quinta-feira, 31 de março de 2016

O poder de Atena? - Por Paula Barros

Paula Adrianna Barros da Cruz: Atriz; Graduanda de Licenciatura em Teatro UFPA; 
Bolsita PIBEX 2016 Projeto TRIBUNA DO CRETINO.
Quero falar da justiça, da igualdade e do poder. Questões que no espetáculo Atena em solo viril aparecem e vão para além do teatro que agora é o alto tribunal da cidade de Atenas.
Logo, na porta de entrada Atena interpretada por Geane Oliveira, pede que se faça duas filas, uma de mulheres outra de homens, e os homens pisam primeiro no solo de Atena. Frustradas as mulheres aguardam do lado de fora. Ao entrar somos (nós Erínias) conduzidas a sentarmo-nos no chão, do lado de fora do círculo (solo de Atena) feito por algumas cadeiras onde os homens (cidadãos de Atenas) já estão confortavelmente acomodados, afinal somente eles terão direito ao voto, pois se trata do julgamento de Orestes[1], assim logo nos situamos no período de 1200 a.C, será mesmo?.
Uma das mulheres que se encontrava sentada no círculo fora do solo de Atena, simplesmente se recusou a assistir o espetáculo passando, aproximadamente, os trinta minutos da apresentação de Geane Oliveira de costas; outro caso foi um dos homens que se recusou ao voto, não querendo participar efetivamente do que ao fim ele julgou como injustiça. O que fiz ali foi testemunhar um ato de Injustiça? Ao fim do espetáculo o que ressoava na minha cabeça eram as palavras de Atena: “Nasci sem ter passado por ventre materno[2], “peço-vos que reflitam”.
Em um dos momentos da representação de Geane quando coloca as mãos de um dos homens em seus olhos, com os olhos vendados representa a Deusa Têmis demostrando que no seu tribunal há imparcialidade e igualdade entre todos.
 Atena em solo viril em seu ritual com o vinho demonstra atos viris absolutos, onde urina como se fosse um homem, e como homem pensa e dá absolvição a Orestes; mas também como mulher os seduz, os homens cidadãos de Atenas, e com gestos obscenos coloca os pés de um dos homens em seus seios e vagina, mostrando a fragilidade deste diante do sexo (no sentido carnal). E quando se dirije a nós mulheres Atena pede que possamos refletir, na verdade nos convence de ficar em Atenas com ela para que sejamos Eumênides e no ato do poder de persuasão, convence como mulher agora não com o sexo, mas como igual (mulher) que somos.
Então, a partir disso me pergunto: por Atena não ter nascido nem passado pelo ventre materno, isso a faz diferente de nós mulheres? E quão poderosa é Atena a ponto de determinar a absolvição do réu? E por que é injusta aos olhos do que parecia ser um cidadão ateniense o julgamento de Atena?
Há discussões muito atuais no espetáculo dirigido por Edson Fernando e representado por Geane Oliveira. O que Atena fez na sua atuação foi nos convidar a refletir e nos interrogar de uma série de questões e de poderes que nos cabe na sociedade, bem como, instigar um posicionamento na conjectura atual, seja ela política econômica ou social. Bem longe de responder aqui a todas estas perguntas, mas, a partir da representação de Atena, começar a pensá-las e discuti-lás. Afinal, a arte (e o Teatro é arte) é expressão simbólica de uma cultura.
Paula Barros
31.03.2016



[1] Orestes filho de Agamemnôm e Clitemnestra da tragédia Grega de Ésquilo. A questão é se o fato de Orestes ter assassinado a própria mãe, torna-o merecedor do tormento infligido pelas Erínias.

