Decorridas
oito semanas do início do curso de Crítica
em Teatro e Dança os participantes entram numa nova fase de exercício de escrita,
onde se apresenta o desafio de esboçar os primeiros juízos estéticos acerca da
obra apreciada. Até então, foram dois exercícios de registro da recepção das
obras apresentadas. A ênfase, nesta etapa inicial, recai no modo como os participantes
descrevem o contato que tiveram com a obra, as impressões sinestésicas despertadas
e as reflexões provocadas por meio delas. A nova etapa – o esboço da crítica - exige
dos participantes conhecimento do escopo da obra para, então, dialogar com sua fundamentação
teórico/poética apontando para o leitor-espectador o ponto de partida, as
linhas de acesso e as conexões possíveis da obra apreciada.
O artista
convidado foi Ercy Souza da Cia Moderno de Dança e a obra apresentada intitula-se
Imagem-Mudança. Ercy nos brindou com uma apresentação instigante onde procura
desenvolver e compreender uma metodologia para o processo de transcriação coreográfica.
A obra é resultado poético de sua dissertação de mestrado defendida do PPGArtes
ICA/UFPA. A seguir, o exercício de
escritura do esboço de crítica dos participantes do curso.
Esboço de Crítica de Silvia
Teixeira
Voando em
pensamento
E o pensamento
tornou-se imagem rabiscada em uma simples cartolina, e por segundos a imagem
passa a ser dissecada pelo homem que passou a observá-la.
A leitura do fragmento poético
apresentada pelo bailarino Ercy Souza da Cia Moderno de Dança, mestrado em
PPGARTES/UFPA, é óbvia quanto para uma visão de representação, porém
constituída de elementos externos e intrínsecos que a valorizam. Um dos elementos
externos é o detalhe minimalista que se inicia pelas articulações das mãos e
expande-se gradativamente ao longo do seu corpo ganhando expressões mais largas.
E o segundo só pode ser visto a partir do conceito criativo da transcrição da
sua dança.
Imagem-Mudança
não se apresenta em sua totalidade como espetáculo de dança, e sim como uma
performance híbrida que dialoga com teatro onde observo uma certa relevância para este, fazendo-me confessar
que se não tivesse uma base de conceito da dança contemporânea, espontaneamente
assinalaria a obra como uma cena de teatro.
A narrativa é conduzida
através de um homem que prostrado de pé no palco pensava, e ao virar-se de
costas inicia-se a riscar com seus lápis de cores em uma cartolina. Seu desenho
não era acessível ao público, mas riscava como se estivesse descarregando uma
bateria elétrica. E confesso que isso me aguçava a curiosidade. Após a descarga
elétrica do seu pensamento ele coloca a cartolina em uma cadeira e dirigiu
novamente seu olhar e pensamento para uma obra concreta, sua própria arte.
Então até a presente narrativa há uma cena de interpretação teatral. Em
seguida, após observar e contemplar a obra feita por ele mesmo, o jovem começa
a representar metaforicamente o ciclo da borboleta onde vejo detalhes de dança.
Como disse anteriormente, é
preciso conceituar a performance apresentada pelo bailarino, para não confundi-la
como um monólogo teatral, sua dança não
compartilha de coreografias pré-estabelecidas,
é voltada para o caminho dos movimentos, onde o corpo estabelece sua
própria dramaturgia, uma característica da dança contemporânea. Ao estabelecer
sua própria dramaturgia, o jovem rapaz, apresenta-nos sua própria imanência
onde o seu pensamento se fez imagem, onde a imagem que o pensamento significa
pensar, fazer uso do pensamento, se orientar pensamento (Deleuze e Gautarri,
1922, p.47) transcrita em uma dança, compartilhando seus sonhos com o público. A
dança imanente é uma característica conceitual do grupo de dança da qual o
intérprete é integrante.
Aos primeiros passos da
recriação da obra oriunda do pensamento, já era pintado aos olhos do público, onde
ao término do espetáculo, o homem reafirma abrindo a cartolina onde havia uma
borboleta de multicores. Cores de borboletas que com certeza muito antes de
pensamento, este jovem já havia dissecado por tantas vezes em voos que permeiam
seus pensamentos.
