quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Uma Poética do mijo.

Espetáculo: Zé.

Credenciais do autor da crítica: Victor Peixe - Ator

Quem é tolo o suficiente para dar ouvido a soluços?

Quem é este qualquer, a quem chamam de , que me recordo em fragmentos, em ausências?
Que após dias, semanas, que não está mais na esquina, sob uma marquise. Para onde terá ido? Como a permanência da sua falta me causa tanto incômodo?

E estes, que contam sua tola história, tão despidos em sua apaixonante entrega, a mercê do meu escracho, conhecem sua condição: meros títeres nas mãos de um manipulador obscuro? Também me causam desconforto qual uma multidão, na cadência de seus passos hipnóticos que de tão profundos e sincopados, em seus corações só pode bater algum poderoso relógio, capaz de abafar a rouquidão do lamento humano. Zé, teu choro jaz abafado por essa multidão de passos.

Compreendo ... de cada gesto que urra, ganho retalhos que em bricolage recompõe tua vida, a vida de um indigente; que definha, sucumbe em sua degradação moral, gesto sobre gesto.

Tudo em ti é incômodo Zé. Neste espaço que não permite a fuga, por uma hora não posso virar o rosto ou atravessar a rua ignorando tua existência. Uma hora é tudo que te permito . Por uma hora tenho a puta e o pervertido por companhia, por uma hora caminharei ao teu lado, atravessando esse cotidiano funesto e  degradante.

Até que te tornes uma lembrança, um mito, eco de um mundo desgraçado, até que perguntem “Matou por loucura, paixão ou insensatez?”.

Para onde vais agora ? Ora, te persigo por essas ruelas, onde a vida é algo mais que alguns trocados, onde a vida ganha o rubor das faces de qualquer vagabundo, tão úmida e apaixonante quanto a febre. Na crueza dessa imundície, impossível te ignorar. Afinal, que nome dar a isso que despedaça minha humanidade, transformando homens em bestas?

Por que me persegues ? Por que não te calas e aceita tua condição subalterna e medíocre? Entende, por fim, que apenas aqui te darei atenção. Na esquina próxima, ao me deparar com as verdades de um outro ébrio, não lhe darei bom dia nem palavra, não lhe darei moeda, antes cuspa no seu caminho!

Cala-te, ! Este teu lamento insone, perante estes poucos que ora escutam de nada te é útil, já que ao repousarem suas almas sob algum travesseiro, hão de te esquecer, eu asseguro! Teu choro engolido, tuas palavras balbuciadas, são ininteligíveis. É absurdo que ainda respires.

De olhos muito abertos e vivos, e em profundo torpor me obrigas (ou devo te chamar Maria ou, ainda, Capitão?) a enfrentar meu reflexo e contemplar quão asqueroso o ser humano é?! Não , não quero aceitar que vivas dentro de mim!

Tua sina é ser purgado, ridicularizado, tido por louco, engaiolado, tomado por peça a ser metodicamente contemplada na segurança de um teatro, sob o olhar vigilante das câmeras, pois apenas do Teatro és merecedor!
Uma vez esgotados todos os valores do mundo, te faço meus sinceros votos: que te realizes numa caixa preta, sem nunca tomar o pátio de nossas vidas!
12.10.2014
Victor

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