[2] Zeus engoliu Métis, sua primeira mulher divina, que estava grávida de Atena, e quando sentiu chegar a hora do nascimento desta última ordenou a Hefesto, deus do fogo, que lhe fendesse a cabeça; de lá saiu Atena, já crescida e armada.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Mulheres de Atena - Por Silvia Luz

Silvia Luz: Atriz e Professora Mestra em Artes pelo PPGArtes – ICA/UFPA

Eumênides é uma tragédia grega, de autoria de Ésquilo. Orestes, Apolo e as Erínias[1] vão ao Areópago ateniense para serem julgados pela deusa Atena e os atenienses. A questão é se o fato de Orestes ter assassinado a própria mãe, Clitemnestra, torna-o merecedor do tormento infligido pelas Erínias. A votação do julgamento termina empatada, mas a deusa Atena dá seu voto final, desempatando em favor de Orestes.
Os primeiros a pisarem no solo de Atena foram os homens e depois as mulheres. Atena vai até a porta de entrada do teatro e pede para que formem duas filas, uma de mulheres e outra de homens, em seguida adentra o espaço conduzindo a fila dos homens e depois de um certo tempo, volta e, pede para as mulheres entrarem. Essa atitude já causou burburinho entre as mulheres presentes, uma insatisfação.
Quando entramos, nos deparamos com um círculo fechado. Seria o círculo dançante feito pelas Erínias? O inferno de Dante, onde são punidas as almas violentas? Esse círculo que naquele momento representou a totalidade, dentro do círculo é uma coisa só, circundada e limitada. Esse seria o objetivo espacial? O círculo sugere imediatamente uma totalidade, quer no tempo, quer no espaço. Na Wicca o círculo também representa a Deusa em seu aspecto de Mãe, fazendo com que, ao entrar num círculo mágico o adepto esteja penetrando no útero dela, no caso Atena, e sendo guiado aos seus mistérios universais. Seria o vinho uma hemorragia menstrual? O sangue da morte ou da vida? Ou simplesmente festa?
Na verdade eram dois círculos, o dos homens e o das mulheres. O dos homens composto por 15 cadeiras, sendo que algumas ocupadas pelos homens presentes na sessão e outras permaneceram vazias. Fomos conduzidas pela Deusa a sentar no chão ao redor deste círculo, ao sentar olhei ao redor e percebi nos semblante das mulheres, certa decepção. Claro! A estreia aconteceu no dia Internacional da Mulher e, nos pedem para assistir a um espetáculo sentadas no chão? Sem conforto algum, enquanto os homens estavam sentadinhos em suas cadeiras, no mínimo frustrante.
O público feminino seria as Erínias, pois desde o início foi atraído pela deusa Atena, esta que manipula os homens e que os favorece, ora sim ora não. Engabeladas por ela, nós mulheres, a partir de agora Erínias fomos serenamente sentar-nos no chão, como na Grécia Antiga, a verdadeira morada destas, “embaixo da terra”, dando honras aos cidadãos atenienses e de sua forma de julgar. No chão, reprimidas, e talvez quem sabe, por bom comportamento poderíamos ser chamadas de “Eumênides”, isto é, “benfazejas”, para que possam então mascarar a antiga guerra entre os sexos, aqui simbolizada pelo ciclo da vingança de Clitemnestra e Agamenon.
O Solo viril de Atena nos leva a essa descida, às entranhas da terra numa reviravolta feminista que metamorfoseia o ódio original de suas Erínias numa gargalhada silenciosa e ecoada pela Deusa Atena no centro do círculo, por meio de suas roupas pretas e seu forjado gozo, delatando a fragilidade da razão masculina que é inábil de compreender as intenções femininas, pontuadas pelo gozo premeditado da Deusa.
