terça-feira, 28 de outubro de 2014

Na cesta de Zeca: considerações por um Teatro de reflexão crítica.

Por Edson Fernando
Em meio à escassez de práticas artísticas diretamente ligadas ao postulado de um teatro político militante em nossa cidade, toda experimentação que se volte a este propósito é bem vinda e merece atenção, principalmente no tocante aos meios pelos quais se organizam os elementos da encenação, pois parece ser este o lugar que guarda o maior desafio para os encenadores contemporâneos, na medida em que são provocados a pensar sua conjuntura histórica tomando como parâmetros, princípios estéticos e poéticos de encenadores de um passado recente. A maior referencia neste aspecto ainda é, sem dúvida, o pensamento e prática do alemão Bertolt Brecht (1898 – 1956). É o que se passa com Zeca de uma cesta só, montagem do Grupo de Teatro Universitário dirigida por Léo Ferreira. A filiação aos princípios de Brecht é assumida explicitamente durante a apresentação da montagem e, por este motivo, é que me permitirei tecer considerações a partir deste lugar, isto é, a partir dos elementos norteadores e fundadores do que se convencionou chamar de teatro épico brechtiano. Espero não incorrer num desenvolvimento de idéias herméticas e acessíveis somente aos pesquisadores-artistas de teatro; mas este é o risco que me cabe e que nesta crítica, aceito de bom grado.  
Começo apontando dois gestos importantes que se destacam, curiosa e respectivamente, no início e final da montagem: a leitura de uma carta analítica e explicativa sobre a própria montagem e o caixão de Zeca. O primeiro gesto nos indica que os elementos poéticos da encenação se encontram em tensão aberta com os princípios que a fundamentam. O que se passa é o seguinte: enquanto um atuante se dirige diretamente ao público para proceder à leitura de uma carta explicitando os motivos que deram origem a montagem teatral e seus propósitos enquanto reflexão crítica de nossa realidade, os demais atuantes invadem a cena em coro interrompendo, ou melhor, atrapalhando esta ação.
É importante observar as instâncias de contrastes criados: em primeiro lugar entre a condição do que lê a carta – isto é, aquele se assume como ator que explica e reflete sobre a montagem, completamente desprovido de caracterização e relação direta com a fábula que será apresentada – com a do coro que atrapalha a ação – isto é, os atuantes na sua condição de representação dos papeis da fábula. Em outras palavras, é o contraste entre o encenador na sua condição mais assumidamente de pesquisador-artista e as criaturas em sua condição absolutamente poética – as personagens. Neste embate, vence o coro que num murmúrio crescente sufoca a voz do pesquisador-artista. Seria um indicativo de que a montagem daria primazia aos elementos poéticos em detrimento dos princípios formalistas estabelecidos no teatro épico de Brecht. Infelizmente não é o que se passa durante a apresentação da montagem que, repetidas vezes, insiste em nos defrontar com a formalização dos recursos, no intento também explicito, de nos provocar uma reflexão crítica da obra – exemplo disto são as projeções de textos absolutamente formais e acadêmicos que se interpolam as cenas a pretexto de nos fazer refletir sobre a situação de Zeca. É fundamentalmente este contraste que considero como tensão aberta entre os elementos da encenação e os princípios que a fundamentam.
Outro contraste interessante de se observar, ainda neste primeiro gesto da montagem, se dá entre o discurso do que lê a carta e o discurso do coro. Novamente o embate entre o discurso formal e categoricamente analítico e o discurso poético. Nossa atenção é dividida entre esses dois pólos e somos solicitados a escolher qual deles perseguir, dada a impossibilidade de acompanhar os dois ao mesmo tempo. Sob este aspecto, os primeiros elementos do escracho na atuação dos papéis do coro nos saltam os olhos e acabam por monopolizar nossa atenção, em virtude do apelo cômico que provocam. Mais uma vez a indicação, ou o desejo, de que a montagem tentaria equilibrar ou conduzir de modo poético nossa forma de reflexão crítica. Para analisar com maior rigor esta questão é necessário visitar os outros elementos da encenação á luz dos princípios brechtianos.
