domingo, 3 de dezembro de 2017

Jarry nasceu aqui! – Ou da Impossibilidade da Fabulação em Tempos de MBL – Por Edson Fernando

Montagem Teatral: I(MUNDO) UBU.
Montagem: Grupo Imundas
Autor da Crítica: Edson Fernando – Ator e diretor teatral; Coordenador do projeto TRIBUNA DO CRETINO.
Manifesto
Suspendam os filtros poéticos, cancelem as suavizações estéticas, as metáforas bem elaboradas, os versos rimados, a sofisticação dramatúrgica, o requinte literário, o apuro das unidades de ação... Conspirem contra os roteiros estabelecidos em atos, prólogos, epílogos, cenas, entreatos... Enforquem as personagens estabelecidas e polidas por um psicologismo empático e catártico. Cantem sem o compromisso da nota certa, da melodia harmônica ou da voz afinada. Gritos são bem vindos, assim como as palavras chulas, as gírias, o “Caralho”, a “Buceta”, o “Cu” e toda sorte de palavrões sórdidos. Devolvam o pudor aos demagogos e moralistas (?) de plantão, para que eles se envenenem com suas próprias setas pudicas – vide os escândalos de pedofilia envolvendo o clero da Igreja Católica, acobertado pelo Vaticano, ou a voracidade financeira dos pastores das igrejas neopentecostais, pra citar apenas alguns. Foda-se os cânones e gêneros literários. Interrompam o fluxo natural das narrativas, dos grandes ou pequenos acontecimentos a pretexto de nada fazer, de nada comentar, de nada planejar, de nada sonhar, de nada querer... Simplesmente interrompam para que o “nada” desmascare os preceitos da “jornada do herói”, preceitos que se tornaram inócuos num mundo onde nenhuma lógica ou causalidade parece se sustentar. Exponham ao ridículo os “heróis” dos grandes clássicos de outrora os fazendo confessar, em praça pública, que eles não têm mais nada a oferecer a uma nação em vias de ser dominada pelo obscurantismo. Abandonem as proposições apodíticas, os imperativos categóricos, os algoritmos, os silogismos e toda a sorte de velhacaria que impregnou o exercício dramatúrgico e poético. Visitem o fundo do Mato-Virgem, encontrem e abracem Macunaíma, calorosamente. Cuspam na cara de Odete Roitman. Tratem com escárnio todos aqueles que ultrapassam, cínica e deliberadamente, os limites entre ficção e realidade. Façam troça dos usurpadores da ficção, estes sujeitos caras-de-pau que transformam a realidade num palco macabro para destilar suas vilanias impunemente. Contra estes últimos, espalhem o espírito anarco-bufônico presente nos atos dos anti-heróis mais prestigiados que a história do teatro já criou, para que uma vez mais a ficção, por meio da paródia burlesca, ofereça a imagem patética, mas fiel, dos tempos conturbados e obscuros que vivemos. E se acaso, ainda assim, suspeitarem que a caretice reinante consegue ocultar-se nos pequenos gestos de nossos mais admiráveis bufões, é hora de lembrar o grito do glutão glorioso: – “Patafísica ou morte!”. 
Imundices
É tempo de bufonaria. Quem me lembra desta possibilidade de acesso aos acontecimentos mais repugnantes que temos testemunhado no cenário político brasileiro dos últimos anos é a montagem teatral I(MUNDO) UBU, uma adaptação da obra “Ubu Rei” de Alfred Jarry, realizada pelo Grupo Imundas. A montagem arrola pra si a responsabilidade do debate político da conjuntura nacional de nosso país, e o faz por meio de uma encenação corajosa e despudorada, sem se importar ou investir tempo na fabulação de uma paródia farsesca. Nada se sobrepõe ao desejo de problematizar um Brasil atravessado por questões graves, sejam elas questões políticas, éticas, sociais, jurídicas, financeiras e/ou religiosas. Nem mesmo a dramaturgia de Jarry é poupada: a adaptação coloca sua ênfase no roteiro de ações dramatúrgicas, transformando-o numa espécie de canovaccio no qual as personagens Pai Ubu e Mãe Ubu são os motores dos acontecimentos.     
Movendo-se pelo ideário de uma Patafísica – que procurei esboçar na abertura desta crítica – a montagem trabalha, sem melindres, com o que a realidade tem oferecido. Pai Ubu e Mãe Ubu, por esta via, são exercitados como máscaras sociais que são compartilhadas por todo o elenco ao longo da apresentação. Não sendo trabalhadas como papeis fixos, elas – as máscaras “Pai Ubu” e “Mãe Ubu” – se movem indistintamente de atuante para atuante revelando-me, assim, a natureza “Ubu” de todos nós. Uma pista importante que talvez nos leve a constatar um dos motivos de tolerarmos passivamente o comportamento inescrupuloso dos agentes públicos do mais alto escalão da república: o jeitinho Ubu de ser brasileiro – na pior acepção Ubu de ser.  
 A dramaturgia que o Imundas nos apresenta segue a mesma perspectiva de apropriação da realidade e não se preocupa com nenhum tipo de velamento dos acontecimentos mostrados. Desse modo, muito apropriadamente eles nos dizem que a “A ração humana é do Doria”. Não se trata de uma paródia de algum governante de uma terra distante, mas sim o prefeito João Doria, citado textualmente para nos lembrar, do modo mais claro e objetivo possível, do controverso programa de alimentação para os pobres, proposto pela prefeitura de São Paulo. O mesmo se dá todas as vezes que a montagem dialoga com outros fatos reais – e não são poucos.