Atena seria um espelho diante da platéia masculina, os juízes daquele julgamento. Ela age como homem, absolve o culpado, como se ele fosse um dos seus. Na contramão disso está o silêncio representado pelo público feminino, o poder da fêmea reside em sua resistência a todos os desmandos masculinos, representado pelos juízes, ações e falas de Atena, onde a atuante Geane Oliveira em determinados momentos revela arrebatadoramente a fêmea transgressora ao ideal do comportamento feminil adotado pela sociedade ateniense do séc. V. a.c e do século atual, pois ainda vi entre o público em geral, olhares pedidos ou sem saber para onde olhar, na cena da masturbação em que a atuante pratica carícias com o Pé de um dos presentes, talvez chegando a atiçar alguns de nossos sentidos, tornando-nos testemunhas auditivas, olfativas e/ou da visão involuntariamente.
Foi pontual a cena final quando a atuante Urina vinho (sangue) no chão, esse ato é pontualmente masculino, de macho Escroto, que é capaz de babar e ejacular vendo uma mulher em trajes “ditos sensuais”, pois isso é “coisa” de Macho. Essa ação foi um ato transgressor para o contexto da peça, uma mulher que Mija de pé, que nem Homem de verdade e que ainda por cima, Urina com prazer e escárnio.
Um ato misógino, que traz a tradição misógina do pensamento da Grécia Antiga, ouso em dizer atualíssimo, que observa o domínio feminino como uma necessidade em resposta a constante ameaça representada pelo poder e pela natureza das mulheres. Nesta mesma cena cai por terra o comportamento das mulheres bem-nascidas atenienses. A Atena feita por Geane Oliveira é uma mulher de caráter transgressor, ultrapassa o limite do “permitido” ao feminino.
A dramaturgia apresentada tem como cerne a ação originada da protagonista, destarte ela serve como o catalisador dos eventos mesmo quando ele é o principal objeto de investigação. O aspecto masculino está em sua fala, essa mulher de alma viril, dona de uma excepcional habilidade retórica e persuasiva e, que se mostra ao longo da apresentação, como implacável, corajosa e cruel.
Mulher viril que enfrenta os infortúnios da vida, como um macho, mas que revela sua força na manipulação da plateia masculina e por vez a feminina, pois Atena nesta apresentação aparece como hermafrodita, ora homem, ora mulher. Pena que em determinados momentos a atuante quebra o ritmo do jogo cênico, seu corpo some no escuro, como a chama de uma vela, pois suas ações pulsam e morrem com a mecanicidade do texto dado. Confesso que por um único momento cheguei à beira do abismo, estava prestes a me jogar e de repente, a ruptura, estanco abruptamente na beira do abismo. A atuante mais uma vez some no escuro e junto com ela a vida da cena. O texto foi dito apenas pela boca, não pelo corpo.
O jogo imposto pela atuante foi pauleira, aqui e agora, mas em algumas partidas, passou a vez e tive que esperar a próxima jogada. A atuação de Geane Oliveita foi uma caixa de Pandora, está às vezes presa ao jarro (jarra), ou melhor, ao texto que muitas vezes sai de sua boca, porque está decorado, mas sem o vigor necessário para unificar corpo e voz. Geane adentrou a jarra de vinho, deixando escapar todos os males do mundo, menos a sua entrega total. Beba o vinho. Lambuze-se, embriague-se e goze!
Para finalizar, da Idade Média Antiga até a atualidade a imagem que possuímos do sexo feminino – para parafrasear Simone de Beauvoir – nos é transmitida pelos homens que ao longo do tempo não só escreveram como decidiram o que era digno de ser registrado como parte da história.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zigmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. Inquietações da vida contemporânea e suas formas atuais de organização: uma relação de imanência.

CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1990 p,225-226.

SILVA, Maria de Fátima. A tradição grega em Simone de Beauvoir, Le deuxieme sexe. Artigo recebido em 18 de janeiro de 2011 a provado em 24 de maio de 2011.

KAPLAN, E. Ann. O mal-estar no pós-modernismo: teorias e práticas. Trad. Vera Ribeiro – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Ed. 1993.

https: wiccaniano.wordpress.com<acesso em 15/03/2016.




[1] “Deusas punidoras dos crimes cometidos por pessoas contra seus consanguíneos”. Dicionário Mítico – Etimológico de Mitologia Grega. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, p. 352.


sexta-feira, 11 de março de 2016

A nudez de Atena - Por Victor Peixe

Por Victor Peixe - Ator, historiador, crítico participante do projeto Tribuna do Cretino.
Prestai atenção, prestai, pois ora relato, em cores contemporâneas, os desdobramentos de uma luta de corpo, desejo e espírito. Relato, pois, como partícipe do julgamento de um matricida.  
Às portas do Templo de Atena, sou recebido pela atuante-deidade Geane Oliveira; no interior estão postos os assentos dos juízes. Uma vez que aceito tuas condições, tomo parte na absolvição de Orestes, o assassino. Para as Eumênides presentes, de cabelos, cores e estilos tão díspares, sobrou o desconforto do chão. Caladas, subalternizadas. Sujeitas de si, donas de seus corpos, tolhidas de direitos por uma atuante-Deusa.
Ocupo, neste templo, lugar de conforto, segurança e privilégios.  Degusto do vinho barato que me é ofertado, desfruto da honra de permanecer calado e me descubro manipulado. Será esse meu lugar devido, por subestimar teus feitiços? Eis que não posso me pronunciar, ajo por coação, escarnecido no teu mijo, vertido qual tuas regras que te solicitam mês a mês. Questionas minha virilidade, Deusa, mas teu gozo ofegante e forçado não me constrange.
Este julgamento foi um engodo. Minha mudez conivente além para além do Templo-Teatro. Não seria eu também, eu, meu silêncio conivente e consciente em meu silêncio, um agressor, não pactuaria de agressões físicas, psicológicas, emocionais, afetivas, enfim, do feminicídio à que tuas irmãs estão expostas, mas do qual tu escapas, na divina intangibilidade?
O mal estar de perceber tal condição degradante é tão maior, pois usurpado de minha hombridade fui feito fantoche pela Deusa mulher.
Ai de ti, Atena, jovem Deusa humanizada em malha preta, na pele manchada de sol, na tintura de cabelo e pêlos, por que vociferas impiedosamente jargões e impropérios furiosos? Embusteira que fala demais, mesmo me dizendo tão pouco, que me restando seguir-te apaixonadamente, faminto por apreender teu vinho, teus guizos e teus gestos sinuosos, porém enrijecidos
Então, ao buscares tuas irmãs, abandonadas na periferia sob a sombra masculina, te revelas como a grande dominadora ao exortar teu sexo à última palavra, expondo-nos – nós na condição de juízes – ao ridículo.
Numa terça-feira, 8 de Março de 2016, data em que se celebra o Dia Internacional da Mulher, Geane Oliveira me induz a olhar as rizomáticas relações de poder estabelecidas a partir de minha posição de macho social, com minhas mães, amigas e companheiras. Por quanto reproduzo a opressão de gênero através de supostos discursos pró-feministas?
Jamais esperaria que, passados mais de dois mil anos, Ésquilo tivesse tanto por me questionar.

Victor Peixe

09 de Março de 2016

quinta-feira, 10 de março de 2016

Sem bainha e arremate - Por Victor Peixe

Victor Peixe – Ator, historiador e crítico participante do projeto Tribuna do Cretino