Esboço
de Crítica de Andrey Gomes
Romper
o casulo: Imagem – mudança
DESTINO: TODO O ESFORÇO
É NULO SE A BORBOLETA – NÃO ROMPE O CASULO .(Alonso Rocha – haikai)
A sensação:
acompanhamos o mistério da criação dito por uma linguagem esquecida; esquecida,
mas imanente em vida. Som, imagem e corpo pulsam em conjunto, coreografando o
ciclo existencial de uma borboleta.
Justifico a alusão ao
haikai – o minimalismo reveste a performance de Ercy Souza dentro da proposta
de transcriação em dança. A obra começa com uma cartolina branca ao chão, onde
o autor se põe a desenhar (ou riscar) figura não identificável de imediato, a
partir disso, o mesmo senta e contempla sua criação, um “segundo ato” do processo
se inicia e somos conduzidos pela música cênica a um peculiar jogo metalingüístico.
Investigar o repertório
corporal é um dos elementos sugeridos por qualquer técnica formal de dança,
entretanto, a dança imanente não quer apenas isso, quer infusão! Assim como na
vanguarda cubista, a obra é concebida para terminar na subjetividade coletiva;
recria-se o ciclo evolutivo de uma borboleta e sua reconstrução permanece para
além do palco. Há interação de linguagens e o resultado é quase cinematográfico,
a metamorfose do inseto é transfigurada em movimento, mas isso é o que menos
importa.
Interagi com a mesma
instabilidade quando assisti a “Blow- up “ de Antonioni. A cena final com os mímicos me pareceu
desmembrar todo o mistério que permeia o filme – e não seria revelador
contemplar uma larva que ganha asas e voa? O processo é mais importante que o
produto? Aqui não se trata de “arte pela arte”, mas de eixo investigativo, não
há cenografia ou iluminação, mas um ato criador sendo realizado no palco, e não
fomos preparados para isso.
O resultado:
pretensioso para alguns, o estranhamento é compreensível quando somos
conflitados por uma linguagem que esquecemos.
Erich Fromm nos diz que a linguagem simbólica constitui a única
linguagem universal da raça humana e naturalmente manifestamos atitudes e
sentimentos por movimentos e gestos – deveras o corpo é um símbolo, a emoção
sentida genuinamente manifesta-se em todo o nosso corpo. Imagem – mudança não
só é um estudo a cerca da dança imanente, mas também uma reflexão, um reeducar
do olhar necessário para compreendermos, ou melhor, contemplarmos o mistério de
criar que oculta o insumo de vida transcriado em movimento.
Esboço de Crítica de Emanuelle
Araújo
A borboleta que voou sem sair do
chão
A
obra Imagem – Mudança interpretada
por Ercy Souza, nos remete ao ciclo de vida da borboleta, em que no primeiro
momento o artista desenha algo em uma folha de cartolina, de costas para a
platéia, não revela a sua pintura, ainda mantendo sua obra pintada oculta do
público, mas, enfim de frente para a platéia a mudança através da imagem
acontece, ele sentado encarando a folha, inicia sua transformação, primeiro
movimenta uma de suas mãos até a outra como se fosse uma lagarta logo em
seguida a lagartinha se “entoca” no seu casulo para depois sair uma borboleta
que voa até entrar e fazer parte do ser do artista que dança não como se fosse
uma borboleta mas sendo a própria, com movimentos que lembram as fases da vida
deste inseto, primeiro sendo uma lagarta depois se transformando no casulo para
enfim ao som de uma música suave, agradavél e ao mesmo tempo triste, a
borboleta aparece, não sai do chão, mas parece voar livre e assim ao fim de sua
apresentação o artista nos revela sua pintura, quatro círculos coloridos e
juntos formando uma borboleta que voou sem ao menos sair do chão.
Esboço de Crítica de Louise Bógea
Ao sermos
introduzidos à “dança imanente”, percebe-se que há uma fuga das técnicas
formais já propostas pela dança contemporânea, e, na obra “Imagem-Mudança” de
Ercy Souza, esta fuga dá-se através da relação de imanência homem-borboleta,
revelando um desejo de liberdade do seu próprio corpo, transformando-se no
inseto. Posso dizer que foi interessante acompanhá-lo nesta mudança proposta na
imagem, em todo o seu ciclo vital: do nascimento até, enfim, o voo. Ressalta-se
que, neste nascimento, há uma escolha em relação ao seu destino, para que
possa, então, lutar por ele e alcançá-lo. Ao final, quando o artista revela o
desenho, colocando-o em frente à sua face, esperei que fosse vê-lo dançar em
liberdade, mas se foi apenas, em andares calmos.
