Edson Fernando: Ator, Diretor e Professor de Teoria do Teatro da Escola de teatro e Dança da UFPA.
Décimo oitavo andar. É
do alto que o canto do bode quer se fazer ouvir agora. Salve Dioniso! Salve o
Sátiro sem barba transmutado em desvairado amante. Salve o solitário canto ditirâmbico
que se aparta da cidade para ressoar pulsante pelas veias das testemunhas do ato.
É necessário ir às alturas, apartar-se da cidade (1º APARTAMENTO), encontrar o
ponto liminar para restituir a vitalidade orgiástica da primitiva ode ao deus
Baco. Isso porque, ao que me parece, o tradicional templo esvaziou-se de Dioniso
(2º APARTAMENTO); os palcos da cidade passam por uma espécie de assepsia atroz
que expulsa ou domestica os impulsos criativos mais violentos e produtivos que
habitam em nós. Parece reinar a máxima do “Não posso fazer isso, para não me
indispor com aquilo”, quando na verdade a carruagem de Dioniso incendeia todos
os caminhos, enlouquece todos os membros do cortejo, impossibilita todas as
censuras, nega sentido a todas as máximas condicionantes e extermina todos os
pudicos. Sinto que devo seguir para ir ao encontro do deus da loucura esquecida
e, então, conduzido pelo túnel vertical, chego ao solo liminar: ambiente
sombrio, mas agradável, confortável e familiar. Natural e instintivamente as
taças oferecidas na entrada são entornadas, estabelecendo entre os presentes a
aliança entre deuses e homens, obra e artista, espectadores e ator. A penumbra
é o marco tênue e paradoxal que nos separa – quando nos separa – das aventuras
amorosas do Sátiro-Amante; a penumbra aproxima e afasta, envolve e arremata,
intensifica e relaxa o ambiente; é ela quem borra as fronteiras do “ver” e do “participar”
me deixando a sensação de pertencer e ser pertencido por tudo ao redor. Embora
imponente, ela – a penumbra – é apenas a conviva de honra no banquete liminar, lugar
onde me é oferecida a deleitosa narrativa tragicômica. O teor – mais ou menos
orgiástico – das histórias não me atrai, mas a forma magistral como a narrativa
é conduzida me mantém atento; persigo, então, o modo como vai se desenhando as
histórias, os tempos narrativos – passado e presente num fluxo dialético constante
–, personagem e pessoa, evocação direta de lugares por meio duma plástica gestual
simples, pontual e econômica, evocações de diálogos, solilóquios e níveis de tensão
monodramáticas. A esta altura me dou conta que não é mais de Dioniso que falo,
e sim do seu antípoda: Apolo. O deus da figuração plástica, da música como arquitetura
dórica em sons, da justa medida e do caminho do autoconhecimento para evitar os
excessos se personificava no equilíbrio sóbrio da desenvoltura formal do Sátiro.
É admirável constatar o miraculoso e ontológico encontro entre os impulsos artísticos
da natureza anunciado por Nietzsche se dar assim, de modo tão espontâneo e
natural, a minha frente. Como um hábil equilibrista que atravessa duas torres por
um arame atado por sobre nossas cabeças, o Sátiro brinca de ser todos os
personagens do seu drama, aprofunda dores, presentifica angústias, compartilha seus
deleites amoroso-sexuais e nos deleita sem se perder em artifícios desnecessários,
mas também sem nos dá a certeza do quanto há de autoral na história narrada. Deixo
que ele me conduza por sua labiríntica ação dramática e aceito de bom grado a
parceria justa que me é oferecida – assim como aos demais – em alguns momentos
estratégicos da trama. Com a métrica apolínea certeira ele conduz o jogo
naturalmente, alternando momentos em que deve ouvir e momentos de ser ouvido. A
natureza resolve dar sua contribuição banhando a cidade com um genuíno toró
noturno. A sacada me permite ver o céu vermelho e as luzes dos demais prédios embaçadas
pelos generosos pingos de chuva. É neste momento que me dou conta novamente que
estamos num prédio residencial no centro da cidade. Da tranqüilidade reservada
ao décimo oitavo andar, tudo parece mais distante e isolado; absorto em inquietantes
divagações penso nas ilhas de resistência que criamos para fazer sobrevier
nossa arte (3º APARTAMENTO); penso em cada Teatro Alternativo que hoje luta
para se manter aberto, oferecendo novas possibilidades de encontro e experiência
estética na cidade; penso em como é difícil estabelecer pontes para que as
ilhas consigam se integrar, se enxergar, se retro-alimentar e se fortalecer,
para que juntas possam enfrentar a fúria do mar, ou a fúria daqueles que
insistem em nos fazer acreditar que somos ilhas desertas e estéreis, sem nenhum
valor que justifique investimentos, por mais parcos que sejam (4º APARTAMENTO);
como evitar que Dioniso e Apolo definhem nestas ilhas desertas, fadados a
reclusão e a mera ação entre amigos e parentes? (5º APARTAMENTO). O chicote sado-masoquista
do Sátiro interrompe minhas divagações. Sou convidado a penetrar ativamente a
penumbra, o mundo dos sonhos da narrativa dramática. Sou obra, ou sou um pouco
mais obra, pois pulso agora na cadência do Sátiro; alguns instantes são
suficientes para nos levar a um gesto derradeiro: um abraço! O encontro se
torna pleno na medida em que a entrega é recíproca. Saí do espaço liminar sem certezas
ou respostas para minhas divagações, mas com a suspeita de que é necessário
potencializar novos modos de nos perceber e nos encontrar. Talvez a única
certeza que ainda insiste me atravessar resida no fato de que seja qual for o
tipo de APARTAMENTO – em nossa cidade de valores invertidos e surreais – o
preço é quase sempre muito elevado.
6º
APARTAMENTO
É digno de nota que a
montagem teatral Apartamento 69 é
uma pesquisa do Coletivo 3 NÓS que
se realiza em apartamentos cedidos por amigos, na cidade de Belém. A apresentação que conferi aconteceu no Edifício
Brands Hatch, localizado na Tv. Quintino Bocaiúva 1043, centro da cidade. Merece
destaque também, além da atuação primorosa de Caled Garcês, a direção de Guál Dídimo
que assina a montagem e não permite que o trabalho – com concepção notadamente
performática –, se deixe enveredar por armadilhas e truques cênicos típicos de
quem utiliza a linguagem da Performance de modo inapropriado e sem conhecimento
de causa. Embora admita que haja elementos da Performance no modo como a
narrativa-dramaturgia é concebida e atuada por Caled, acredito que a montagem
tem sua assinatura no âmbito da mais genuína linguagem teatral. É TEATRO com
todas as letras maiúsculas.
7º
APARTAMENTO
Também considero digno
de nota que o bate papo proposto ao final da apresentação, se desenvolveu de
modo tão vigoroso que parecia um prolongamento estético da montagem. Talvez
tenha sido o bate papo mais descontraído que já tenha participado; conversamos
criticamente, mas sem os conceitos rígidos; debatemos questões preciosas para
os artistas envolvidos na montagem, sem nenhum tipo de filtro ou reservas.
Rimos, bebemos, comemos, nos emocionamos.
Edson
Fernando
17
de Abril de 2016.
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