A instalação performática, Memórias, retalhos: cenas teatrais em Belém do Pará, de Denis Bezerra, trabalho derivado de sua pesquisa para o doutoramento em História Social da Amazônia, pelo PPGHIST – UFPA, percorre alguns dos caminhos da ainda pouco registrada história do Teatro moderno e contemporâneo em Belém. Uma história ainda carente de registros e pesquisas.
Nesse intento, Denis se lançou à pesquisa através da História Oral, selecionado algumas vozes de um ambiente tão polifônico, formado por jovens atores e diretores desejosos em dar ao palco paraense ares de novidade. O Teatro do Estudante, Norte Teatro Escola e a Escola de Teatro, são os escolhidos para se contar essa História.
O trabalho cênico de Denis se confunde com sua pesquisa histórica documental, com uma imersão em  cartas, programas, fotos, cartazes, material de divulgação de peças e acervos pessoais, além de permanecer ainda na memória e oralidade dos antigos mestres e mestras. De fio em fio, de retalho em retalho, realiza o trabalho de artista-historiador que costura uma tira da História do Teatro paraense.
 Se o Teatro do Estudante e o Norte Teatro Escola tinham por objetivo modernizar a cena paraense, produzindo um teatro de formas e conteúdos não comerciais – e que, no entanto, negligenciava as tantas manifestações do Teatro Popular presente na capital - é pertinente dizer que essa proposta se firma com o Serviço de Teatro da UFPA, depois transformado em Escola de Teatro.
Denis, fia, desfia, refaz e remenda. Mas onde estão a bainha e o arremate? Se pesquisa se realiza enquanto tese a aprovação do trabalho acadêmico pela banca avaliadora, responde a isto.
Porém, resultado performático, é comprometido pela verborragia de uma dramaturgia espontânea e pelo repetitivo ato de, em posse de rolos de lã e uma grande agulha, fingir que costura para em seguida, fingir que desfia. Neste fingir, esta ação é esvaziada de sua carga poética.
Isto, contudo, me parece acontecer, pois a construção cênica está subordinada ao trabalho acadêmico, resultando numa necessidade em ser didático em vista de sua provável apreensão por um público não familiarizado com as linguagens da cena. Ainda assim, é possível derivar questões urgentes porém negligenciadas para a cena do tempo presente.
A pesquisa-performance de Denis não alcança o tempo presente, seu recorte finda em 1968, mas me induz a pensar sobre nossa produção atual,  a partir de dois momentos: O primeiro, quando da leitura de trecho da carta de Maria Sylvia Nunes à João Cabral de Melo Neto, autor de Morte e Vida Severina, montagem  do Norte Teatro Escola, datada de 1959, pela qual o grupo foi ganhador do Festival de Teatro de Santos. Em certo momento da carta, Maria Sylvia comenta sobre a falta de apoios, à época, para a produção teatral local; O segundo momento passa por quando, já firmada a Escola de Teatro, seus atores e atrizes egressos se deparam com uma cidade que não possui mercado de trabalho, o que conduz muitos à trabalharem nas novelas de rádio e TV. “E hoje, haverá esse mercado?”, pergunta Denis.
Os dois momentos permitem estabelecer algumas continuidades com características da cena atual, onde a carência de apoiadores é patente e os editais de incentivos às Artes e a Cultura são escassos e restritos; além da ausência de perspectivas de trabalho para atrizes a atores formados no curso técnico profissionalizante oferecido pela Escola de Teatro e Dança da UFPA.
Causa angústia e apreensão que, mais de 50 anos após a afirmação do teatro moderno paraense, estas preocupações ainda estejam em pauta. Por conseqüência, uma série de problemas podem ser levantados, pois se a modernização se firma com a Escola de Teatro nas décadas seguintes – a partir da década de 70 do século passado – até os dias atuais, o caráter experimental de muitas produções da cena, se tornou um traço, um nó, importantíssimo para a costura das cênicas na cidade. 
Quais as teias que tecem a cena contemporânea na cidade de Belém? Quais os retalhos ainda ignorados no tempo presente do Teatro paraense? Qual o sentido da profissionalização enquanto artista para a cena, numa cidade com um mercado de trabalho minúsculo? Algum grupo pode ter seu trabalho apontado como referência estética e política? Será possível perceber marcas comuns nas produções teatrais do nosso tempo atual?
Sobre o traços da cena experimental de Belém – no qual o trabalho de Denis também se mostra enredado, ao misturar performance, instalação e projeção – onde é notório o amalgamento de linguagens, onde se buscam elementos exógenos ao Teatro para a composição e construção poética dos trabalhos. É recorrente a busca de elementos da dança contemporânea, da performance, do circo, da palhaçaria, do cinema, das artes visuais e plásticas, produzindo em cena verdadeira colcha de retalhos estética.
Esse traço tão evidente e também repetitivo parece surgir de um sentimento de plena liberdade poética por parte dos fazedores da cena. Lança-se mão de quaisquer recursos para que se alcance um resultado criativo esperado, ainda que nesse caminho o uso de linguagens – de tantas linguagens – facilmente caia em frágeis proposições conceituais e debilidades técnicas.
Paira o sentimento de “tudo é permitido”, onde o uso das linguagens de maneira tão livre e despreocupada é feito não para a construção de discursos políticos, questionamento ou afirmação de novas estéticas e paradigmas artísticos, mas pelo desejo de estar em cena, daí choques entre forma, proposição e conteúdo estarem na ordem do dia.
Como agravante a cena teatral vive um momento de Recolhimento, isto é, pode-se notar nos últimos anos um intenso movimento rumo à casas-teatro – em contraponto ao movimento de teatro-porão de até bem poucos anos passados – geridas de forma autônoma por seus proprietários artistas e coletivos. Aqui podem ser citados a Casa Dirígível, Casarão dos Bonecos, Casa dos Palhaços, Casa da Atriz, Estúdio Reator como espaços residenciais abertos à intervenção teatral.
Se aqueles grupos de jovens dos anos 40, 50 e 60 queriam modernizar a cena da cidade, o que querem os artistas contemporâneos? Estão aqui os novos fios, rasgos e retalhos deixados para que nós, artistas e historiadores, possamos refletir sobre esta Arte. Por hora, nos resta pensar no que fazer para não deixar tantos pontos sem nó.

