Montagem
Teatral: I(MUNDO) UBU.
Montagem:
Grupo Imundas
Autor da Crítica: Edson Fernando – Ator
e diretor teatral; Coordenador do projeto TRIBUNA DO CRETINO.
Manifesto
Suspendam os filtros
poéticos, cancelem as suavizações estéticas, as metáforas bem elaboradas, os
versos rimados, a sofisticação dramatúrgica, o requinte literário, o apuro das
unidades de ação... Conspirem contra os roteiros estabelecidos em atos,
prólogos, epílogos, cenas, entreatos... Enforquem as personagens estabelecidas
e polidas por um psicologismo empático e catártico. Cantem sem o compromisso da
nota certa, da melodia harmônica ou da voz afinada. Gritos são bem vindos,
assim como as palavras chulas, as gírias, o “Caralho”, a “Buceta”, o “Cu” e
toda sorte de palavrões sórdidos. Devolvam o pudor aos demagogos e moralistas
(?) de plantão, para que eles se envenenem com suas próprias setas pudicas –
vide os escândalos de pedofilia envolvendo o clero da Igreja Católica,
acobertado pelo Vaticano, ou a voracidade financeira dos pastores das igrejas
neopentecostais, pra citar apenas alguns. Foda-se os cânones e gêneros
literários. Interrompam o fluxo natural das narrativas, dos grandes ou pequenos
acontecimentos a pretexto de nada fazer, de nada comentar, de nada planejar, de
nada sonhar, de nada querer... Simplesmente interrompam para que o “nada”
desmascare os preceitos da “jornada do herói”, preceitos que se tornaram
inócuos num mundo onde nenhuma lógica ou causalidade parece se sustentar. Exponham
ao ridículo os “heróis” dos grandes clássicos de outrora os fazendo confessar,
em praça pública, que eles não têm mais nada a oferecer a uma nação em vias de
ser dominada pelo obscurantismo. Abandonem as proposições apodíticas, os
imperativos categóricos, os algoritmos, os silogismos e toda a sorte de
velhacaria que impregnou o exercício dramatúrgico e poético. Visitem o fundo do
Mato-Virgem, encontrem e abracem Macunaíma, calorosamente. Cuspam na cara de
Odete Roitman. Tratem com escárnio todos aqueles que ultrapassam, cínica e
deliberadamente, os limites entre ficção e realidade. Façam troça dos
usurpadores da ficção, estes sujeitos caras-de-pau que transformam a realidade
num palco macabro para destilar suas vilanias impunemente. Contra estes
últimos, espalhem o espírito anarco-bufônico presente nos atos dos anti-heróis
mais prestigiados que a história do teatro já criou, para que uma vez mais a
ficção, por meio da paródia burlesca, ofereça a imagem patética, mas fiel, dos
tempos conturbados e obscuros que vivemos. E se acaso, ainda assim, suspeitarem
que a caretice reinante consegue ocultar-se nos pequenos gestos de nossos mais
admiráveis bufões, é hora de lembrar o grito do glutão glorioso: – “Patafísica
ou morte!”.
Imundices
É tempo de bufonaria.
Quem me lembra desta possibilidade de acesso aos acontecimentos mais repugnantes
que temos testemunhado no cenário político brasileiro dos últimos anos é a
montagem teatral I(MUNDO) UBU, uma
adaptação da obra “Ubu Rei” de
Alfred Jarry, realizada pelo Grupo
Imundas. A montagem arrola pra si a responsabilidade do debate político da conjuntura
nacional de nosso país, e o faz por meio de uma encenação corajosa e
despudorada, sem se importar ou investir tempo na fabulação de uma paródia
farsesca. Nada se sobrepõe ao desejo de problematizar um Brasil atravessado por
questões graves, sejam elas questões políticas, éticas, sociais, jurídicas,
financeiras e/ou religiosas. Nem mesmo a dramaturgia de Jarry é poupada: a
adaptação coloca sua ênfase no roteiro de ações dramatúrgicas, transformando-o
numa espécie de canovaccio no qual as
personagens Pai Ubu e Mãe Ubu são os motores dos acontecimentos.
