domingo, 31 de maio de 2015

Nu Espelho

Edson Fernando: Ator, Diretor Teatral e Professor de Teoria do teatro da ETDUFPA.  
A Performance-Art continua se impondo como desafio aos que pretendem desvendá-la enquanto linguagem. Não é o que pretendo ao abordar a massagem xamânica de Leandro Haick, definida por ele como Instalação-Performance “Em busca do meu Xamã”. O trabalho pôde ser conferido por duas semanas ininterruptas na Ocupação Artística do Solar das Artes – Solar da Beira prédio tombado, localizado no centro da feira do Ver-o-Peso. Visitei a ocupação no último dia 21 de Maio e renovei minha vontade de resistir ao assalto da cultura operada pelo estado, município e federação. Passando algumas horas ao lado daqueles diversos artistas que montaram acampamento ali e produzem arte e política cultural a despeito do abandono, negligência e desfaçatez do gestor municipal – Sua Excelência, o Prefeito Zenaldo Coutinho – pude perceber a necessidade de se pensar outros modos de compreender e fazer arte. Alinhado a esta perspectiva o trabalho de Leandro me desafiou a pensar outra forma de encarar a vida – na sua condição de performer-ativista – e outro modo de registro das minhas impressões críticas.  É o que procuro fazer a seguir, fugindo das operações analíticas.  
“Fui pego de assalto: “Me fale um pouco de ti.” Minha expectativa inicial de ser conduzido passivamente a uma massagem relaxante foi frustrada com esta simples premissa. Frente a frente, olhos nos olhos, corpo a corpo; não havia escapatória a não ser me reconhecer como elemento ativo, co-partícipe do jogo, encontro cruel no tempo e espaço da liminaridade. O doce e sincero sorriso do xamã abriu a primeira porta de modo tão simples que paradoxalmente pude ver de imediato a vastidão dos caminhos que eu podia trilhar. Uma lágrima escorreu por dentro. Embora desconcertado e surpreso não hesitei, não vacilei; desatei a falar enfileirando uma porção de palavras – por vezes desconexas – na tentativa de definir aquilo que sou, aquilo que fui, aquilo que gostaria de ser. Havia iniciado, então, sem que percebesse, o vôo solitário do abutre sedento por carniça. O olhar e atenção do xamã são guias indispensáveis, mas sigo só devorando o próprio fígado, alimentando-me da própria bílis colérica de outrora. Nos olhos atentos do guia encontro a certeza de que não desejo expurgar nada, não desejo purificação, nada de santidade, nada de beatificação. O desejo é de escuta. Os partícipes da liminaridade parecem desse modo, estabelecer o laço de confiança necessária para avançar nos ritos. Meu corpo já pode prostrar-se na cabana do xamã. O momento agora é de entrega. Quando minhas costas tocam o chão da cabana e minhas pálpebras tombam instintivamente cerrando minha visão, sinto alargar minha sensibilidade. Subitamente refaço o trajeto que me conduziu até ali: ainda fora da cabana sou convidado a despir os pés; o faço sem resistência; quando se abre a fresta e adentro na cabana sou apresentado aos elementos do rito: um vaso com tajás, filtro dos sonhos, pequenas cumbucas e um alguidar com banho de ervas; este último é o que mais captura minha atenção e não contendo o laço afetivo que me ata a ele, peço para tocar as ervas; o xamã permite sem, no entanto, deixar passar a oportunidade para fazer a primeira revelação: sou ansioso demais; tudo tem o seu tempo. Toco as ervas, sinto-me nelas, encontro-me nelas na intensidade das coisas boas e ruis que me remetem. A janela da cabana está aberta e permite atravessar o luar e as suaves rajadas de vento frio. Conhecida a cabana é hora do encontro; sentamo-nos frente a frente, olhos nos olhos, corpo a corpo; a camiseta e o cinto são despidos antes da fatídica premissa: “Me fale um pouco de ti.” Já prostrado na cabana, a premissa se impõe, agora, de outro modo: o passeio das mãos do xamã no meu corpo rasga a pele como um bisturi; toque que fere, que machuca para além dos músculos; rasga a epiderme somatizada de convenções. É inevitável a explosão de imagens que se precipitam na zona fronteiriça entre a vigília e o sono. A sonoridade excessiva da aldeia atravessa a cabana, atravessa meu corpo sem, no entanto, interromper o toque do bisturi. Este encontra meu ponto de maior vulnerabilidade e fragilidade: o centro do plexo solar. Contenho a vontade de gritar, pois reconheço a necessidade do bisturi operar a cisão cruel. Sigo resoluto assimilando cada golpe; de peito pra cima, de peito pra baixo, o bisturi segue com as incisões, eliminando as adiposidades. Atravessamos a sala de cirurgia. É hora de revestir o corpo nu, suturado. Aqueço-me, agora, na fumaça do cachimbo do xamã; é ela quem forja minha nova pele revestida com pigmentação vermelha; meu corpo carrega as insígnias da minha própria busca. O silêncio se impõe. Talvez o sinal determinando que seja hora do retorno. Mas é precisamente o momento aonde vou mais longe; leve, me depreendo do chão e pairo suspenso num lugar que desconheço. Ainda silencio. O lugar é agradável. Desconfio que seja hora de retornar. O silencio persiste, e eu persisto no lugar. Instantes de incertezas. Silencio. Retornei. Sou amparado pelos braços do xamã que me ergue a partir da posição fetal – indício do (re)nascimento operado. O sorriso dele persiste; e naquele sorriso encontro o convite para o regresso da liminaridade. Sigo com a certeza de que é preciso (re)inventar as operações mais simples da vida, para que ela ainda faça sentido.”  
31.05.2015                 

