Edson Fernando: Diretor, Ator e
Professor de Teatro da UFPA. Coordenador do projeto TRIBUNA DO CRETINO.
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* * S1 * * *
Quando se têm onze anos
de idade, a imaginação fértil de uma criança/adolescente facilmente se deixa
levar, a ponto de enxergar uma mão peluda e ameaçadora por trás de uma árvore no
escuro de uma noite de verão, quando em verdade tudo não passa de outro tronco
de árvore seco, tombado natural e estrategicamente, por trás da frondosa
mangueira erguida bem em frente à casa de minha avó. Naquele verão de 1987
quando, então, apaguei as onze velinhas de aniversário – emburrado é claro,
pois sempre odiei meu aniversário – no dia sete, do sétimo mês do ano, passei a
ter o status de “hominho” junto à família, o que me conferiu o direito de
dormir na rede no lado de fora da casa, mais precisamente no largo pátio da
casa de madeira da Vó Dudu. Hoje compreendo que o que parecia ser um privilégio
de quem está dando os primeiros passos para entrar na fase da adolescência, era
na verdade uma necessidade, por conta da superlotação da casa, repleta de tias,
tios, primas e primos de primeiro, segundo e até terceiro grau que se
amontoavam naquela residência para curtir as férias na bucólica ilha de
Mosqueiro. E lá estava eu, todo faceiro por conseguir lugar de destaque pra
dormir naquela casa, acompanhado apenas de um pequeno travesseiro, um lençol e
mais dois primos adultos nas redes ao lado. O pátio é aberto e circundado
apenas por um para-peito de madeira feito de ripas e pernamancas. Minha rede
ficou na extremidade esquerda, bem de frente pra pista da oitava rua da
bucólica. Do outro lado da rua, bastante mata virgem e apenas um casebre de
madeira com uma lâmpada incandescente acesa bem fraquinha, residência da
misteriosa Dona Maroca – comadre de vovó. Assim que deitei e comecei os
primeiros embalos na rede que rangia fininho, contemplei o céu estrelado e a
lua de quarto crescente que permitia iluminar aquela região de mata à frente
apenas o suficiente para excitar minha imaginação de “hominho” medroso. E num
relance rápido para conferir a paisagem, meu olhar congela na suposta mão
peluda por trás da mangueira. Em pequeno sobressalto, ponho-me sentado na rede
para espiar melhor a visão que me aterroriza. O ângulo em que me encontro é
perfeito para ocultar todo o corpo do gigante bicho peludo que, pavorosamente,
deixa apenas uma mão a mostra, indicando que aguarda o momento certo para me
atacar. O restante da casa está em silêncio e na escuridão, os primos ao lado
roncam fragorosamente. Estou só diante da criatura que poderá me atacar a
qualquer momento da noite. Sendo o único recurso que me resta, cubro-me da
cabeça aos pés e deposito no companheiro lençol a esperança de que se
transforme numa cápsula protetora intransponível. Na iminência do ataque,
resolvo seguir em vigília noite afora, tentando conter o pânico que cresce a
cada sussurro estranho vindo da rua, do quintal, da mata... Luto contra a
vontade de dormir procurando me manter alerta e apostos para retalhar um súbito
ataque. Ouço o ranger da janela do casebre à frente. Agrupo toda coragem que
meu coração de “hominho” possui, descubro sutilmente apenas os olhos e espio o
que se passa do outro lado da rua: a velha Maroca debruçada carcundamente na
janela, delicia-se dando longos tragos no seu cachimbo. O cheiro de tabaco
atravessa a rua...
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* * S2 * * *
O céu vermelho,
semi-nublado, daquela noite pós dia de finados é o prenuncio de chuva. Hesito
em sair de casa nestas condições, mas há coisas na vida, ou na morte, que são
inadiáveis. A pequena sombrinha roxa será minha arma para combater o tempo
desfavorável. Á uma quadra dos portões da misteriosa residência o inevitável
ocorre: a chuva se apresenta como companheira indesejada, mas insistente. É de
lá que avisto a porteira enlutada atravessar a rua e adentrar os portões. Com
os generosos pingos de chuva chocando-se contra a sombrinha e apreensivo por
suspeitar que o fúnebre acontecimento tenha sido cancelado, suspenso ou
transferido de lugar, dirijo-me em sua direção e me resguardo na pequena
marquise de loja quase em frente à casa que agora parece mal assombrada. Sou
confortado por ver que outras almas encarnadas também se fazem presentes para
testemunhar a passagem derradeira da centenária Pereira. É o momento de orações
profanas, sortilégios inconseqüentes, gargalhadas e piadinhas infames... Tudo
isso, talvez, para descontrair e amenizar o clima tenso, decorrente da notícia
funesta. Os minutos avançam, a expectativa pelo último adeus cresce. Sem que eu
perceba os fios da vida estão sendo tramados bem a minha frente. É o momento de
constatar a fragilidade da vida humana, a fraqueza do homem diante das forças
sobrenaturais desconhecidas; o homem reduzido a sua porção de barro e sopro
divino; a dimensão títere da humanidade me provocando a pensar que tudo pode estar
por um fio. Então, urge aproveitar enquanto ainda há tempo, ou fio de vida. O
silêncio será agora o companheiro fiel que me guiará nesta pequena jornada. Ela
abre o portão e nos convida pra entrar.
