Por Edson Fernando
Em
meio à escassez de práticas artísticas diretamente ligadas ao postulado de um
teatro político militante em nossa cidade, toda experimentação que se volte a
este propósito é bem vinda e merece atenção, principalmente no tocante aos
meios pelos quais se organizam os elementos da encenação, pois parece ser este
o lugar que guarda o maior desafio para os encenadores contemporâneos, na
medida em que são provocados a pensar sua conjuntura histórica tomando como
parâmetros, princípios estéticos e poéticos de encenadores de um passado
recente. A maior referencia neste aspecto ainda é, sem dúvida, o pensamento e
prática do alemão Bertolt Brecht (1898 – 1956). É o que se passa com Zeca de uma cesta só, montagem do Grupo
de Teatro Universitário dirigida por Léo Ferreira. A filiação aos princípios de
Brecht é assumida explicitamente durante a apresentação da montagem e, por este
motivo, é que me permitirei tecer considerações a partir deste lugar, isto é, a
partir dos elementos norteadores e fundadores do que se convencionou chamar de
teatro épico brechtiano. Espero não incorrer num desenvolvimento de idéias
herméticas e acessíveis somente aos pesquisadores-artistas de teatro; mas este
é o risco que me cabe e que nesta crítica, aceito de bom grado.
Começo
apontando dois gestos importantes que se destacam, curiosa e respectivamente,
no início e final da montagem: a leitura de uma carta analítica e explicativa
sobre a própria montagem e o caixão de Zeca. O primeiro gesto nos indica que os
elementos poéticos da encenação se encontram em tensão aberta com os princípios
que a fundamentam. O que se passa é o seguinte: enquanto um atuante se dirige
diretamente ao público para proceder à leitura de uma carta explicitando os
motivos que deram origem a montagem teatral e seus propósitos enquanto reflexão
crítica de nossa realidade, os demais atuantes invadem a cena em coro
interrompendo, ou melhor, atrapalhando esta ação.
É
importante observar as instâncias de contrastes criados: em primeiro lugar
entre a condição do que lê a carta – isto é, aquele se assume como ator que
explica e reflete sobre a montagem, completamente desprovido de caracterização
e relação direta com a fábula que será apresentada – com a do coro que
atrapalha a ação – isto é, os atuantes na sua condição de representação dos
papeis da fábula. Em outras palavras, é o contraste entre o encenador na sua
condição mais assumidamente de pesquisador-artista e as criaturas em sua
condição absolutamente poética – as personagens. Neste embate, vence o coro que
num murmúrio crescente sufoca a voz do pesquisador-artista. Seria um indicativo
de que a montagem daria primazia aos elementos poéticos em detrimento dos princípios
formalistas estabelecidos no teatro épico de Brecht. Infelizmente não é o que
se passa durante a apresentação da montagem que, repetidas vezes, insiste em
nos defrontar com a formalização dos recursos, no intento também explicito, de
nos provocar uma reflexão crítica da obra – exemplo disto são as projeções de
textos absolutamente formais e acadêmicos que se interpolam as cenas a pretexto
de nos fazer refletir sobre a situação de Zeca. É fundamentalmente este
contraste que considero como tensão aberta entre os elementos da encenação e os
princípios que a fundamentam.
Outro
contraste interessante de se observar, ainda neste primeiro gesto da montagem,
se dá entre o discurso do que lê a carta e o discurso do coro. Novamente o
embate entre o discurso formal e categoricamente analítico e o discurso
poético. Nossa atenção é dividida entre esses dois pólos e somos solicitados a
escolher qual deles perseguir, dada a impossibilidade de acompanhar os dois ao
mesmo tempo. Sob este aspecto, os primeiros elementos do escracho na atuação
dos papéis do coro nos saltam os olhos e acabam por monopolizar nossa atenção,
em virtude do apelo cômico que provocam. Mais uma vez a indicação, ou o desejo,
de que a montagem tentaria equilibrar ou conduzir de modo poético nossa forma
de reflexão crítica. Para analisar com maior rigor esta questão é necessário
visitar os outros elementos da encenação á luz dos princípios brechtianos.