sábado, 30 de maio de 2015

Nem tão bicho, nem tão gente

Victor Peixe – Ator, participante do projeto Tribuna do Cretino

Qual o valor da hora-aula de um cavalo? Quantas chicotadas um professor aguenta? O que distancia o cavalo, submetido ao trabalho escravo, do homem escravizado pelo trabalho? São questões que Animalismo – A Nova Ordem Mundial do Grupo de Teatro Universitário me provoca, ainda que sem o compromisso de respondê-las.
Uma revolução acontece na Granja dos Bichos. A antiga ordem humana exploratória é abolida em prol de um novo sistema social justo e igualitário que respeita todos os bichos e, assim, o Animalismo é instaurado.
Com o passar dos anos, o novo sistema que em troca do trabalho árduo de todos garantiria o bem estar de galinhas, cavalos, ovelhas, vacas, bois, éguas, ratos e porcos se revela vantajoso apenas para os últimos, que tomam para si a direção do processo revolucionário, sob a justificativa da condição superior do trabalho intelectual dispensado à gerência da granja revolucionária.
Aos poucos, aquele que poderia ter sido um sistema social benéfico para todas as espécies, se revela tão opressor quanto à ordem humana. O sonho de liberdade se esvai, a realidade violenta piora a cada dia, com o novo regime de trabalho se tornando ainda mais exaustivo que o anterior. Os sonhos de esperança e liberdade se tornam um sussurro sonolento depois de um dia exaustivo de trabalho.
A retórica política rapidamente transforma os insatisfeitos em inimigos da revolução, entraves à ordem social e inimigos do progresso, imediatamente me remete à greve dos professores paraenses da rede estadual de ensino, transformados em detestáveis obstáculos da educação diante da generosidade do governo estadual.
Mas além de pensar a violência política que atravessa os ismos, Animalismo, ao atentar para a condição de escravidão a qual animais são submetidos, dá ares quase realistas à metáfora da opressão para além do nível humano, ainda que este não seja o eixo central da encenação.
Nessa provocação, Animalismo utiliza recursos que dialogam com o teatro brechtiano. O primeiro é o próprio espaço. O Fórum Landi não é uma caixa preta preparada para um trabalho cênico, assim o barulho da central de ar e a placa de “banheiro” se tornam camadas dramatúrgicas que quebram com a rigidez formal do espaço teatral.
O corpo-bicho dos atuantes e sua interação com os músicos; as placas que demarcam os atos – tempo; a narração; o intervalo com a entrada da equipe técnica em cena e os atuantes conversando entre si, num estado que não é o do corpo-bicho; a repetição da cena inicial ao final, todos estes são recursos que dialogam com o estranhamento e o distanciamento explorados por Brecht e que dão suporte a se pensar nossa arte para além da efemeridade do gesto cênico, onde no “mundo real” professores são espancados e crianças são mortas em morros por unidades de elite da polícia militar, enquanto a maioridade penal é reduzida.
Retomando a pergunta feita no início dessa crítica, qual é então a diferença, a distância entre homens e animais? O egoísmo e a mesquinhez da nossa raça. Isso pode ser lido na projeção de defeitos humanos como características animais: o político que legisla para si (porcos); os facilmente manipuláveis (ovelhas); submundo (rato); aquele que só vem agourar a vida dos outros (urubu); o barraco/ “galinhagem”; aquele que aguenta uma jornada de trabalho exaustiva (cavalo).
Tamanha é nossa letargia política, que talvez apenas observando a condição de um outro de nossa mesma espécie já não seja o suficiente pra provocar alguma movimentação. Nesse elemento, Animalismo timidamente provoca o público e o Teatro, a pensar para além da opressão e exploração humana, apontado para outro nível de alienação, o que existe entre espécies, na esquizofrenia moral que nos silencia – humanos – à violência contra todas as outras formas de vida animal, na provocação de que os sistemas, sejam quais forem, perpetuam a violência especista. Essa questão é amplamente debatida e enfrentada por grupos de libertação animal.
Mas o homem-bicho especista, abjeta essas comparações, prefere ser coisa do que animal não animal. Ignora que independente dos ismos, a diferença entre galinhas, porcos e humanos não vai além do tipo de abate, se na degola ou na aposentadoria. Isto pode ser metáfora humana, mas é realismo animal. Animalismo já existe, para toda espécie à mercê do açoite humano.
Assim, O Grupo de Teatro Universitário consegue fazer Teatro Político sem ser enfadonho ou panfletário, prezando por uma dramaturgia bem estruturada e pela preparação de seu elenco, aliando de forma coesa a provocação política com o cuidado estético.