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* * S3 * * *
Um homem vestido de roupa preta
(calça e camisa) barba por fazer, aparenta ser o super-homem. Expressão
cabisbaixa e decadente. Parece viver no submundo do crime. Repentinamente
começa a perseguir um ladrão perigoso. Começam a lutar. Evidentemente Super-homem
esta dando uma surra no ladrão; até que vão parar numa estação do metrô.
Super-homem é atropelado por um vagão. Ele cai atordoado, mas levanta-se
lentamente. A sua frente o ladrão. Reiniciam a luta, até que outro vagão do
metrô o atropela novamente. Mais uma vez cai atordoado, levanta-se, e reinicia
a luta com o ladrão. E sucessivas vezes essa cena se repete. Então, após vários
atropelamentos, termina as estações do metrô. Super-homem reinicia a luta. O
ladrão apanha muito, até conseguir se esconder nos becos escuros da cidade.
Super-homem desaparece. O ladrão aliviado precisa fugir. Resolve vestir-se
completamente de preto. Abre a porta do guarda-roupa, mas quando vai trocar de camisa,
de dentro do guarda roupa sai uma velha de cabelos brancos, toda vestida de
preto. Ela se aproxima e com seu hálito de tabaco sussurra em seu ouvido: “AI
DORAMANTE. FELIZ DIA DE DORA!!!”
* * * S4 * * *
Sigo pelo
caminho soturno da casa abandonada. Cheiro de terra molhada. Mato molhado.
Insetos que picam. Vozes. As janelas laterais estão abertas. O desgaste das
paredes, a pintura surrada e encardida revelando um estado de pobreza,
abandono, solidão. A velha de cabeça branca, sempre a velha de cabeça branca
estabelecendo conexões com as paisagens de uma Mosqueiro de outrora. As janelas
compridas de madeira, as portas gigantes de madeira bruta, o telhado de telhas
de barro, as senhoras sentadas nos batentes das portas em atividades domésticas
em estado de elevação. O amarelo das lâmpadas incandescentes de antigamente
recobria tudo isso com uma atmosfera de mistério e suspense. Os terrenos eram
grandes, os quintais se perdiam de vista, as casas ficavam distantes uma das
outras e entre elas o espaço vazio preenchido pela escuridão ou semi escuridão,
o coaxar dos sapos, a estridula dos grilos. A velha de cabeça branca passeando
pelos corredores escuros, resmungando pequenas sabedorias populares que minha
mente não alcança e não compreende, tanto hoje quanto ontem. Visitar o quintal
a noite nunca era tarefa agradável, mas quase sempre era necessária, uma
imposição biológica de minha bexiga. Menino educado pela mãe para não sair
mijando em qualquer cantinho escondido, eu estava fadado a visitar a casinha no
fundo do quintal todas as noites. O pinico guardado debaixo da cama era
privilégio das meninas. Pra piorar a situação, meu intestino sempre foi muito dedicado
e obreiro me obrigando, algumas vezes, a comparecer mais de uma vez na casinha
feita de tijolo cru e piso de cimento. Nestes casos era necessário ainda pegar água
do poço para despachar a escatologia deixada na privada – a descarga de
fiozinho era apenas artigo de decoração. Caminhava cerca de 50 metros da porta
da cozinha até o poço por uma trilha de tábuas soltas; do poço até a casinha eram
mais 30 metros, pelo menos. A iluminação das casas distantes eram as únicas
fontes de luz que amenizavam a escuridão. Ter a companhia de alguém neste
trajeto já significava um alento e tanto. Caminhar em grupo, então, era o
suficiente pra desbravar a pequena floresta do quintal. Cada passo dado no
terreno irregular daquela pequena floresta particular me deixava hesitante, curioso,
apreensivo, vacilante... Tocos, formigas, galhos de árvore, pedras, mosquitos,
flores, plantas, cheiro de frutas... A velha de cabeça branca acompanha a
jornada passeando de janela em janela...
* * * S5 * * *
* * * S5 * * *
Os corredores da escola estão vazios.