O perigo neste tipo de abordagem é transformar a montagem teatral num panfleto político descarado, repleto de clichês com verniz progressista, mas que se limita a ser a mais rasa propaganda ideológica. Assisti desconfiado aos primeiros dez minutos de imundices e tudo parecia caminhar exatamente para este lugar. As atuações, embora fundadas na caricatura, reforçavam minha desconfiança, pois pareciam repetir os mesmo clichês de sempre, tendendo pro exagero irresponsável. Cheguei a pensar se tratar de mais uma montagem teatral onde o elenco tenta ser engraçadinho a cada minuto de atuação.
No entanto, passada esta minha primeira impressão, a montagem se impõe de modo vigoroso, pois em nenhum momento me deixa esquecer o seu propósito maior: a crítica desvelada e escrachada ao Brasil que se desmancha num mar de lama e sangue. As atuações escrachadas, na medida em que reproduzem fatos reais do nosso cotidiano político encontram, portanto, sua razão de ser exatamente no escracho. Imediatamente me percebi diante da imundice que nos assola. Como retratar poeticamente tamanha imundice? A montagem responde com simplicidade, conjugando os verbos no presente do indicativo: escrachar, debochar, zombar, troçar, escarnecer, caçoar, achincalhar, ridicularizar... E se há excessos, eles não se encontram nos atuantes, mas, pra nossa tragédia social, nas situações que retratam. Aliás, penso ser importante registrar que os atuantes lidam muito bem com a tentação de fazer piadinhas das situações retratadas. Demonstram, com isso, maturidade e consciência crítica ao não desviar a atenção – a deles e a minha – para a capacidade de improvisar gracejos inconseqüentes. E o mérito aqui merece ser compartilhado com a direção da montagem que nos entrega uma obra com assinatura e objetivo precisos, suplantando ou sabendo lidar muito bem, ao que me parece, com a força dos egos e vaidades inerentes a todo artista.
Destaco, no entanto, minha discordância com a interpretação política que a montagem adota. A adaptação da obra de Jarry nos mostra Pai Ubu e Mãe Ubu na perspectiva que corrobora com a tese do “golpe parlamentar” que levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff. Insisto que esta tese é falaciosa e não passa de uma peça de publicidade barata elaborada pelos marketeiros petistas. Lula, Dilma, José Dirceu, José Genuíno, Aloizio Mercadante e toda a alta cúpula do Partido dos Trabalhadores sempre teve conhecimento do jogo de alto risco que era a aliança com o PMDB, partido conhecido de longa data por sua política de “balcão de negócios”. Sabiam o significado de apertar a mão de Michel Temer, Jader Barbalho, Renan Calheiros, Geddel Vieria Lima, Eduardo Cunha e outras grandes raposas da nação. Aceitaram o jogo sórdido do “toma lá da cá” dos “trezentos picaretas” do Congresso Nacional. Aceitaram colocar o “Michelzinho” como vice-presidente nas eleições de 2010 e 2014. E tudo isso em nome de um projeto político para nação? Não! Em nome de um projeto de poder. Em nome deste projeto de poder desenvolveram, sem nenhum escrúpulo, o jogo sórdido da politicagem nacional. Deitaram-se com os porcos, chafurdaram sem nenhuma cerimônia até o fim da festa. Fizeram o jogo pérfido de um parlamento que pouco ou nada tem haver com os ideias republicanos. Assim, a tese do “golpe parlamentar” é nobre demais e completamente descontextualizada da história e da realidade dessa gente inescrupulosa que, em nome da república, só pensa na manutenção do poder, a qualquer custo.
Tenho dificuldade, portanto, em acompanhar a leitura proposta pela montagem que dialoga com a realidade política do país por este viés que considero equivocado. E embora assuma esta perspectiva que leva a tese do “golpe parlamentar”, ressalto que a montagem não incorre na reprodução das palavras de ordem – “Fora Fora”, por exemplo – tão desgastadas e esvaziadas de sentido e valor. Isso é curioso e animador, pois demonstra novamente maturidade e seriedade ao abordar a grave situação do país.  
Compartilho uma última impressão sobre a montagem: como toda boa bufonaria, a montagem encontra-se afinada para desenvolver seu jogo com as praças e ruas de nossa cidade. A visualidade e vitalidade da encenação, assim como a energia vibrante e a desenvoltura consistente do elenco permitem – se a equipe assim o desejar – uma experiência em teatro de rua. Obviamente que se isso vier a se tornar o desejo do Imundas, será necessário um período de adaptação para as especificidades da linguagem de rua – o jogo com o público na rua exige tempo, energia e desenvoltura diferenciados, pois é necessário saber lidar com as intempéries próprias do local e público presente. Mas o principal elemento a montagem já possui: o caráter de uma ação sociopolítica provocativa, como um genuíno Teatro de Agit-Prop.
É uma satisfação inestimável ver o Imundas estreando nos palcos da cidade no momento da ofensiva ultraconservadora que invade o país. Em tempos de MBL, da Bancada BBB – Boi, Bala e Bíblia – e dos discursos de ódio, o Imundas nos saúda com sua Patafísica mais que irreverente: NECESSÁRIA!     

Evoé Imundas.  

Fica Técnica:
Montagem Teatral:
I(MUNDO) UBU
Grupo Imundas
As Imundas da cena:
Arthur santos, Bernard Freire, Loba Rodrigues, Enoque Paulino,
Evy Loiola, Filipe Marques, Kayo Conká, Ruber Sarmento,
Sandrinha Wellem, Thamires Costa.
Trilha:
Aj Takashi e Jimmy Góes.
Direção:
Marcelo Andrade
Assistente de Direção:
Bruno Rangel.
Fotos:
Kauê Barp, Laércio Esteves.
Teaser:
Paulo Evander.
Apoio:
Fórum Landi, Zecas Coletivo de Teatro,
Dirigível Coletivo de Teatro, Notáveis Clown,

Os Varisteiros, João Ribeiro.

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