16.05.2015

domingo, 24 de maio de 2015

Sobre Mitos e Currículos

Victor Peixe – Ator e participante do projeto Tribuna do Cretino.
Inicio esta reflexão localizando o trabalho que será discutido, para assim ser comentado dentro dos parâmetros corretos: Mitos é a apresentação pública da conclusão da disciplina Técnicas Corporais II do Curso Técnico de Formação em Ator da ETDUFPA, ministrada pelo professor Miguel Santa Brígida.
Esta disciplina tem como eixo a pesquisa do universo mítico das culturas africanas, afro-brasileiras e afro-amazônicas e a construção de performances solo. Não se trata, portanto, de resultados que derivam de um longo processo de pesquisa e experimentação, já que disciplina dura apenas um bimestre.
É importante salientar também que este ano pude acompanhar apenas a primeira das duas noites de apresentação. Contudo, meu ponto de reflexão passa ao largo dos 24 mitos-performances apresentados, mas parte da fala do professor-diretor Miguel Santa Brígida, que posiciona a importância dessa disciplina diante da lei 10.639/2003, que implementa o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira nos currículos nacionais em diferentes etapas do ensino. Partir desta fala, torna possível tecer algumas reflexões para além dos resultados deste ano.
Diz o texto da referida lei:


Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.

§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.


§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.


[...] Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’. 


A partir disso, é possível identificar falhas no currículo do Curso de formação em Ator, pois de acordo com o texto acima, a temática afro-brasileira deveria ser transversal, atravessando o currículo do curso técnico. Como egresso deste curso, não é que o pude vivenciar.
Enquanto escrevo esta crítica, o Bando de Teatro do Olodum, de Salvador, um dos mais importantes grupos de teatro negro brasileiro, está em meio a uma programação comemorativa de seus 25 anos de atividade ininterrupta, permanecendo como um dos referenciais à produção cênica voltada à pesquisa, vivência e experimentação das culturas afro-brasileiras. Enquanto se passa pela disciplina de História do Ator sem se ouvir falar deste grupo ou de qualquer outro grupo de Teatro Negro brasileiro. Quando muito, vagamente se fala do Teatro Experimental do Negro e na figura de Abdias do Nascimento. Passa-se pela disciplina Dramaturgia, sem se discutir sobre um dramaturgo negro sequer, permanecendo a estética negra relegada ao silêncio e a desinformação, sem que se tenha à oportunidade de travar contato com a importância da sua dimensão sociopolítica para a desconstrução dos paradigmas eurocêntricos ainda dominantes nas artes cênicas e do enfrentamento do racismo na sociedade brasileira.
Assim, sobra à disciplina de Técnicas Corporais II dar conta de toda essa temática, o que apenas por sua breve carga horária não seria possível, dada a complexidade social das populações africanas oriundas da Diáspora negra. Este problema conduz ao seguinte, que tratarei a partir agora.
Lidar com o imaginário afro-brasileiro é adentrar o universo de Orixás, Voduns, Nkinces, Caboclos, Exus e Encantados, é lidar com a espiritualidade, a cosmogonia e visão de mundo de culturas secularmente perseguidas, enxovalhadas e violentadas à paus e pedras, seja por igrejas neopentencostais extremistas ou pelo mais rasteiro senso comum herdado de uma educação religiosa católica, que por séculos tratou os deuses e divindades africanos como demoníacos, luxuriosos e bestiais, coisa de algo muito menos do que gente.
Sem o devido cuidado de tradução cultural, simbólica e imagética da pesquisa-conceito para a execução/resultado cênico, se acaba apenas reproduzindo o senso comum, onde esse imaginário permanece como estranho, exótico e permissivo.
Isto faz com que em cena onde toda sorte de confusão simbólica aconteça, onde criaturas asquerosas, deformadas e dadas à beberagem são apresentadas como exus, pomba giras são representadas como mulheres libertinas, caboclas dançam música pop e sereias executam danças sensuais, revelando a superficialidade da pesquisa de diversos trabalhos. Este tipo de trabalho deve ser problematizado na medida em que apenas reforça e reproduz estigmas e estereótipos sociais já tão disseminados. Para isto, já bastam às cenas de péssimo gosto apresentadas em cultos televisivos.
Para finalizar, afirmo que não se trata aqui de conservadorismos ou de censura à liberdade artística, mas a percepção de que se trata de culturas secularmente castradas de sua liberdade de culto, se está lidando com a cultura do violentado, do usurpado, culturas ainda em resistência, onde um exercício mínimo de alteridade se faz necessário, para que não se caía na repetição de discursos de dominação do pior tipo, e por quais meios nossa Arte de fato contribuir para o enfrentamento do racismo da violência contra o povo afrodescendente.

12.05.2015

domingo, 17 de maio de 2015

Os contornos épico-dramáticos de Animalismo

Credenciais do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA. 