Movendo-se pelo ideário
de uma Patafísica – que procurei esboçar na abertura desta crítica – a montagem
trabalha, sem melindres, com o que a realidade tem oferecido. Pai Ubu e Mãe
Ubu, por esta via, são exercitados como máscaras sociais que são compartilhadas
por todo o elenco ao longo da apresentação. Não sendo trabalhadas como papeis
fixos, elas – as máscaras “Pai Ubu” e “Mãe Ubu” – se movem indistintamente de
atuante para atuante revelando-me, assim, a natureza “Ubu” de todos nós. Uma
pista importante que talvez nos leve a constatar um dos motivos de tolerarmos passivamente
o comportamento inescrupuloso dos agentes públicos do mais alto escalão da
república: o jeitinho Ubu de ser
brasileiro – na pior acepção Ubu de
ser.
A dramaturgia que o Imundas nos apresenta segue a mesma perspectiva de apropriação da
realidade e não se preocupa com nenhum tipo de velamento dos acontecimentos mostrados.
Desse modo, muito apropriadamente eles nos dizem que a “A ração humana é do
Doria”. Não se trata de uma paródia de algum governante de uma terra distante,
mas sim o prefeito João Doria, citado textualmente para nos lembrar, do modo
mais claro e objetivo possível, do controverso programa de alimentação para os
pobres, proposto pela prefeitura de São Paulo. O mesmo se dá todas as vezes que
a montagem dialoga com outros fatos reais – e não são poucos.
O perigo neste tipo de
abordagem é transformar a montagem teatral num panfleto político descarado,
repleto de clichês com verniz progressista, mas que se limita a ser a mais rasa
propaganda ideológica. Assisti desconfiado aos primeiros dez minutos de
imundices e tudo parecia caminhar exatamente para este lugar. As atuações,
embora fundadas na caricatura, reforçavam minha desconfiança, pois pareciam
repetir os mesmo clichês de sempre, tendendo pro exagero irresponsável. Cheguei
a pensar se tratar de mais uma montagem teatral onde o elenco tenta ser
engraçadinho a cada minuto de atuação.
No entanto, passada
esta minha primeira impressão, a montagem se impõe de modo vigoroso, pois em
nenhum momento me deixa esquecer o seu propósito maior: a crítica desvelada e
escrachada ao Brasil que se desmancha num mar de lama e sangue. As atuações escrachadas,
na medida em que reproduzem fatos reais do nosso cotidiano político encontram,
portanto, sua razão de ser exatamente no escracho. Imediatamente me percebi diante
da imundice que nos assola. Como retratar poeticamente tamanha imundice? A
montagem responde com simplicidade, conjugando os verbos no presente do
indicativo: escrachar, debochar, zombar, troçar, escarnecer, caçoar,
achincalhar, ridicularizar... E se há excessos, eles não se encontram nos
atuantes, mas, pra nossa tragédia social, nas situações que retratam. Aliás,
penso ser importante registrar que os atuantes lidam muito bem com a tentação
de fazer piadinhas das situações retratadas. Demonstram, com isso, maturidade e
consciência crítica ao não desviar a atenção – a deles e a minha – para a
capacidade de improvisar gracejos inconseqüentes. E o mérito aqui merece ser
compartilhado com a direção da montagem que nos entrega uma obra com assinatura
e objetivo precisos, suplantando ou sabendo lidar muito bem, ao que me parece,
com a força dos egos e vaidades inerentes a todo artista.