Em
um trabalho similar, acredito que valha a pena assistir à interpretação da
canção francesa “Fleur de Saison”, de Emilie Simon, onde a artista
relaciona a sua vida com as quatro estações da natureza, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=W3RUJ22Ca2k.
Esboço
de Crítica de Silvia Luz
Dissecar-nos
A
performance Imagem e Mudança realizada pelo bailarino Ercy Souza da Cia.
Moderno de Dança traz para nós o que não sabemos, desvela as camadas da pele,
uma imagem que conduz o corpo, mas qual? O meu? O teu? O nosso?
O
bailarino entra no palco ao som de uma música instrumental e senta de costas
para nós diante de uma cartolina e alguns lápis de cera, ali passa alguns
minutos rabiscando círculos coloridos na cartolina, levanta-se com o cartaz na
mão, vira-se e caminha em direção a uma cadeira que compõe o cenário, na
verdade a cadeira fora um suporte para segurar o cartaz, depois disso se senta
no chão diante do mesmo e o contempla.
A
contemplação é o próprio corpo do bailarino, não o cartaz. De repente tudo se transforma
a face conectada com os movimentos das mãos nos leva a uma viagem para dentro
de nós mesmos, esse momento de introspecção me fez lembrar a dança Butô que
foca em sua essência uma forma de expressão que não seja necessariamente
coreografada, nem presa a movimentos estereotipados que remetam a uma técnica
específica. Essa dança preocupava-se em expressar a individualidade do butoka,
nesta performance isso veio à tona, o corpo surgiu sem máscaras e véus de
alegoria; o artista era o próprio corpo. Ainda sustentada pela filosofia do
Butôsenti que o bailarino desvelou-se ali, naquele momento, mesmo tendo que
remoer as dores e sabores de suas entranhas. O butoka para expressar sua
verdade não tem medo dos segredos do corpo, busca libertar-se das formas do
corpo e do pensamento, essa verdade aconteceu diante de nós espectadores.
O
corpo pulsava e explodira como luzes coloridas. Diante desse universo eis a
metamorfose! O homem é a própria borboleta, mas que já fora lagarta e
hermeticamente casulo e que agora voa em consonância com o tempo-corpo, tempo-espaço,
tempo-música e tempo-espectador, bravo!!!
O
corpo é a borboleta. Metamorfoseou-se em tempo real, o voo do corpo era a
pureza do olhar que contemplava o cartaz, serão isso as fases da vida? Por
momentos não via os braços, via asas, por segundos não via a pele, via a
transparências das camadas da derme, entrava no corpo. Tudo sustentado pelo
vigor do artista que nos conduzira ao voo mais rasante e a transformação
minuciosamente acontecera, não só no artista, mas em mim. Esse voo faz com que
nossas verdades interiores sejam desveladas e depois dissecadas, causando
metamorfoses em nosso eu, que depois de reveladas voltamos ao círculo da vida.
Não sou dançarina, mas hoje eu dancei.
Esboço de Crítica de Malu Rabelo
O
título da obra reflete sua estética de pesquisa, oferece ao público a oportunidade
de exercitar um olhar de nem mais e nem menos, e sim propriamente aquilo que se vê, um corpo, um corpo em movimento. Mais
apenas um corpo? Não, observa-se um corpo contemporâneo, com movimentos próprios
e minimalista, que me leva a reflexão sobre processos criativos, sobre a arte, e
como reinterpretá-la.
A
luz simples e natural do ambiente é reveladora, porém discreta e até ausente aos olhos de quem não a quer ver,
mais presente e explosiva na aquarela das asas de uma borboleta que ganha vida através
do pensamento do bailarino materializado em movimentos e giz de cera.