Poucos espetáculos de Teatro, em Belém do Pará, conseguem a façanha de sobreviver a mais de uma temporada de apresentações – via de regra, limitadas há um final de semana. Romper este cerco estabelecido pela (dês)política cultural para a categoria teatral na cidade – mais de uma década sob a tutela do jactancioso Secretário de Cultura Paulo Chaves; e a FUMBEL, será que ainda existe? – já merece destaque e faz deste ato um posicionamento político contumaz, uma espécie de tapa com luva de pelica na face do soberbo secretário e da moribunda secretária municipal: existimos, resistimos e não perdemos a ternura!
Embora seja da opinião que a resposta da classe teatral diante da conjuntura cultural na cidade devesse ser mais contundente, organizada e politizada, reconhecer a persistência e resistência de alguns grupos de teatro na cidade – o GRUTA, por exemplo, com mais de quatro décadas de trajetória – traz um alento e a lembrança de que há vida criativa e inteligente para além do milionário Festival de Ópera da SECULT-PA.
Curiosamente, na mesma semana em que o Teatro Cuíra anunciou sua morte ainda em tenra infância – foram nove anos de portas abertas para atividades culturais na cidade –, o Grupo de Teatro Universitário/GTU entra no hall destes grupos que resistem ao tempo e as mazelas sociais ao trazer ao público, pelo terceiro ano consecutivo, o espetáculo Animalismo – A Nova Ordem Mundial. A estratégia de sobrevivência deste grupo e espetáculo parece seguir a cartilha da classe teatral na cidade: ocupação de novos territórios como salas de espetáculos. O Fórum Landi – prédio histórico localizado na Praça do Carmo – desta vez foi o território ocupado. É sobre este espetáculo que dedicarei algumas considerações a seguir.
O primeiro destaque me parece, já foi indicado, isto é: a duradoura sobrevida desta montagem que além do já mencionado ato de resistência política, possibilita o amadurecimento dos diversos elementos da encenação. Em segundo lugar, terei oportunidade de refletir novamente sobre este trabalho. No entanto, ao contrário da primeira crítica que teci em Setembro/2013 – onde, na ocasião, explorei a dimensão metafórica da fábula e sua articulação com a conjuntura do país – gostaria de focar nas questões formais da montagem para não ser repetitivo nas considerações.
Resgato então, a provocação final que encerra a crítica passada e a partir dela desdobro meus novos questionamentos: “(...) o grito expresso nos cartazes continuarão aprisionados na ficção se não ultrapassarem a porta do Teatro. Qual o lugar e o tempo da revolução que queremos?”    
De alguma forma, enquanto assistia a apresentação da montagem, esta questão me atravessou novamente, reelaborada numa perspectiva de compreensão das engrenagens da encenação, coisa que a torna ainda mais inquietante: como articular ficção de conteúdo político com uma forma não-dramática sem, no entanto, incorrer em panfletarismo ideológico ou epicização gratuita? Como potencializar a obra de tal modo que as discussões políticas da fábula repercutam também no seio da sociedade? Isso é possível ou uma utopia de quem vos escreve?
Não há como refletir, a meu ver, sobre estas questões sem visitar o léxico conceitual que estabelece em campos antitéticos a forma dramática e a forma épica. Questão proeminente: Animalismo é uma montagem dramática? A rigor não. Fatalmente, então, seria uma montagem épica? Mesmo admitindo que não haja pureza nos gêneros, a resposta não é simples e nem imediata, pois a obra transita flertando com ambos os gêneros sem, no entanto, estabelecer-se como alternativa eqüidistante entre eles. Por vezes, me convenço que é drama com elementos épicos: a histórica se intensifica até atingir um nível de tensão aguda – clímax – com a morte do cavalo Sansão, ápice/síntese do drama social dos animais da Granja dos Bichos. A tensão é construída, no entanto, em saltos épicos de tempo e fragmentação da montagem em três intervalos, momentos estes de clara adesão a quebra da quarta parede. A quebra proporcionada pelo anuncio do intervalo se limita a formalidade deste ato na medida em que não aciona, sugere ou indica questões junto à platéia. Assim, permanecemos na condição de espectadores a testemunhar um procedimento formal épico. Então, até que ponto os intervalos propostos não se voltam contra a própria estrutura da encenação?  
Por isso, logo abandono esta perspectiva de análise para então passar a acreditar que se trata de uma fábula épica com fortes contornos dramáticos: a história nos é contada em saltos no tempo, com pelo menos três grandes interrupções – os intervalos –, uso de canções e placas que distanciam e/ou contextualizam os acontecimentos; mas em meio a tudo isso uma forma de atuação/interpretação carregada de dramaticidade. Destaco como exemplo disso a atuação nos papéis de Garganta, Benjamin e Sansão, atuações que passarei a analisar abaixo.
O primeiro é quem mais exagera na dramaticidade colocada no papel: a atriz que o interpreta obstina-se tanto em retratá-lo como o grande vilão da trama que exagera no volume de voz, durante quase toda sua participação, perdendo boa parte das nuances do texto, nuances estas que poderiam ser reveladoras do caráter daqueles que costumam ter em mãos os destinos de uma sociedade, ou seja, o modo dissimulado e ardiloso com que tratam as questões públicas sobrepondo a elas seus interesses particulares. O que vemos, no entanto, é o Porco Garganta tecido linearmente como alguém cruel, arrogante e vil tendo essas qualidades elevadas sempre a potencia máxima que o drama permite. Perde-se com isso a possibilidade de desenvolvimento da desfaçatez, maquiavelismo e cinismo próprios dos detentores do poder no Brasil. O papel fica confinado, deste modo, a sua função dramática de propulsor e intensificador do conflito – uma espécie de antagonista (vilão) retratado com tinta forte – fragilizando por demais seus aspectos épicos.
A atuação no papel de Benjamin, por sua vez, encarrega-se de fazer o contraponto dramático a Garganta. Temos, neste caso, um tom de interpretação que explora a dimensão emocional do drama social do Cavalo Sansão. Temos novamente o volume de voz elevado articulado com o tom de indignação emocional pelo desfecho fúnebre de uma das forças de trabalho mais valorosa da Granja dos Bichos. O modo emocionado como a atriz que atua Benjamin conduz as cenas finais da peça, fragiliza o próprio drama social construído ao longo da história, pois nos apiedamos da sorte individual de Sansão e não do que esta morte representa na sua dimensão social. Quem morre, portanto, é um cavalo e não o que este cavalo representa no contexto social da fábula.                                 
A atuação de Sansão é a que menos fragiliza os elementos épicos da montagem, mas nem por isso deixa de incorrer em alguns elementos semelhantes: o volume de voz também é exagerado nos momentos de maior tensão dramática – aliás, este é um problema de quase todos no elenco nesta temporada – e sua indignação diante da situação de exploração na granja também nos aciona uma recepção emocional preparando, deste modo, o desfecho catártico aludido anteriormente.  
Outro elemento intrigante e que merece uma reflexão são os cartazes que aprecem na montagem. Primeiramente remeto ao cartaz usado na cena de protesto das Galinhas, pois ele alude quase que diretamente para o grande slogan dos protestos de Junho de 2013: “não é pelos vinte centavos”. Quando foi usado na primeira temporada da montagem ocorrida em 2013, o resultado em cena foi imediato e facilmente perceptível na reação calorosa da platéia, pois estabeleceu elo com as demandas sociais que gritavam nas ruas do país inteiro naquela ocasião. Utilizar um cartaz com uma legenda histórica tão marcante sem nenhuma contextualização soou como anacronismo, também facilmente perceptível pela gélida reação da platéia.  
O mais instigante, no entanto, são os cartazes portados pelo elenco no final da montagem: a ênfase, desta vez, recaiu no apoio à greve dos professores do estado. O curioso e instigante é que – como tentei demonstrar ao longo desta crítica – a montagem oscila entre o dramático e o épico, com ênfase para o primeiro. Então, esta última “cena” da montagem provoca-nos a pensar para além do palco e é o único momento em que há, de fato, uma quebra da quarta-parede com objetivo de contextualizar a conjuntura local, superando, portanto, um mero formalismo épico. É curioso, provocante, mas também estranho, pois passamos quase duas horas de espetáculo sem nenhuma ação desta natureza antes. Seria esta, suficiente para nos mover para fora da fábula?
São estas questões que me fazem continuar perseguindo um modo de compreender e de fazer arte com engajamento político, ou melhor, uma arte que se reconheça ativista, uma por assim dizer ARTIVISTA.
17.05.2015
Edson Fernando
   

