domingo, 6 de novembro de 2016

Quem quer ir ao Velório? – Por Geane Oliveira

Geane Oliveira: Atriz, Graduada em Licenciatura em Teatro – UFPA; Participante do Projeto TRIBUNA DO CRETINO.

Minha avó dizia mais ou menos assim: “Morreu é bom enterrar logo, antes que comesse a feder”.

Era apenas uma pequena caminhada, mas a luz da lamparina, o cheiro de goiaba com mato e o som das gotas d’água que caiam das folhas recém molhadas pela chuva tornaram aquele pequeno momento num resgate das memórias do pomar da minha infância. De dentro dele eu enxergava as janelas da casa, e nelas uma velha –empregada mais antiga da casa – contava a estória de dona Pereira. Confesso que medo não dava para sentir, mas a cada aparição, minha memória se aproximava  da vivência na casa da minha avó, e quando aquele texto fugia cheguei na porta dos fundos, ainda envolvida pelo cheiro e sons do pomar. Lá havia uma boneca de pano quase igual a que ganhei da vovó, a diferença era que essa estava sendo manipulada por uma menina de aparência sombria. As duas descem as escadas e somem no meio das mangueiras, caneleira e jambeiro.

Minha avó dizia mais ou menos assim: “Velório tem que ter café e bolacha”.

De tanto me encantar com o pomar havia esquecido que minha caminhada estava direcionada ao velório de dona Pereira, uma jovem senhora de quem tanto ouvi falar. Quando passo a cerca encontro um ser contorcido que geme enquanto guia-me ao local onde está o tão esperado corpo a ser velado. Chego ao pátio do velório e o ser contorcido se embrenha na mesma mata em que a garotinha da boneca, virou pássaro creio eu, e enquanto ele desaparecia no meio da folhagem uma tosse interrompeu o burburinho. Algo se contorcendo de dor e agonia, aguardando os últimos suspiros. Os gemidos são crescentes e por não mais suportar aquela dor o ser entra na mata levando toda sua agonia. A luz das velas revela uma garotinha que pela primeira vez aparece. É tão jovem que só consegue se alimentar dos conselhos que sua mãe lhe dá, as duas estão diante do corpo de dona Pereira, não há lágrimas , só palavras de velório, e quando essa conversa termina era hora de uma pausa para lanchar. Quem quer? Eu quis, e comi vários bocados. Afinal vovó sempre disse que o melhor do velório é a comida. Estava até bom, e mais uma vez esqueci que estava ali para prestar homenagens à dona Pereira. Porém os moradores da casa e responsáveis pelo velório lembraram-me que precisávamos seguir com o ritual, e assim começaram apressar o povo,  pois o corpo já estava em decomposição.

Minha avó dizia mais ou menos assim: “No carregar do corpo ao cemitério precisamos cantar, então: cante, cante,cante...”

Seguimos com o ritual, sem esquecer de  cantar, em um clima melancólico seguimos viagem... cantemos, cantemos, cantemos! De repente bate uma sensação estranha, fiquei ali tentando lembrar em que momento ela realmente esteve comigo, pois seja em forma de velha, garotinha ou pássaro ela sempre desapareceu na mata e agora não seria diferente. Mais uma vez eu estava lhe perdendo de vista, lentamente os cheiros, sons e sabores do velório foram se perdendo. O enterro se aproxima, cantemos, cantemos, cantemos! Tento voltar ao pomar na esperança de encontrá-la, mas de nada adianta, pois ela se foi. Aceito esse destino, e aos treze malditos que ali comeram e beberam resta cantar, cantar, cantar, carregar, cantar, cantar, cantar, cantar, cantar...

Resta-nos seguir e aceitar o conselho da vovó: “Quando chegamos aqui tudo já estava tramado, não existe esse negócio de começo, meio e fim”.
Geane Oliveira

06 de Novembro de 2016

FICHA TÉCNICA
Adriana Cruz, Andréa Rocha, Aníbal Pacha, Cincinato Marques Jr, Cristina Costa, Fafá Sobrinho, Lucas Alberto, Nanan Falcão, Tereza Ojú, Thiago Ferradaes, Paulo Ricardo Nascimento, Vandiléa Foro.
Realização:
 In Bust Teatro com Bonecos,
Produtores Criativos
e Coletivo Casarão do Boneco.

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