domingo, 17 de abril de 2016

Apartamentos na Cidade – Por Edson Fernando

Edson Fernando: Ator, Diretor e Professor de Teoria do Teatro da Escola de teatro e Dança da UFPA.  

Décimo oitavo andar. É do alto que o canto do bode quer se fazer ouvir agora. Salve Dioniso! Salve o Sátiro sem barba transmutado em desvairado amante. Salve o solitário canto ditirâmbico que se aparta da cidade para ressoar pulsante pelas veias das testemunhas do ato. É necessário ir às alturas, apartar-se da cidade (1º APARTAMENTO), encontrar o ponto liminar para restituir a vitalidade orgiástica da primitiva ode ao deus Baco. Isso porque, ao que me parece, o tradicional templo esvaziou-se de Dioniso (2º APARTAMENTO); os palcos da cidade passam por uma espécie de assepsia atroz que expulsa ou domestica os impulsos criativos mais violentos e produtivos que habitam em nós. Parece reinar a máxima do “Não posso fazer isso, para não me indispor com aquilo”, quando na verdade a carruagem de Dioniso incendeia todos os caminhos, enlouquece todos os membros do cortejo, impossibilita todas as censuras, nega sentido a todas as máximas condicionantes e extermina todos os pudicos. Sinto que devo seguir para ir ao encontro do deus da loucura esquecida e, então, conduzido pelo túnel vertical, chego ao solo liminar: ambiente sombrio, mas agradável, confortável e familiar. Natural e instintivamente as taças oferecidas na entrada são entornadas, estabelecendo entre os presentes a aliança entre deuses e homens, obra e artista, espectadores e ator. A penumbra é o marco tênue e paradoxal que nos separa – quando nos separa – das aventuras amorosas do Sátiro-Amante; a penumbra aproxima e afasta, envolve e arremata, intensifica e relaxa o ambiente; é ela quem borra as fronteiras do “ver” e do “participar” me deixando a sensação de pertencer e ser pertencido por tudo ao redor. Embora imponente, ela – a penumbra – é apenas a conviva de honra no banquete liminar, lugar onde me é oferecida a deleitosa narrativa tragicômica. O teor – mais ou menos orgiástico – das histórias não me atrai, mas a forma magistral como a narrativa é conduzida me mantém atento; persigo, então, o modo como vai se desenhando as histórias, os tempos narrativos – passado e presente num fluxo dialético constante –, personagem e pessoa, evocação direta de lugares por meio duma plástica gestual simples, pontual e econômica, evocações de diálogos, solilóquios e níveis de tensão monodramáticas. A esta altura me dou conta que não é mais de Dioniso que falo, e sim do seu antípoda: Apolo. O deus da figuração plástica, da música como arquitetura dórica em sons, da justa medida e do caminho do autoconhecimento para evitar os excessos se personificava no equilíbrio sóbrio da desenvoltura formal do Sátiro. É admirável constatar o miraculoso e ontológico encontro entre os impulsos artísticos da natureza anunciado por Nietzsche se dar assim, de modo tão espontâneo e natural, a minha frente. Como um hábil equilibrista que atravessa duas torres por um arame atado por sobre nossas cabeças, o Sátiro brinca de ser todos os personagens do seu drama, aprofunda dores, presentifica angústias, compartilha seus deleites amoroso-sexuais e nos deleita sem se perder em artifícios desnecessários, mas também sem nos dá a certeza do quanto há de autoral na história narrada. Deixo que ele me conduza por sua labiríntica ação dramática e aceito de bom grado a parceria justa que me é oferecida – assim como aos demais – em alguns momentos estratégicos da trama. Com a métrica apolínea certeira ele conduz o jogo naturalmente, alternando momentos em que deve ouvir e momentos de ser ouvido. A natureza resolve dar sua contribuição banhando a cidade com um genuíno toró noturno. A sacada me permite ver o céu vermelho e as luzes dos demais prédios embaçadas pelos generosos pingos de chuva. É neste momento que me dou conta novamente que estamos num prédio residencial no centro da cidade. Da tranqüilidade reservada ao décimo oitavo andar, tudo parece mais distante e isolado; absorto em inquietantes divagações penso nas ilhas de resistência que criamos para fazer sobrevier nossa arte (3º APARTAMENTO); penso em cada Teatro Alternativo que hoje luta para se manter aberto, oferecendo novas possibilidades de encontro e experiência estética na cidade; penso em como é difícil estabelecer pontes para que as ilhas consigam se integrar, se enxergar, se retro-alimentar e se fortalecer, para que juntas possam enfrentar a fúria do mar, ou a fúria daqueles que insistem em nos fazer acreditar que somos ilhas desertas e estéreis, sem nenhum valor que justifique investimentos, por mais parcos que sejam (4º APARTAMENTO); como evitar que Dioniso e Apolo definhem nestas ilhas desertas, fadados a reclusão e a mera ação entre amigos e parentes? (5º APARTAMENTO). O chicote sado-masoquista do Sátiro interrompe minhas divagações. Sou convidado a penetrar ativamente a penumbra, o mundo dos sonhos da narrativa dramática. Sou obra, ou sou um pouco mais obra, pois pulso agora na cadência do Sátiro; alguns instantes são suficientes para nos levar a um gesto derradeiro: um abraço! O encontro se torna pleno na medida em que a entrega é recíproca. Saí do espaço liminar sem certezas ou respostas para minhas divagações, mas com a suspeita de que é necessário potencializar novos modos de nos perceber e nos encontrar. Talvez a única certeza que ainda insiste me atravessar resida no fato de que seja qual for o tipo de APARTAMENTO – em nossa cidade de valores invertidos e surreais – o preço é quase sempre muito elevado.
6º APARTAMENTO
É digno de nota que a montagem teatral Apartamento 69 é uma pesquisa do Coletivo 3 NÓS que se realiza em apartamentos cedidos por amigos, na cidade de Belém.  A apresentação que conferi aconteceu no Edifício Brands Hatch, localizado na Tv. Quintino Bocaiúva 1043, centro da cidade. Merece destaque também, além da atuação primorosa de Caled Garcês, a direção de Guál Dídimo que assina a montagem e não permite que o trabalho – com concepção notadamente performática –, se deixe enveredar por armadilhas e truques cênicos típicos de quem utiliza a linguagem da Performance de modo inapropriado e sem conhecimento de causa. Embora admita que haja elementos da Performance no modo como a narrativa-dramaturgia é concebida e atuada por Caled, acredito que a montagem tem sua assinatura no âmbito da mais genuína linguagem teatral. É TEATRO com todas as letras maiúsculas.     

7º APARTAMENTO
Também considero digno de nota que o bate papo proposto ao final da apresentação, se desenvolveu de modo tão vigoroso que parecia um prolongamento estético da montagem. Talvez tenha sido o bate papo mais descontraído que já tenha participado; conversamos criticamente, mas sem os conceitos rígidos; debatemos questões preciosas para os artistas envolvidos na montagem, sem nenhum tipo de filtro ou reservas. Rimos, bebemos, comemos, nos emocionamos.    
Edson Fernando

17 de Abril de 2016. 

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