No
trecho da obra de Ercy Sousa, Imagem- mudança, a sonoplastia tem destaque. Metaforicamente,
este recuso técnico se torna via de
acesso e me remete ao desenho do que é a
dança imanente, isto é, através desta linguagem da cena, torna- se possível
observar o resultado poético da dissecação do corpo do bailarino.
Suas
experiências vividas se misturam a seus movimentos corporais orgânicos e nos
revelam imagens que criam ciclos de mudanças e a cada transição da melodia, o corpo do bailarino, se deforma para formar movimentos
concretos e vitais.
Ercy, parece-me despretensioso, cria uma
coreografia sem início meio ou fim, sem personagens, embora seu corpo esteja ali em exercício,
experimentando e sendo observado, fazendo
da imagem de seus movimentos uma dança.
Eis
então o plano da imanência?
Esboço de Crítica de Danielle
Francy
Imagem-mudança:
uma condição relacional com o mundo
Um homem, uma folha em
branco, giz de cera, uma cadeira e a música ao fundo, eis os elementos que
constituem a obra Imagem-mudança de Erci Sousa. No entanto, há mais do que
elementos nesta obra, há movimentos, emoção, e uma atmosfera que envolveu a mim
e creio que a todos ali presentes. Como descrever minuciosamente cada fase ali
representada, cada instante presenciado, cada movimento intenso do artista que retrata
metaforicamente o ciclo de vida da borboleta? Mesmo sem poder reproduzir na
íntegra em palavras, tentei ao menos sintetizar o que ali nos foi apresentado.
Desse modo,
Imagem-mudança traz à cena o artista Erci Sousa que dá início à sua performance
em pé e de frente para o público, com o olhar fixo a vislumbrar todos. Em
seguida e de costas para os espectadores, se põe a riscar uma folha de papel em
branco que é colocada em uma cadeira sem que vejamos a imagem ali projetada. Começa,
então, o processo de metamorfose.
Ao som de uma canção
com ritmo lento o artista move suas mãos, a princípio, com movimentos minimalistas
e semelhantes aos passos de uma lagarta. No decorrer da apresentação esses
movimentos, passam a fazer parte do corpo do artista, como num processo que me
fez lembrar o contorcionismo, visto que Erci Sousa encena as fases da borboleta
em seu casulo e para isso precisa executar movimentos circulares. Cada momento
da performance do artista nos faz, mesmo sem conhecer profundamente, ter uma
ideia do que acontece durante as fases de metamorfose da borboleta. No final da
performance o artista expõe a todos a imagem de uma borboleta desenhada na
folha no início da apresentação.
A partir desses elementos
envolvidos na obra Imagem-mudança e de toda a atmosfera criada ao longo da
apresentação veremos que a obra em questão não se limita apenas a representar
as fases da borboleta, mas sim a mostrar a relação do homem com o meio que o
cerca. Considerando o artigo da doutora em artes cênicas
Ana Flávia Mendes
sobre a Dança Imanente, podemos ratificar tal afirmação com o seguinte
fragmento: “O corpo é tido como matéria-prima para a coreografia, porém sem
deixar de compreender sua condição relacional no mundo, tendo em vista que este
corpo não existe sem outros corpos.” Podemos dizer, então, que o artista, mesmo
atuando só, não é o único responsável por sua performance, mas sim o conjunto
de experiências vividas e de suas relações com o mundo.
Assim, Imagem-mudança
revela em si o conceito de imanência abordado por Ana Flávia Mendes, no qual a
mesma afirma que “falar em imanência implica considerar a potencialidade
transformadora de experiências de encontros, isto é, de relações”, pois “o
indivíduo não é individual, mas produto e produtor de trocas com o meio que,
por sua vez, compreende outros indivíduos”. Logo, a meu ver, podemos dizer que as
possíveis experiências vividas pelo artista influenciaram sua obra do início ao
fim, refletindo não só a metamorfose da borboleta, mas também a metamorfose
pela qual todo ser humano passa durante sua vivência.
A obra Imagem-mudança é realmente tocante no
sentido de envolver o público e acredito que esta afirmação de Ana Flávia
Mendes nos faz compreender melhor esta sensação: “o indivíduo não é individual,
mas produto e produtor de trocas com o meio que, por sua vez, compreende outros
indivíduos”, ou seja, indivíduos diversos, mas que contribuem de forma
determinante para o todo da obra.