Destaco, no entanto, minha
discordância com a interpretação política que a montagem adota. A adaptação da
obra de Jarry nos mostra Pai Ubu e Mãe Ubu na perspectiva que corrobora com a
tese do “golpe parlamentar” que levou ao impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Insisto que esta tese é falaciosa e não passa de uma peça de publicidade barata
elaborada pelos marketeiros petistas. Lula, Dilma, José Dirceu, José Genuíno, Aloizio
Mercadante e toda a alta cúpula do Partido dos Trabalhadores sempre teve conhecimento
do jogo de alto risco que era a aliança com o PMDB, partido conhecido de longa
data por sua política de “balcão de negócios”. Sabiam o significado de apertar
a mão de Michel Temer, Jader Barbalho, Renan Calheiros, Geddel Vieria Lima,
Eduardo Cunha e outras grandes raposas da nação. Aceitaram o jogo sórdido do “toma
lá da cá” dos “trezentos picaretas” do Congresso Nacional. Aceitaram colocar o “Michelzinho”
como vice-presidente nas eleições de 2010 e 2014. E tudo isso em nome de um
projeto político para nação? Não! Em nome de um projeto de poder. Em nome deste
projeto de poder desenvolveram, sem nenhum escrúpulo, o jogo sórdido da
politicagem nacional. Deitaram-se com os porcos, chafurdaram sem nenhuma cerimônia
até o fim da festa. Fizeram o jogo pérfido de um parlamento que pouco ou nada
tem haver com os ideias republicanos. Assim, a tese do “golpe parlamentar” é
nobre demais e completamente descontextualizada da história e da realidade dessa
gente inescrupulosa que, em nome da república, só pensa na manutenção do poder,
a qualquer custo.
Tenho dificuldade,
portanto, em acompanhar a leitura proposta pela montagem que dialoga com a
realidade política do país por este viés que considero equivocado. E embora
assuma esta perspectiva que leva a tese do “golpe parlamentar”, ressalto que a
montagem não incorre na reprodução das palavras de ordem – “Fora Fora”, por
exemplo – tão desgastadas e esvaziadas de sentido e valor. Isso é curioso e
animador, pois demonstra novamente maturidade e seriedade ao abordar a grave
situação do país.
Compartilho uma última
impressão sobre a montagem: como toda boa bufonaria, a montagem encontra-se
afinada para desenvolver seu jogo com as praças e ruas de nossa cidade. A
visualidade e vitalidade da encenação, assim como a energia vibrante e a desenvoltura
consistente do elenco permitem – se a equipe assim o desejar – uma experiência em
teatro de rua. Obviamente que se isso vier a se tornar o desejo do Imundas, será necessário um período de adaptação para as especificidades da
linguagem de rua – o jogo com o público na rua exige tempo, energia e desenvoltura
diferenciados, pois é necessário saber lidar com as intempéries próprias do
local e público presente. Mas o principal elemento a montagem já possui: o caráter
de uma ação sociopolítica provocativa, como um genuíno Teatro de Agit-Prop.
É uma satisfação inestimável
ver o Imundas estreando nos palcos
da cidade no momento da ofensiva ultraconservadora que invade o país. Em tempos
de MBL, da Bancada BBB – Boi, Bala e Bíblia – e dos discursos de ódio, o Imundas nos saúda com sua Patafísica
mais que irreverente: NECESSÁRIA!
Evoé Imundas.
Fica
Técnica:
Montagem
Teatral:
I(MUNDO)
UBU
Grupo
Imundas
As
Imundas da cena:
Arthur santos, Bernard Freire, Loba
Rodrigues, Enoque Paulino,
Evy Loiola, Filipe Marques, Kayo
Conká, Ruber Sarmento,
Sandrinha Wellem, Thamires Costa.
Trilha:
Aj Takashi e Jimmy Góes.
Direção:
Marcelo Andrade
Assistente
de Direção:
Bruno Rangel.
Fotos:
Kauê Barp, Laércio Esteves.
Teaser:
Paulo Evander.
Apoio:
Fórum Landi, Zecas Coletivo de Teatro,
Dirigível Coletivo de Teatro,
Notáveis Clown,
Os Varisteiros, João Ribeiro.
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