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Exercício de Esboço de Crítica a partir da obra Imagem-Mudança, de Ercy Souza


Decorridas oito semanas do início do curso de Crítica em Teatro e Dança os participantes entram numa nova fase de exercício de escrita, onde se apresenta o desafio de esboçar os primeiros juízos estéticos acerca da obra apreciada. Até então, foram dois exercícios de registro da recepção das obras apresentadas. A ênfase, nesta etapa inicial, recai no modo como os participantes descrevem o contato que tiveram com a obra, as impressões sinestésicas despertadas e as reflexões provocadas por meio delas. A nova etapa – o esboço da crítica - exige dos participantes conhecimento do escopo da obra para, então, dialogar com sua fundamentação teórico/poética apontando para o leitor-espectador o ponto de partida, as linhas de acesso e as conexões possíveis da obra apreciada.   
    O artista convidado foi Ercy Souza da Cia Moderno de Dança e a obra apresentada intitula-se Imagem-Mudança. Ercy nos brindou com uma apresentação instigante onde procura desenvolver e compreender uma metodologia para o processo de transcriação coreográfica. A obra é resultado poético de sua dissertação de mestrado defendida do PPGArtes ICA/UFPA.  A seguir, o exercício de escritura do esboço de crítica dos participantes do curso.
Esboço de Crítica de Silvia Teixeira
Voando em pensamento

E o pensamento tornou-se imagem rabiscada em uma simples cartolina, e por segundos a imagem passa a ser dissecada pelo homem que passou a observá-la.
           A leitura do fragmento poético apresentada pelo bailarino Ercy Souza da Cia Moderno de Dança, mestrado em PPGARTES/UFPA, é óbvia quanto para uma visão de representação, porém constituída de elementos externos e intrínsecos que a valorizam. Um dos elementos externos é o detalhe minimalista que se inicia pelas articulações das mãos e expande-se gradativamente ao longo do seu corpo ganhando expressões mais largas. E o segundo só pode ser visto a partir do conceito criativo da transcrição da sua dança.
Imagem-Mudança não se apresenta em sua totalidade como espetáculo de dança, e sim como uma performance híbrida que dialoga com teatro onde observo uma certa  relevância para este, fazendo-me confessar que se não tivesse uma base de conceito da dança contemporânea, espontaneamente assinalaria  a obra  como uma cena de teatro.
A narrativa é conduzida através de um homem que prostrado de pé no palco pensava, e ao virar-se de costas inicia-se a riscar com seus lápis de cores em uma cartolina. Seu desenho não era acessível ao público, mas riscava como se estivesse descarregando uma bateria elétrica. E confesso que isso me aguçava a curiosidade. Após a descarga elétrica do seu pensamento ele coloca a cartolina em uma cadeira e dirigiu novamente seu olhar e pensamento para uma obra concreta, sua própria arte. Então até a presente narrativa há uma cena de interpretação teatral. Em seguida, após observar e contemplar a obra feita por ele mesmo, o jovem começa a representar metaforicamente o ciclo da borboleta onde vejo detalhes de dança.
         Como disse anteriormente, é preciso conceituar a performance apresentada pelo bailarino, para não confundi-la como um monólogo teatral,  sua dança não compartilha de coreografias pré-estabelecidas,  é voltada para o caminho dos movimentos, onde o corpo estabelece sua própria dramaturgia, uma característica da dança contemporânea. Ao estabelecer sua própria dramaturgia, o jovem rapaz, apresenta-nos sua própria imanência onde o seu pensamento se fez imagem, onde a imagem que o pensamento significa pensar, fazer uso do pensamento, se orientar pensamento (Deleuze e Gautarri, 1922, p.47) transcrita em uma dança, compartilhando seus sonhos com o público. A dança imanente é uma característica conceitual do grupo de dança da qual o intérprete é integrante.
Aos primeiros passos da recriação da obra oriunda do pensamento, já era pintado aos olhos do público, onde ao término do espetáculo, o homem reafirma abrindo a cartolina onde havia uma borboleta de multicores. Cores de borboletas que com certeza muito antes de pensamento, este jovem já havia dissecado por tantas vezes em voos que permeiam seus pensamentos.

