Espetáculo: Zé.
Credenciais do autor da crítica: Victor Peixe - Ator
Quem é tolo o suficiente para dar
ouvido a soluços?
Quem é este qualquer, a quem chamam
de Zé, que me recordo em fragmentos,
em ausências?
Que após dias, semanas, que não está
mais na esquina, sob uma marquise. Para onde terá ido? Como a permanência da
sua falta me causa tanto incômodo?
E estes, que contam sua tola
história, tão despidos em sua apaixonante entrega, a mercê do meu escracho,
conhecem sua condição: meros títeres nas mãos de um manipulador obscuro? Também
me causam desconforto qual uma multidão, na cadência de seus passos hipnóticos
que de tão profundos e sincopados, em seus corações só pode bater algum
poderoso relógio, capaz de abafar a rouquidão do lamento humano. Zé, teu
choro jaz abafado por essa multidão de passos.
Compreendo Zé... de cada gesto
que urra, ganho retalhos que em bricolage recompõe tua vida, a vida de
um indigente; que definha, sucumbe em sua degradação moral, gesto sobre gesto.
Tudo em ti é incômodo Zé. Neste espaço que não permite a fuga,
por uma hora não posso virar o rosto ou atravessar a rua ignorando tua
existência. Uma hora é tudo que te permito Zé.
Por uma hora tenho a puta e o pervertido por companhia, por uma hora caminharei
ao teu lado, atravessando esse cotidiano funesto e degradante.
Até que te tornes uma lembrança, um
mito, eco de um mundo desgraçado, até que perguntem “Matou por loucura, paixão
ou insensatez?”.
Para onde vais agora Zé? Ora, te persigo por essas ruelas,
onde a vida é algo mais que alguns trocados, onde a vida ganha o rubor das
faces de qualquer vagabundo, tão úmida e apaixonante quanto a febre. Na crueza
dessa imundície, impossível te ignorar. Afinal, que nome dar a isso que
despedaça minha humanidade, transformando homens em bestas?
Por que me persegues Zé? Por que não te calas e aceita tua
condição subalterna e medíocre? Entende, por fim, que apenas aqui te darei
atenção. Na esquina próxima, ao me deparar com as verdades de um outro ébrio,
não lhe darei bom dia nem palavra, não lhe darei moeda, antes cuspa no seu
caminho!
Cala-te, Zé! Este teu lamento insone, perante estes poucos que ora escutam
de nada te é útil, já que ao repousarem suas almas sob algum travesseiro, hão
de te esquecer, eu asseguro! Teu choro engolido, tuas palavras balbuciadas, são
ininteligíveis. É absurdo que ainda respires.
De olhos muito abertos e vivos, e em
profundo torpor me obrigas Zé (ou
devo te chamar Maria ou, ainda, Capitão?) a enfrentar meu reflexo e contemplar
quão asqueroso o ser humano é?! Não Zé,
não quero aceitar que vivas dentro de mim!
Tua sina é ser purgado,
ridicularizado, tido por louco, engaiolado, tomado por peça a ser metodicamente contemplada na segurança de um teatro, sob
o olhar vigilante das câmeras, pois apenas do Teatro és merecedor!
Uma vez esgotados todos os valores do
mundo, te faço meus sinceros votos: que te realizes numa caixa preta, sem nunca
tomar o pátio de nossas vidas!
12.10.2014
Victor
Nenhum comentário:
Postar um comentário