Passeio lentamente observando aquele lugar que, por anos, me abrigou e permitiu
minhas primeiras descobertas de adolescente: a primeira paixão tórrida que me consumiu
dois anos e meio – da sexta até a oitava série – até o ato de extrema coragem que
me impulsionou a me aproximar e trocar as primeiras e fúteis palavras com ela,
bem próximo da escada ao lado da sala da direção; o primeiro beijo, ocorrido na
sala A02, decorrente da famosa brincadeira do BNBD – Beijo na Boca Demorado; a
sensação de liberdade decorrente da primeira vez que matei aula pra ir até a Praça
Batista Campos, pra ficar sentado de bobeira nas pedras à beira dos laguinhos, na
companhia do Chandandan e do Sidney Cepacol, amigos com quem fazia uma vaquinha
para adquirir um pitoresco biscoito que batizáramos de bolachão – dado o
tamanho e consistência da massa. O silêncio e o vazio que agora dominam o lugar
deixam estas lembranças saudosamente distantes. Os passos me levam pelos
corredores soturnos... Tudo vai ficando estranhamente sinistro... O enorme e
fumegante caldeirão preto a minha frente me terrifica... Em súbito soslaio avisto
a velha de cabeça branca observando-me pela vidraça da janela do andar de
cima... Corro desesperadamente sem sair do lugar...
* * * S6 * * *
Adotei o hábito de não olhar na cara do
morto. Quando estou num velório, mantenho distância segura que me permita não
cruzar distraidamente com o rosto fúnebre do defunto. Duas coisas que me partem
o coração num velório: olhar o morto de perto, ou de longe, e os cantos de
despedida. Por isso evito olhar a face mortuária de quem já “bateu as botas”. Mas
desta vez foi inevitável. Inebriado com o uivo esquisito da criatura que se
metamorfoseou em floresta, me distraio o suficiente pra ser surpreendido com o cadáver
de dona Pereira em cima da mesa, bem na minha frente. A imagem me paralisa por
instantes. Mas a estranha senhora deitada em repouso eterno, de algum modo, me
cativa (aterroriza) pela última vez (?). Permito-me velá-la de pertinho. Os
parentes mais próximos de Dona Pereira estão resignados e demonstram todo seu
afeto beijando o “cabelinho dela”, o “pezinho dela”, a “barriguinha dela”, o “bracinho
dela”... Compartilho também todo meu apreço beijando principalmente o “cabelinho
dela”. É quando a segunda coisa que me corta o coração num velório começa: as
Incelências. Hora da pobre Dona Pereira partir em direção ao que lhe cabe neste
latifúndio: uma cova funda. Na ausência do caixão – luxo descabido para a alma
desta senhora elevada – sua surrada rede de dormir será seu último transporte
até o cemitério. O cortejo fúnebre parte em meio à floresta escura... Uma
incelençaaaa... Uma incelençaaaa... Uma Incelençaaaaa...
* * * S7 * * *
Ela abre o portão e segue a passos
largos pela calçada. Sigo no seu encalço. A velha da cabeça branca vai bem à
frente caminhando decididamente sem olhar pra trás. Sigo mirando a cabeça alva
da velha na esperança de que ela me guie até as portas do cemitério. É necessário
despachar o corpo para que o descanso eterno se efetive. Aperto o passo, mas a
sensação é de não sair do lugar... A velha de cabeça branca vai se
distanciando... No desespero para alcançá-la, os passos se transformam em
corrida... A velha de cabeça branca alcança a esquina e dobra à esquerda... Aumento
o ritmo da corrida até me deparar com a esquina deserta... Pra onde ir? O que
fazer? Na tentativa desesperada de evitar o sortilégio que me fora repassado,
regresso até a casa mal assombrada. O escuro, o silêncio e os portões fechados me
recepcionam. Sempre suspeitei que algum dia Dona Pereira acertaria as contas em
virtude daquela cantiga de troça dos meus tempos de criança: “Dona Pereira / subiu
na bananeira / Comeu banana podre / E morreu de caganeira”. Nesta noite
estranha, meu lençol será meu companheiro fiel, a fortaleza intransponível que
me protegerá dois uivos desconhecidos. Preciso acordar!?
FICHA
TÉCNICA
Adriana Cruz, Andréa Rocha, Anibal
Pacha, Cincinato Marques Jr, Cristina Costa, Fafá Sobrinho, Lucas Alberto,
Nanan Falcão, Tereza Ojú, Thiago Ferradaes, Paulo Ricardo Nascimento, Vandiléa
Foro.
Realização:
In Bust Teatro com Bonecos,
Produtores Criativos
e Coletivo Casarão do Boneco.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirBravo!!!!
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