Esboço de Crítica de Andrey Gomes
Romper o casulo: Imagem – mudança
DESTINO: TODO O ESFORÇO É NULO SE A BORBOLETA – NÃO ROMPE O CASULO .(Alonso Rocha – haikai)
A sensação: acompanhamos o mistério da criação dito por uma linguagem esquecida; esquecida, mas imanente em vida. Som, imagem e corpo pulsam em conjunto, coreografando o ciclo existencial de uma borboleta.
Justifico a alusão ao haikai – o minimalismo reveste a performance de Ercy Souza dentro da proposta de transcriação em dança. A obra começa com uma cartolina branca ao chão, onde o autor se põe a desenhar (ou riscar) figura não identificável de imediato, a partir disso, o mesmo senta e contempla sua criação, um “segundo ato” do processo se inicia e somos conduzidos pela música cênica a um peculiar jogo metalingüístico.
Investigar o repertório corporal é um dos elementos sugeridos por qualquer técnica formal de dança, entretanto, a dança imanente não quer apenas isso, quer infusão! Assim como na vanguarda cubista, a obra é concebida para terminar na subjetividade coletiva; recria-se o ciclo evolutivo de uma borboleta e sua reconstrução permanece para além do palco. Há interação de linguagens e o resultado é quase cinematográfico, a metamorfose do inseto é transfigurada em movimento, mas isso é o que menos importa.
Interagi com a mesma instabilidade quando assisti a “Blow- up “ de Antonioni.  A cena final com os mímicos me pareceu desmembrar todo o mistério que permeia o filme – e não seria revelador contemplar uma larva que ganha asas e voa? O processo é mais importante que o produto? Aqui não se trata de “arte pela arte”, mas de eixo investigativo, não há cenografia ou iluminação, mas um ato criador sendo realizado no palco, e não fomos preparados para isso.
O resultado: pretensioso para alguns, o estranhamento é compreensível quando somos conflitados por uma linguagem que esquecemos.  Erich Fromm nos diz que a linguagem simbólica constitui a única linguagem universal da raça humana e naturalmente manifestamos atitudes e sentimentos por movimentos e gestos – deveras o corpo é um símbolo, a emoção sentida genuinamente manifesta-se em todo o nosso corpo. Imagem – mudança não só é um estudo a cerca da dança imanente, mas também uma reflexão, um reeducar do olhar necessário para compreendermos, ou melhor, contemplarmos o mistério de criar que oculta o insumo de vida transcriado em movimento.

Esboço de Crítica de Emanuelle Araújo
A borboleta que voou sem sair do chão
A obra Imagem – Mudança interpretada por Ercy Souza, nos remete ao ciclo de vida da borboleta, em que no primeiro momento o artista desenha algo em uma folha de cartolina, de costas para a platéia, não revela a sua pintura, ainda mantendo sua obra pintada oculta do público, mas, enfim de frente para a platéia a mudança através da imagem acontece, ele sentado encarando a folha, inicia sua transformação, primeiro movimenta uma de suas mãos até a outra como se fosse uma lagarta logo em seguida a lagartinha se “entoca” no seu casulo para depois sair uma borboleta que voa até entrar e fazer parte do ser do artista que dança não como se fosse uma borboleta mas sendo a própria, com movimentos que lembram as fases da vida deste inseto, primeiro sendo uma lagarta depois se transformando no casulo para enfim ao som de uma música suave, agradavél e ao mesmo tempo triste, a borboleta aparece, não sai do chão, mas parece voar livre e assim ao fim de sua apresentação o artista nos revela sua pintura, quatro círculos coloridos e juntos formando uma borboleta que voou sem ao menos sair do chão.
Esboço de Crítica de Louise Bógea
Ao sermos introduzidos à “dança imanente”, percebe-se que há uma fuga das técnicas formais já propostas pela dança contemporânea, e, na obra “Imagem-Mudança” de Ercy Souza, esta fuga dá-se através da relação de imanência homem-borboleta, revelando um desejo de liberdade do seu próprio corpo, transformando-se no inseto. Posso dizer que foi interessante acompanhá-lo nesta mudança proposta na imagem, em todo o seu ciclo vital: do nascimento até, enfim, o voo. Ressalta-se que, neste nascimento, há uma escolha em relação ao seu destino, para que possa, então, lutar por ele e alcançá-lo. Ao final, quando o artista revela o desenho, colocando-o em frente à sua face, esperei que fosse vê-lo dançar em liberdade, mas se foi apenas, em andares calmos.