Primeiramente uma visita a fábula. Encontramos na montagem a história de Zeca, uma empregada doméstica, mãe solteira de três filhos, que mora no bairro do Guamá; no desenvolver da fábula disposta em estrutura épica, isto é, com cenas em saltos e independentes, descobrimos que ela veio do interior para a cidade para morar e trabalhar em uma casa de família como doméstica; sofre abuso sexual do seu patrão e é expulsa da casa. Sua mãe é evangélica e insiste para que a filha cuide da educação dos netos, principalmente da neta para que a história não se repita com ela. O filho mais velho foi morto quando tentava furtar o celular de uma policial.
Todos estes elementos e outros não citados negligenciam um aspecto fundamental de uma fábula épica brechtiana: o “distanciar” os acontecimentos apresentados. “Distanciar” numa abordagem épica brechtiana significar subverter a situação natural ou a ordem dos acontecimentos, furtando-lhe tudo que seja convencional para então provocar, por esta via, espanto e curiosidade. 
Não é o que vemos ao longo da fábula, pois toda a situação retratada nos é muito familiar, isto é, muito próxima da nossa realidade: o modo de falar popularesco atribuído a periferia da cidade com todas as suas gírias, palavrões e pouca importância a concordância verbal e nominal; os elementos estéticos estereotipados de uma festa de aparelhagem – o DJ e as ledes; as personagens típicas e socialmente estereotipadas como o homossexual ultra-afetado com seu linguajar peculiar, os policiais linha dura, a evangélica conservadora e a mocinha sonhadora. Todos estes papeis povoam o universo que conhecemos muito bem, que estamos familiarizados e que sem nenhum tipo de tratamento pelo estranhamento dificilmente nos provocam reflexão crítica, e sim reforçam os conceitos e/ou pré-conceitos já estabelecidos na fábula e para além dela.  O universo em que se move Zeca, a protagonista da fábula, deste modo, não apresenta nenhum elemento que nos faça estranhar a sua situação.
Esta proximidade e familiaridade com a realidade retratada debilitam nossa capacidade de reflexão crítica, pois somos agenciados pelo processo de identificação a reconhecer Zeca como vítima da sua própria situação social. Não causa surpresa, neste sentido, que no final da montagem quando o público é solicitado a opinar sobre o destino da protagonista ele se manifeste por dar outra chance à ela, visto que Zeca contextualizada como vítima não tem culpa das adversidades e tragédias de sua vida; não só não tem culpa como não conseguirá mudar seu destino por sua própria vontade. Zeca como fruto de uma realidade determinista não tem como escapar do destino cruel e somente por força de uma intervenção da sorte poderá ter um futuro mais promissor. O público decide, portanto, dar-lhe esta nova chance, agido assim como um demiurgo do seu destino, motivado pelos elementos emotivos e de identificação com a situação da protagonista.
 Embora a fábula em si não ofereça o “distanciar” necessário para provocar nossa reflexão crítica, alguns elementos da encenação são estrategicamente colocados com este propósito. Passo a analisá-los em seguida.
Primeiramente temos duas narradoras-debatedoras. Elas se encontram no centro do palco trajando roupas neutras e se dirigem diretamente ao publico, por diversas vezes, para comentar as cenas, pontuando categoricamente reflexões críticas sobre o que assistimos. Suas intervenções reforçam a estrutura épica da montagem; no entanto, deve-se observar com cuidado que o teor de seus comentários vai estabelecendo uma sutil atmosfera dramática que reforça a situação adversa de Zeca.   
