Espetáculo: Isso é um
absurdo.
Crítica produzida por
Edson Fernando, Ator e Diretor Teatral.
O
debate sobre os direitos civis tem conquistado cada vez mais espaço na
atualidade. A luta de diversos grupos minoritários – assim denominados pela
sociologia, por sua posição subordinada aos interesses da população majoritária
de uma sociedade – felizmente vem se revertendo, gradativamente, em conquistas
expressas na forma da lei. O embate gerado por estas demandas – as “minorias” –
proporciona o exercício para o amadurecimento de uma democracia ainda muito
fragilizada, como a que temos no Brasil. A fragilidade de nosso regime é
facilmente detectada quando discussões legítimas como a questão da igualdade
racial descamba para uma forma de reacionarismo que coloca em xeque um dos
direitos mais invioláveis de um regime genuinamente democrático, isto é, a
liberdade de expressão. O lugar da arte nesta conjuntura é a que se vê mais ameaçada,
pois se sente obrigada ou constrangida a tratar de questões delicadas, como as
suscitadas pelos grupos minoritários, de forma limitada pela ditadura do
pensamento politicamente correto. Qual o lugar e o papel da arte no combate a
esta postura ameaçadora? É possível conciliar arte com um conteúdo oriundo das
demandas das minorias? Se sim, como evitar uma arte de conteúdo panfletário e ideológico?
Fui
provocado a estas reflexões ao conferir o trabalho da Cia Mãos Livres, no
espetáculo teatral Isso é um absurdo.
A companhia formada quase que exclusivamente por surdos, ou melhor, por
Palhaços Surdos – como eles mesmos se autodenominam –, trás nesta montagem a
discussão da inclusão dos deficientes e em particular os deficientes auditivos.
O título da montagem deixa em evidência a sensação de indignação diante da
realidade vivida por esta minoria. No entanto, a obra oscila entre a questão da
inclusão e o livre exercício da comicidade silenciosa da linguagem genuinamente
clownesca. É sobre esta oscilação que me permito inferir alguns pensamentos.
Primeiramente
sobre a questão da linguagem desenvolvida e exercitada pela Cia: Os cinco
atores em cena assumem a mascara do Clow e não despropositadamente trazem no
repertório dos esquetes que compõem o espetáculo, números que se tornaram
clássicos de circo. Esta opção – a mascara do Clow – aponta claramente para o
domínio da linguagem não verbal, para o domínio de uma linguagem que exercita a
comunicação com o espectador para além dos códigos fonéticos, que explora a
expressividade corporal e que se funda no campo da linguagem gestual. Nada mais
natural, pois se lembrarmos que dos cinco atuantes apenas uma é ouvinte,
certamente compreenderemos que a linguagem não verbalizada é uma condicionante
no processo criativo da Cia. É neste domínio que a montagem ganha em vitalidade
e interação com o público. Sendo o gesto pouco falsificável, como nos afirma
Walter Benjamim, a linguagem que ele funda com o receptor – neste caso o
espectador – é carregada de universalidade e suplanta as diferenças numa
platéia de ouvintes e surdos.
É
de causar estranheza, portanto, que o primeiro esquete traga exatamente a única
atuante ouvinte conduzindo a situação com linguagem oralizada. O esquete
retrata a situação de alunos surdos numa aula de matemática com uma professora
que não domina a LIBRAS. Fica claro que o mais importante aqui é demonstrar a
situação de opressão vivenciada por este grupo minoritário e, neste sentido, o
esquete com seu paradidatismo metódico beira o panfletarismo ideológico.
É
curioso observar ainda que o final deste esquete trás novamente a mesma
professora do início agora adotando o uso da LIBRAS. Adotando a Língua
Brasileira de Sinais como intermediação com seus alunos surdos a professora,
mesmo sendo ouvinte, não pronuncia sequer uma única palavra; é como se ela
tivesse desaprendido a falar. Observo isso como uma incoerência dramatúrgica,
pois se no início do esquete seu comportamento funda uma relação com os outros
papéis e com o público pautado pela linguagem oral, no final do esquete por
mais que ela tenha aprendido a forma adequada de se comunicar com os alunos
surdos ela não desaprendeu a falar e nem se tornou uma professora surda, mas
tão somente alguém com uma competência e habilidade bilíngüe.
Poderíamos
contra-argumentar que, neste caso, ela não fala, pois mantém a comunicação na
língua de domínio dos surdos. No entanto, o jogo dramatúrgico desde o início do
esquete envolve não somente os alunos surdos, mas também e com o mesmo grau de
importância, o público composto por surdos e ouvintes. Por isso considero uma
incoerência dramatúrgica.
Isso
tudo poderia ser evitado se o esquete, na integra, fosse desenvolvido com a
linguagem gestual. Atentem novamente para o fato da linguagem gestual transpor
o limite entre ouvintes e surdos, pois sua natureza comunicativa funda-se na
universalidade do gesto. Isso pode ser facilmente verificável nos esquetes do
equilibrista, do mágico, do duelo entre os cowboys e do palhaço que chora no
público. Acompanhamos a narrativa destes esquetes, nos divertimos muito com as
situações cômicas exploradas e sem a necessidade de nenhuma palavra ou sinal em
LIBRAS.
Ora,
então me vem a questão: isto não seria uma forma de inclusão? Por que acreditar
que só estou tocando na questão da inclusão nos esquetes em que o tema
encontra-se explícito? A inclusão como conteúdo ou a inclusão a partir da
forma?
É
interessante observar que outros dois esquetes abordam o tema da inclusão de
diferentes modos dentro espetáculo: a cena do político e a cena do cadeirante.
A primeira recorre ao uso de uma voz em off para contextualizar a situação –
tradução dos sinais em LIBRAS; a última sustenta-se inteiramente no desenvolvimento
da linguagem gestual. Temos então, na cena do cadeirante um momento impar do
espetáculo: a abordagem do tema da inclusão – enquanto conteúdo dramatúrgico –
perfeitamente alinhado e desenvolvido com uma forma que não privilegia nem
ouvintes e nem surdos, portanto, uma forma inclusiva, exatamente enquanto
forma.
O
esquete final nos presenteia com um número de Cleber Couto dublando e
performando Michael Jackson. Esta cena arremata o espetáculo nos mostrando de
modo bastante simples e direto que podemos e devemos tratar de temas delicados
como os das minorias sem ceder aos melindres do pensamento politicamente
correto: vemos Cleber, um surdo, cantando e dançando sem nenhum
constrangimento; ele não canta fazendo sinais em LIBRAS, simplesmente canta e
dança deixando-se irradiar pela vibração desta forma de sentir e pulsar a arte;
neste momento não importa se é surdo ou ouvinte, é simplesmente humano; e somos
tocados e contagiados por esta dimensão humana que nos é acionada e que cada
vez mais se torna frágil e difícil de se cativar dentro de nós. Ato tão cândido
conseguido por Cleber que pode passar despercebido aos olhares mais preocupados
na construção de um discurso polido com uma retórica de defesa dos direitos
civis, mas que não passa de demagogia barata que reforça os laços de
preconceito que nos mantêm separados.
14.09.2014
Edson Fernando
Nenhum comentário:
Postar um comentário