Em um trabalho similar, acredito que valha a pena assistir à interpretação da canção francesa “Fleur de Saison”, de Emilie Simon, onde a artista relaciona a sua vida com as quatro estações da natureza, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=W3RUJ22Ca2k.


Esboço de Crítica de Silvia Luz
Dissecar-nos
A performance Imagem e Mudança realizada pelo bailarino Ercy Souza da Cia. Moderno de Dança traz para nós o que não sabemos, desvela as camadas da pele, uma imagem que conduz o corpo, mas qual? O meu? O teu? O nosso?
O bailarino entra no palco ao som de uma música instrumental e senta de costas para nós diante de uma cartolina e alguns lápis de cera, ali passa alguns minutos rabiscando círculos coloridos na cartolina, levanta-se com o cartaz na mão, vira-se e caminha em direção a uma cadeira que compõe o cenário, na verdade a cadeira fora um suporte para segurar o cartaz, depois disso se senta no chão diante do mesmo e o contempla.
A contemplação é o próprio corpo do bailarino, não o cartaz. De repente tudo se transforma a face conectada com os movimentos das mãos nos leva a uma viagem para dentro de nós mesmos, esse momento de introspecção me fez lembrar a dança Butô que foca em sua essência uma forma de expressão que não seja necessariamente coreografada, nem presa a movimentos estereotipados que remetam a uma técnica específica. Essa dança preocupava-se em expressar a individualidade do butoka, nesta performance isso veio à tona, o corpo surgiu sem máscaras e véus de alegoria; o artista era o próprio corpo. Ainda sustentada pela filosofia do Butôsenti que o bailarino desvelou-se ali, naquele momento, mesmo tendo que remoer as dores e sabores de suas entranhas. O butoka para expressar sua verdade não tem medo dos segredos do corpo, busca libertar-se das formas do corpo e do pensamento, essa verdade aconteceu diante de nós espectadores.
O corpo pulsava e explodira como luzes coloridas. Diante desse universo eis a metamorfose! O homem é a própria borboleta, mas que já fora lagarta e hermeticamente casulo e que agora voa em consonância com o tempo-corpo, tempo-espaço, tempo-música e tempo-espectador, bravo!!!

O corpo é a borboleta. Metamorfoseou-se em tempo real, o voo do corpo era a pureza do olhar que contemplava o cartaz, serão isso as fases da vida? Por momentos não via os braços, via asas, por segundos não via a pele, via a transparências das camadas da derme, entrava no corpo. Tudo sustentado pelo vigor do artista que nos conduzira ao voo mais rasante e a transformação minuciosamente acontecera, não só no artista, mas em mim. Esse voo faz com que nossas verdades interiores sejam desveladas e depois dissecadas, causando metamorfoses em nosso eu, que depois de reveladas voltamos ao círculo da vida. Não sou dançarina, mas hoje eu dancei.