Victor Peixe
08 de Março de 20

quarta-feira, 9 de março de 2016

Visibilidade de gênero: o dia em que as Erínias nos visitaram - Por Ceci Bandeira

Ceci Bandeira: Graduanda em Filosofia pela Universidade Estadual do Pará - UEPA.
Estamos em Atenas, que, desde 510 a.C., havia substituídos a tirania pela democracia: não é mais a um chefe que os gregos obedecem, mas a uma soma de sentimentos coletivos, ou seja, à polis. Ou será que estamos em qualquer outro Estado democrático existente no ocidente do século XXI?
Ao manusear a mitologia grega, o trágico Ésquilo constrói suas personagens em função da fábula, tomando a posição de substituir a liberdade pela fatalidade, e faz com que a Moíra, o destino cego de punição, se torne a medida de todas as coisas, e não o ánthropos, como posteriormente pensarão outros trágico gregos. O sofrimento é, para o teatro esquiliano, um preceito necessário contido nas etapas de obtenção da sabedoria. A dor redime e concilia. Devemos seguir a lei divina de “sofrer para compreender”, como nos diz o Coro no Agamênon – primeira das tragédias da trilogia Orestes. No entanto, esta lei não contempla o âmbito da responsabilidade individual, mas está abrigada em um grupo de indivíduos unido pelos laços de sangue (guénos), em que a falta de um recai sobre todos.
Após degolar a mãe, Clitemnestra, junto ao cadáver do amante para vingar o sangue de seu pai, Agamênon, derramado pela mulher, a hamartía (erro que determina a queda de um herói trágico) hereditária de Orestes está consumada e o drama da luta pela maldição familiar se reflete no último texto da trilogia trágica de Ésquilo: Eumênides – que em grego significa “benevolentes”, o eufemismo conciliatório buscado por Atena para apaziguar as Erínias destronadas e sedentas por vingança. Apolo envia Orestes a Atenas para ser julgado por um tribunal, o qual o júri será presidido por Atena, a deusa patriarcal, assessorada por doze cidadãos atenienses. As Erínias, deusas das trevas, estão ali para acusar e vingar o matricídio cometido por Orestes. A votação do júri mortal termina empatada. Cabendo, por esse mesmo motivo, à Atena o voto de desempate. Orestes fora absolvido. E seu voto nascia para todo o sempre.
É dessa forma entramos no cenário de Atena em Solo Viril, remontagem do texto Eumênides de Ésquilo, feito pelo Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuante (GITA), dirigido por Edson Fernando e representado pela atuação Geane Oliveira na pele de Atena – a deusa gerada da mente de Zeus e que, por isso, se posicionará a frente do direito dos deuses novos (dike), que habitam os altos inundados de luz do Olimpo, para derrubar o direito dos deuses antigos (thémis), que habitam as trevas do Hades.
Atena é a figura feminina que, pela ausência do arquétipo matriarcal, não compartilha conosco as reminiscências saudosistas da gineocracia – fase primitiva da civilização humana, segundo Johann Jakob Bachofen, em que a mulher, unicamente ela, era autoridade e legisladora, conhecida por governar tanto o grupo familiar quanto a sociedade, que englobava sobretudo a religião, mas que foi derrotada pela androcracia, governo patriarcal que vigora até os dias de hoje. Por não possuir vínculos estreitos com o solo, símbolo da Terra-mãe universal que aceita passivamente todos os fenômenos naturais, ela sentirá necessidade de defender o oposto, a autoridade incontestável do pai na família e o papel preponderante do homem numa sociedade hierarquicamente organizada, ou seja, fará justiça pelo sangue do varão Agamênon. 
