domingo, 6 de novembro de 2016

O silêncio amargo da mafalala-amazônica de minha terra – Por Raphael Andrade

Raphael Andrade: Ator: Graduando de Licenciatura em Teatro- UFPA

(...) Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra.
Eu
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.

Nestes versos do poeta e ensaísta José Craveirinha (1922 – 2003), reverbera a beleza e importância de “gritar” sobre belezas e mazelas de sua terra natalícia Mafalala – bairro periférico de Maputo ou “cidade do carniço,” análogo a vivência da população ribeirinha, que padecia pela precariedade do poderio político. Porém, por intermédio dos fazedores artísticos da terra, fizeram desta cidade expoente na literatura, música, teatro, modificando a realidade transgressora deste povoado. Nesta perspectiva, podemos verificar que o teatro e ARTE em geral, têm esse poder transformador que necessitamos para mudar (ou tentar) as “mafalalas” de nossa terra. Algo que, a meu ver, ficou explícito no espetáculo do Grupo de Teatro Universitário (GTU – Noite) ao qual estreou, na primeira semana de Novembro, o espetáculo Terra Preta que narra histórias entrecortadas de uma população ribeirinha marcada por mitos, lendas, politicagem e memórias de uma cidade amazônica.
Ao adentrarmos no teatro experimental Cláudio Barradas, nos deparamos com uma bela visualidade de uma “esfinge amazônica” silenciosa com suas folhagens absortas em rostos, corpos e cores dos (das) principiantes atuantes. Após os espectadores estarem acomodados no plano palco-corredor, os atores crivam pela sonoridade amazônida nossas percepções reflexivas. Estabelecendo, desta forma, uma reflexão sobre a população tradicional identificada como ribeirinha: falar de nossa terra/mafalala/amazônica, o teatro desta cidade precisa (também) deste enredo silenciado por fazedores de teatro. Contudo, há de se ter cuidado com a proposta estilística eleita para abordar este assunto ao qual descreverei, por minhas concepções, a seguir.
O teatro contemporâneo não deve ser classificado com apenas um gênero teatral, haja vista que, hoje, há traços dos gêneros (épico, lírico, dramático) presentes na dramaturgia – mas, nesta concepção, não se deve tê-los como uma “bengala” na trama – criando, desta forma, uma não-metalinguagem. Sobretudo por misturar esses referidos gêneros em pequenas cenas entrecortadas que não têm uma linha de raciocínio coeso. Claro que se pode ter “volta ao tempo” ou deixar uma cena implícita, por não tratar-se de um “teatro aristotélico”. Mas é necessário que esses fragmentos não prejudiquem a encenação, tornando-a sem um mote central. Sobretudo por não tratar-se de um teatro pós dramático (quebra do drama) intitulado por Hans-Thies Lehmann (1944), ao qual a encenação é entrecortada por cenas diferenciadas que não têm como objetivo um efeito lógico ou auto-explicativo. Mas sim, um teatro de percepções.
O enredo mostra-nos memórias narradas por "Seu Manel" e narradores soltos no desenrolar das emaranhadas situações ribeirinhas sem coesão – mitos, lendas, indignações contra o poderio político (uso de comédia para quê?), violência sexual e exploração (fraca elaboração do tema), lembranças da infância, escalpelamento e assim por diante, por meio de uma mimese corpórea que beira o burlesco – burlesco este, que se torna pífio na maior parte dos atuantes. Por que fazer deste povoado algo que beira a canastrice? Canastrice presente em gestos largos, gritos e sexualização das personas (efeito tosco, pífio e previsível que temos deste modo de vida ribeirinha – “cabocagem”). Seria para a encenação não cair no marasmo? Para criar uma comédia desnecessária na temática abordada? Ou por terem essa ideia burlesca deste povoado? Outra falha comum é o problema na dicção dos jovens atuantes. Falha peculiar da direção\preparador de elenco (voz e corporal). Apesar de saber quão difícil dirigir um grupo de pessoas que nunca fizeram teatro, estes são pontos que necessitam de zelo.
Para embaraçar mais está conclusão não coesa, a trama segue por mostrar-nos o drama das mulheres escalpeladas sem uma linha contínua na encenação (como referida acima e contundente em todo o espetáculo). Porém, uma das cenas mais fortes e belas do espetáculo, revelando a amargura do arrancamento brusco do escalpo humano, comumente por erro de donos de embarcações por intermédio da boa interpretação da atriz que começa o espetáculo e narra à história. Infelizmente, a ação segue por culpar a plateia pela sua fatalidade. Se a ideia era criar comoção por parte dos espectadores, para mim, teve o efeito inverso.
Dentre erros e acertos, a lenda folclórica brasileira “Iara” foi outro ponto alto do espetáculo (seguidos pela ótima iluminação e boa sonorização), desviando do previsível que já está intrínseco no imaginário popular – com a bela música de Adriana Calcanhoto (1965) “Uma Iara”, e o texto “Uma perigosa Yara” de Clarice Lispector (1920-1977) esta lenda, dentre outras, representa para nós (sobretudo para os ribeirinhos) desenvolver uma relação mais transcendental e harmoniosa com o cosmos – encontrando respostas (ou não) na subsistência.
Nesta perspectiva, Terra Preta capota no amargo erro de querer mostrar muitas histórias entrecortadas deste povoado, deixando-nos sem uma conclusão contundente do tema que se pretende abordar. Contudo, são pontos a serem revistos para outra temporada, haja vista que, há temas de suma importância a serem abordados e que necessitam ser vistos pelo povo ribeirinho ao qual o trabalho foi idealizado. Tentando, desta maneira, dar voz ao silêncio amargo de (suas) nossas terras – ao qual necessita ser adubada com NOSSA CULTURA. Mas antes, necessita ser fertilizada e regenerada.
Raphael Andrade

06 de Novembro de 2016

FICHA TÉCNICA
Elenco:

Hitalo Freitas, Jessica Ribeiro, Jeann Carlos, John Seychelles, Yandra Cruz, Raissa Gama, Jorginho Morais, Joed Caldas, Jhonata Scerni, Marina Moreira, Elisa Santos, Rose Mendes, Clene Lisboa, Stephanne Mergalho, Fabi Santos, Lucas Serejo, Oth Souza, Rafael França, Ivany Palheta

Nenhum comentário:

Postar um comentário