Primeiramente
uma visita a fábula. Encontramos na montagem a história de Zeca, uma empregada doméstica, mãe solteira de
três filhos, que mora no bairro do Guamá; no desenvolver da fábula disposta em
estrutura épica, isto é, com cenas em saltos e independentes, descobrimos que
ela veio do interior para a cidade para morar e trabalhar em uma casa de
família como doméstica; sofre abuso sexual do seu patrão e é expulsa da casa.
Sua mãe é evangélica e insiste para que a filha cuide da educação dos netos, principalmente
da neta para que a história não se repita com ela. O filho mais velho foi morto
quando tentava furtar o celular de uma policial.
Todos estes elementos e outros não citados
negligenciam um aspecto fundamental de uma fábula épica brechtiana: o “distanciar”
os acontecimentos apresentados. “Distanciar” numa abordagem épica brechtiana
significar subverter a situação natural ou a ordem dos acontecimentos,
furtando-lhe tudo que seja convencional para então provocar, por esta via,
espanto e curiosidade.
Não é o que vemos ao longo da fábula, pois toda
a situação retratada nos é muito familiar, isto é, muito próxima da nossa
realidade: o modo de falar popularesco atribuído a periferia da cidade com
todas as suas gírias, palavrões e pouca importância a concordância verbal e
nominal; os elementos estéticos estereotipados de uma festa de aparelhagem – o
DJ e as ledes; as personagens típicas e socialmente estereotipadas como o
homossexual ultra-afetado com seu linguajar peculiar, os policiais linha dura,
a evangélica conservadora e a mocinha sonhadora. Todos estes papeis povoam o
universo que conhecemos muito bem, que estamos familiarizados e que sem nenhum
tipo de tratamento pelo estranhamento dificilmente nos provocam reflexão
crítica, e sim reforçam os conceitos e/ou pré-conceitos já estabelecidos na
fábula e para além dela. O universo em
que se move Zeca, a protagonista da fábula, deste modo, não apresenta nenhum
elemento que nos faça estranhar a sua situação.
Esta proximidade e familiaridade com a
realidade retratada debilitam nossa capacidade de reflexão crítica, pois somos
agenciados pelo processo de identificação a reconhecer Zeca como vítima da sua
própria situação social. Não causa surpresa, neste sentido, que no final da
montagem quando o público é solicitado a opinar sobre o destino da protagonista
ele se manifeste por dar outra chance à ela, visto que Zeca contextualizada
como vítima não tem culpa das adversidades e tragédias de sua vida; não só não
tem culpa como não conseguirá mudar seu destino por sua própria vontade. Zeca
como fruto de uma realidade determinista não tem como escapar do destino cruel
e somente por força de uma intervenção da sorte poderá ter um futuro mais
promissor. O público decide, portanto, dar-lhe esta nova chance, agido assim
como um demiurgo do seu destino, motivado
pelos elementos emotivos e de identificação com a situação da protagonista.
Embora a
fábula em si não ofereça o “distanciar” necessário para provocar nossa reflexão
crítica, alguns elementos da encenação são estrategicamente colocados com este
propósito. Passo a analisá-los em seguida.
Primeiramente temos duas narradoras-debatedoras.
Elas se encontram no centro do palco trajando roupas neutras e se dirigem diretamente
ao publico, por diversas vezes, para comentar as cenas, pontuando categoricamente
reflexões críticas sobre o que assistimos. Suas intervenções reforçam a
estrutura épica da montagem; no entanto, deve-se observar com cuidado que o
teor de seus comentários vai estabelecendo uma sutil atmosfera dramática que reforça
a situação adversa de Zeca.
Em segundo lugar o uso das projeções dos textos
no fundo do cenário da casa de Zeca. Recurso bastante utilizado por Brecht, a
literalização da cena permite abrir um canal direto com o publico que é
solicitado a acompanhar as idéias dispostas em cartazes ou tabuletas. No caso
da montagem o uso é de projeções ao fundo do cenário. Duas questões para
refletirmos no uso deste elemento: os textos projetados beiram o didatismo
acadêmico, preocupando-se em apresentar ao público o propósito da montagem, o
pensamento do autor que fundamenta este propósito – Brecht – e o misticismo
envolto no teatro burguês que pretendem subverter. Não utilizam o recurso como
modo de comentar a cena, o que poderia nos possibilitar o distanciar dos
acontecimentos já anteriormente apontados como familiares. E aqui surge a
segunda questão: as projeções ocorrem no intervalo entre as cenas e não durante
as cenas, o que poderia potencializar o mesmo efeito já mencionado, isto é,
como comentário reflexivo da cena.