Desde o momento em que entramos na arena, tempo depois dos homens que foram primeiramente chamados a sala, e somos convidadas a sentar no chão constituindo um círculo periférico ao círculo principal formado pelas cadeiras em que estão alojados os homens, já somos Erínias. Nós, que hoje discutimos e procuramos as mais possíveis formas de nos livrarmos das amarras de uma sociedade machista e opressora, somos introduzidas no momento exato, segundo Ésquilo, em que toda a liberdade nos foi extirpada. Estamos ali para ver de longe o sangue das hamartías ser oferecido por Atenas aos doze juízes, os “homens horados” que votarão a favor da justiça. Da sua justiça. Da justiça relegada as deusas sombrias condicionadas em ser mulher. Teremos que sofrer para compreender.
Após encontrar a figura de Orestes dentre os cidadãos de bem, Atena se entrega a voluptuosa situação do julgamento, no êxtase do domínio de poder: a sua díke está prestes a ser estabelecida naquela polis, a limitação, a hierarquia, a ordem e o logos enfim substituirão o caos, a natureza, a liberdade, o éros. Somos aos poucos despidas moralmente e desonradas pela ideia desta nova justiça que será implantada daqui a poucos minutos, através da fala de uma deusa misógina, e que nos perseguirá, nos torturará e nos matará durante todo o percurso seguinte da história humana.
É necessário que chegue apenas o momento em que os votos dos doze homens estabeleça um empate, para a deusa-inteligência sentenciar Orestes como inocente: perante os deuses, este homem não possui culpa alguma, a justiça divina fecha os olhos para o matricídio, pois este sangue materno não exerce influência sobre a criação do filho: para o patriarcado, a mãe, como a terra, é apenas o depósito, a matriz fria e passiva, da semente semeada pelo pai, que seria o grande responsável pela germinação. Ora, por isso Atena é a defensora do patriarcado, somente uma mulher que não tenha sido formada nas sombras de um seio materno lutaria pela submissão de suas semelhantes. Ou somete mulheres que tenham sido educadas por homens para renegar as tradições geneocráticas imanentes da sua existência.
Ela, agarrada as regras civis basilar da sociedade ocidental, oferece o sangue dessa tragédia familiar para os cidadãos legítimos que pisam junto dela naquele solo viril, não nos deixando provar nem os requisitos desse vinho sanguinário – prefere derramá-lo por completo através de seu falo fantasioso (fantasioso já que este lhe foi negado quando condicionada ao feminino), naquele solo que poucos terão a privilegio de pisar. E nos convence (ou nos força) protegê-los durante o percurso de suas vidas, em troca de honrarias divinas para nos persuadir a não nos vingarmos da (in)justiça decidida pelos deuses novos. No íntimo do patriarcado, se encontra o medo de que nos revoltemos contra este sistema do lógos, por isso a preocupação de Atena em nos comunicar, rapidamente após a decisão do júri, sobre o eufemismo e nos entregar a honraria suprema de proteger a sua cidade.
Se lutássemos até a última instância nossa thémis retomaria, pois todos naquele tribunal têm conhecimento de que para as Erínias, “enquanto o matricida não for punido com a morte, a terra, ferida em sua fertilidade, não produzirá frutos, nem cumprirá seu destino material” (BRANDÃO, Junior de Souza, 1985), impedindo que todos os cidadãos atenienses perpetuem a sua espécie.
E assim termina o espetáculo de Atena sobre o seu adorado solo viril. Não provamos o vinho sanguinário. Não nos aproximamos do solo viril. Saímos com a certeza de que possuímos um poder imanente extraordinário, e que somos todos os dias coagidas a esquecê-los. Com mais dúvidas do que respostas. Entretanto, com uma profunda imersão na história e cultura das mulheres que nos antecederam na luta pela retomada do magnífico caos erotikós que é ser mulher e ao mesmo tempo livre.

Ceci Bandeira
09 de Março de 2016