Esboço de Crítica de Malu Rabelo
O título da obra reflete sua estética de pesquisa, oferece ao público a oportunidade de exercitar um olhar de nem mais e nem menos, e sim propriamente aquilo  que se vê, um corpo, um corpo em movimento. Mais apenas um corpo? Não, observa-se um corpo contemporâneo, com movimentos próprios e minimalista, que me leva a reflexão sobre processos criativos, sobre a arte, e como reinterpretá-la.  
A luz simples e natural do ambiente é reveladora, porém discreta  e até ausente aos olhos de quem não a quer ver, mais presente e explosiva na aquarela das asas de uma borboleta que ganha vida através do  pensamento  do bailarino materializado  em movimentos e giz de cera.
No trecho da obra de Ercy Sousa, Imagem- mudança, a sonoplastia tem destaque. Metaforicamente,  este recuso técnico se torna via de acesso e  me remete ao desenho do que é a dança imanente, isto é, através desta linguagem da cena, torna- se possível observar o resultado poético da dissecação do corpo do bailarino.
Suas experiências vividas se misturam a seus movimentos corporais orgânicos e nos revelam imagens que criam ciclos de mudanças e a  cada transição da melodia,  o corpo do bailarino, se deforma para formar movimentos concretos e vitais.
 Ercy, parece-me despretensioso, cria uma coreografia sem início meio ou fim, sem personagens, embora  seu corpo esteja ali em exercício, experimentando e sendo observado,  fazendo  da imagem de seus movimentos uma dança.
Eis então o plano da imanência?
Esboço de Crítica de Danielle Francy
Imagem-mudança: uma condição relacional com o mundo
Um homem, uma folha em branco, giz de cera, uma cadeira e a música ao fundo, eis os elementos que constituem a obra Imagem-mudança de Erci Sousa. No entanto, há mais do que elementos nesta obra, há movimentos, emoção, e uma atmosfera que envolveu a mim e creio que a todos ali presentes. Como descrever minuciosamente cada fase ali representada, cada instante presenciado, cada movimento intenso do artista que retrata metaforicamente o ciclo de vida da borboleta? Mesmo sem poder reproduzir na íntegra em palavras, tentei ao menos sintetizar o que ali nos foi apresentado.
Desse modo, Imagem-mudança traz à cena o artista Erci Sousa que dá início à sua performance em pé e de frente para o público, com o olhar fixo a vislumbrar todos. Em seguida e de costas para os espectadores, se põe a riscar uma folha de papel em branco que é colocada em uma cadeira sem que vejamos a imagem ali projetada. Começa, então, o processo de metamorfose.
Ao som de uma canção com ritmo lento o artista move suas mãos, a princípio, com movimentos minimalistas e semelhantes aos passos de uma lagarta. No decorrer da apresentação esses movimentos, passam a fazer parte do corpo do artista, como num processo que me fez lembrar o contorcionismo, visto que Erci Sousa encena as fases da borboleta em seu casulo e para isso precisa executar movimentos circulares. Cada momento da performance do artista nos faz, mesmo sem conhecer profundamente, ter uma ideia do que acontece durante as fases de metamorfose da borboleta. No final da performance o artista expõe a todos a imagem de uma borboleta desenhada na folha no início da apresentação. 
A partir desses elementos envolvidos na obra Imagem-mudança e de toda a atmosfera criada ao longo da apresentação veremos que a obra em questão não se limita apenas a representar as fases da borboleta, mas sim a mostrar a relação do homem com o meio que o cerca. Considerando o artigo da doutora em artes cênicas Ana Flávia Mendes sobre a Dança Imanente, podemos ratificar tal afirmação com o seguinte fragmento: “O corpo é tido como matéria-prima para a coreografia, porém sem deixar de compreender sua condição relacional no mundo, tendo em vista que este corpo não existe sem outros corpos.” Podemos dizer, então, que o artista, mesmo atuando só, não é o único responsável por sua performance, mas sim o conjunto de experiências vividas e de suas relações com o mundo.
Assim, Imagem-mudança revela em si o conceito de imanência abordado por Ana Flávia Mendes, no qual a mesma afirma que “falar em imanência implica considerar a potencialidade transformadora de experiências de encontros, isto é, de relações”, pois “o indivíduo não é individual, mas produto e produtor de trocas com o meio que, por sua vez, compreende outros indivíduos”. Logo, a meu ver, podemos dizer que as possíveis experiências vividas pelo artista influenciaram sua obra do início ao fim, refletindo não só a metamorfose da borboleta, mas também a metamorfose pela qual todo ser humano passa durante sua vivência.
 A obra Imagem-mudança é realmente tocante no sentido de envolver o público e acredito que esta afirmação de Ana Flávia Mendes nos faz compreender melhor esta sensação: “o indivíduo não é individual, mas produto e produtor de trocas com o meio que, por sua vez, compreende outros indivíduos”, ou seja, indivíduos diversos, mas que contribuem de forma determinante para o todo da obra.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Joga pedra na Geni, Geni! – Por Raphael Andrade

Credenciais do Autor: Graduando em Licenciatura em Teatro – UFPA.  
      Os alunos do primeiro ano do Curso Técnico em Ator da Escola de Teatro e Dança da UFPA, apresentaram no encerramento da disciplina Técnicas Corporais I e Voz e Dicção I o exercício dramático da obra indutora: “Toda nudez será castigada” de Nelson Rodrigues com a temática “Falo de  Genis” com a direção do Prof. Msc, Edson Fernando e Marton Maués.
Penúria, arena em forma de quadrado lembrando um quarto, atores distribuídos ao redor, clima de suspense paira sobre os espectadores, com a ruptura do tom sepulcral no primeiro acorde de “Geni e o Zepelin” de Chico Buarque de Holanda. Gritos, sussurros audaciosos, dão ao público uma “palinha” do que está por vir. São Genis tristes, putas, sexualizadas, vingativas e marginalizadas pelas pedras dos tabus jogados pelas mãos que se escondem.
       A minoria das interpretações foram mal executadas, mas isso é apenas um detalhe, haja vista que era o primeiro exercício dos atores e o nervosismo é inerente.
O teatro do desagradável estava exposto na frente do expectador, fumaças de cigarro, terços que sensualiza pelo corpo, vinho jogado no chão, nos atores e na platéia. Ligados pela Nudez – Nudez esta castigada pelos burburinhos do público presente. A temática da apresentação não fugiu em nada do texto escrito há 50 anos por Nelson, Toda nudez será castigada mostrando-nos esse contexto da vida, que todos nós tentamos esconder, jogadas de uma forma desagradável para quem presencia as cenas.
A prostituta Geni é o enfoque da temática. Coragem exacerbada, essa é a palavra para definir as cenas, “dar a cara a tapa,” para as críticas posteriores, coragem da nudez, das mordidas pelo corpo, do toque na genitália e da exposição de cada ator com essa teatralidade sem julgamentos e pudores, que quebra qualquer tipo de conceitos sobre o certo e errado. Acredito que o ponto baixo da apresentação são os objetos das cenas, (vinho, terço e cigarro) todos praticamente propuseram este artifício para fazer a cena.
O texto dito na íntegra só vem somar com a teatralidade de Nelson Rodrigues, que nos mostra de forma simples e mitológica, esses tabus impostos pela religião de outrora... Outrora? Não! Em pleno ano de 2015 essas barreiras de pudores estão intrínsecos na maioria da sociedade. Quem presenciou “Falo de Genis” saiu da sala com um exemplo de libertação literária, teatral e, sobretudo da vida como ela é.

03.05.2015