, mas um espaço determinante para que os personagens possam comprar ora as virtudes “vendidas” pelo anjo, ora as “torpezas” vendidas na Tenda do Diabo e quase que despercebido dois bonecos dialogavam sobre suas esposas que estavam fazendo a feira.
Dependendo da lábia do vendedor o produto era vendido ou não. Agora o que devemos comprar, brincos ou Gentilezas? Este é momento que põe em cheque o livre arbítrio, onde se revela um tempo atual, no tempo em que as pessoas tinham seus destinos ordenados por dogmas religiosos, os mesmos de sempre, um deles é o pobre obedecer quem tem o poder. Na peça a nobreza representada pela personagem Roma, que demonstrou está alheia à realidade atual, ditando regras que ela mesma não cumpre, prova disso é sua escrava que fica acorrentada em seu braço, sendo liberta por uma crença popular: um banho de quebra corrente, ou algo semelhante, vendido pelo Diabo que engana a senhora.
Aproveito e faço um contraponto com o nosso momento eleitoral em relação aos candidatos, mas o importante agora não é dizer que esta realidade desigual é secular, que “pau que nasce torto nunca se endireita” ou “filho de peixe peixinho é”. O mais intrigante que quem abre os olhos para esta realidade é o próprio Diabo, ele invoca os espectadores a uma reflexão de seus próprios atos enquanto cidadão, levando-os a ter noção de que o caráter que possuem não é questão de destino, mas de livre arbítrio, sendo cada um responsável por seus atos.
Nos autos de Gil Vicente o alicerce basicamente é a luta do bem contra o mal, mas aí eu pergunto, será que ainda dá pra dividir os lados? Dos personagens presentes na peça, quais são do bem e do mal?  Ou tudo depende de qual lado você está? O texto apresentado teve adaptações que foram postas de uma forma consistente no que tange a realidade atual, revelou as mazelas sociais ludibriadas pela hipocrisia humana.
O personagem Mercúrio é um exemplo disso quando enumera suas qualidades de mercador e impõe uma feira, não mais em Portugal, mas em Belém do Pará. Vejo este personagem como um político atual, mas que traz uma herança velha, a corrupção em seus objetivos. A peça em um determinado momento nos remete a um templo sagrado, exatamente naquele momento “santo”, o da oferta. Quando eficientemente o diretor Alexandre Luz, usa este momento para arrecadar dinheiro para ajudar uma pobre senhora que fora vítima do Diabo na feira das virtudes. O elenco resolve passar as sacolinhas feitas nos moldes das igrejas atuais, na famosa rodada de chapéu. Neste exato momento mais uma vez o personagem Diabo apronta e leva a sacolinha do dinheiro. Esse ato é típico de um mau caráter, mas que atualmente roubar uns trocados não é pecado, furar fila não é falta de ética, sentar no assento reservado ao idoso é legal, que quem não passa o outro para trás é besta. O Diabo revela que para ser desonesto basta à pessoa ser obcecada pela riqueza para usar de artifícios mais sujos possíveis para conseguir o que quer.
Roma vê o Serafim como anódino, um alívio para o tormento que tanto a assola. A peça revela nos personagens Tempo e Serafim, personagens que zelam por um valor ético e moral, enquanto o Diabo, o espertalhão que abusa das fragilidades dos seus clientes, aponta os pecados ocultos dos religiosos. Estes personagens revelam que os representantes da igreja que insistem em ditar regras, mas que nem eles e seus fiéis escudeiros são capazes de cumprir o que pregam. O interessante da apresentação que apesar de não ter gerado um jogo cênico no ritmo que a feira pedia, ficou claro o bem e o mal nas atuações de Caroline Dominguez e Vanda Lopes, respectivamente Serafim e Diabo, quando o anjo desiste de compreender o porquê das pessoas quererem somente as coisas materiais e o Diabo quando tudo que oferece tem alguém que compre, isso nos mostra que nós também nos interessamos apenas por aquilo que satisfaz as nossas necessidades imediatas, ao invés de se preocupar com os outros.

Silvia Luz
10.09.2014

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