Isto remete a outro elemento curiosamente
utilizado na encenação: a repetição, por três vezes, da mesma cena. É muito
interessante observar como este processo de repetir a mesma cena proporciona –
fundamentalmente a atuante que desempenha a protagonista da fábula – o
historicizar os acontecimentos apresentados. Assim, acompanhamos a cena a
primeira vez com um olhar que nos faz perseguir naturalmente o desenlace da
cena; mas na segunda e, principalmente, na terceira repetição somos provocados
a encontrar elementos para além da fábula, posto que já sabemos exatamente o
que cada personagem irá dizer ou fazer. No entanto, na repetição das cenas nada
de novo nos é oferecido; exatamente aqui as projeções dos textos poderiam abrir
esta fissura proposital na fábula, com o intuito de comentá-la ou
problematizá-la para então, obter o efeito de distanciamento e estranhamento da
situação apresentada. Isso não ocorre.
Por fim, cumpri-me abordar o seguindo gesto
importante que identifiquei na montagem, isto é, o caixão de Zeca que surge no
final da montagem. O gesto sem dúvida, mais significativo e perturbador que
esta montagem apresenta. A partir dele instala-se uma problematização que
ultrapassa a fábula, a encenação e a caixa preta do teatro. O gesto é simples e
até previsível na cena final da montagem, mas potente e inquietante: os
atuantes entram carregando um caixão coberto com a bandeira do Brasil; as
atuantes que representam Zeca – na idade adulta e na adolescência –
aproximam-se dele, abrem-no e nos permitem ver que ele contém os alimentos da
cesta básica. Se compreendermos este gesto somente na dimensão da fábula
recairemos na apreensão do seu significado mais previsível e superficial, ou
seja, de que os projetos assistencialistas que distribuem cesta básica – que
perduram até hoje – escravizam e promovem a morte simbólica – dignidade humana
– daqueles que ainda dependem deste tipo de projeto para sobreviver.
Este gesto, no entanto, colocado para além da
dimensão da fábula nos confronta com nossa própria atitude de levar um quilo de
alimento como pagamento para assistir a montagem. E neste sentido, a produção
da montagem já apresenta este elemento problematizador para o publico quando determina
que a entrada se estabeleça pelo pagamento do ingresso e mais um quilo de
alimento não perecível. Ora, colaboramos e aceitamos esta prática sem nenhum
tipo de questionamento; neste sentido, a reflexão crítica deste tipo de prática
deveria começar antes mesmo de adentrar mos as portas do teatro; mas isso não
se estabelece e, portanto, não podemos deixar de nos reconhecermos como os
assassinos de uma Zeca que se encontra para além da fábula, ou melhor, de uma
Zeca que se encontra em nosso próprio meio.
Desnecessário, mais inevitável dizer, que a
alegoria da cesta básica estabelece vinculo direto com os tão propalados e
defendidos programas de assistência social do governo federal – dentre eles o
seu carro chefe, o Bolsa Família. O vinculo é inevitável, pois a lógica e a
natureza deste tipo de programa é a mesma: assistencialismo paternalista do
estado brasileiro. Por esta alegoria a
montagem nos provoca a estender a reflexão crítica sobre a distribuição de
cesta básica até o programa Bolsa Família: o que há de nefasto neste tipo de
programa? Por que soa reacionário qualquer crítica que se volte contra este
tipo de programa governamental? O que nos impede de reconhecer, neste tipo de
programa, a prática de um extermínio em massa da dignidade humana de milhões de
brasileiros?
Isso é absolutamente inquietante. Por isso
reconheço neste gesto uma vinculação genuinamente brechtiana, menos pelo
procedimento formal e sim muito mais pela questão provocativa que instaura para
além de todos os recursos da encenação.
Edson Fernando
28.10.2014
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