Em segundo lugar o uso das projeções dos textos no fundo do cenário da casa de Zeca. Recurso bastante utilizado por Brecht, a literalização da cena permite abrir um canal direto com o publico que é solicitado a acompanhar as idéias dispostas em cartazes ou tabuletas. No caso da montagem o uso é de projeções ao fundo do cenário. Duas questões para refletirmos no uso deste elemento: os textos projetados beiram o didatismo acadêmico, preocupando-se em apresentar ao público o propósito da montagem, o pensamento do autor que fundamenta este propósito – Brecht – e o misticismo envolto no teatro burguês que pretendem subverter. Não utilizam o recurso como modo de comentar a cena, o que poderia nos possibilitar o distanciar dos acontecimentos já anteriormente apontados como familiares. E aqui surge a segunda questão: as projeções ocorrem no intervalo entre as cenas e não durante as cenas, o que poderia potencializar o mesmo efeito já mencionado, isto é, como comentário reflexivo da cena.
Isto remete a outro elemento curiosamente utilizado na encenação: a repetição, por três vezes, da mesma cena. É muito interessante observar como este processo de repetir a mesma cena proporciona – fundamentalmente a atuante que desempenha a protagonista da fábula – o historicizar os acontecimentos apresentados. Assim, acompanhamos a cena a primeira vez com um olhar que nos faz perseguir naturalmente o desenlace da cena; mas na segunda e, principalmente, na terceira repetição somos provocados a encontrar elementos para além da fábula, posto que já sabemos exatamente o que cada personagem irá dizer ou fazer. No entanto, na repetição das cenas nada de novo nos é oferecido; exatamente aqui as projeções dos textos poderiam abrir esta fissura proposital na fábula, com o intuito de comentá-la ou problematizá-la para então, obter o efeito de distanciamento e estranhamento da situação apresentada. Isso não ocorre.
Por fim, cumpri-me abordar o seguindo gesto importante que identifiquei na montagem, isto é, o caixão de Zeca que surge no final da montagem. O gesto sem dúvida, mais significativo e perturbador que esta montagem apresenta. A partir dele instala-se uma problematização que ultrapassa a fábula, a encenação e a caixa preta do teatro. O gesto é simples e até previsível na cena final da montagem, mas potente e inquietante: os atuantes entram carregando um caixão coberto com a bandeira do Brasil; as atuantes que representam Zeca – na idade adulta e na adolescência – aproximam-se dele, abrem-no e nos permitem ver que ele contém os alimentos da cesta básica. Se compreendermos este gesto somente na dimensão da fábula recairemos na apreensão do seu significado mais previsível e superficial, ou seja, de que os projetos assistencialistas que distribuem cesta básica – que perduram até hoje – escravizam e promovem a morte simbólica – dignidade humana – daqueles que ainda dependem deste tipo de projeto para sobreviver.
Este gesto, no entanto, colocado para além da dimensão da fábula nos confronta com nossa própria atitude de levar um quilo de alimento como pagamento para assistir a montagem. E neste sentido, a produção da montagem já apresenta este elemento problematizador para o publico quando determina que a entrada se estabeleça pelo pagamento do ingresso e mais um quilo de alimento não perecível. Ora, colaboramos e aceitamos esta prática sem nenhum tipo de questionamento; neste sentido, a reflexão crítica deste tipo de prática deveria começar antes mesmo de adentrar mos as portas do teatro; mas isso não se estabelece e, portanto, não podemos deixar de nos reconhecermos como os assassinos de uma Zeca que se encontra para além da fábula, ou melhor, de uma Zeca que se encontra em nosso próprio meio.
Desnecessário, mais inevitável dizer, que a alegoria da cesta básica estabelece vinculo direto com os tão propalados e defendidos programas de assistência social do governo federal – dentre eles o seu carro chefe, o Bolsa Família. O vinculo é inevitável, pois a lógica e a natureza deste tipo de programa é a mesma: assistencialismo paternalista do estado brasileiro.  Por esta alegoria a montagem nos provoca a estender a reflexão crítica sobre a distribuição de cesta básica até o programa Bolsa Família: o que há de nefasto neste tipo de programa? Por que soa reacionário qualquer crítica que se volte contra este tipo de programa governamental? O que nos impede de reconhecer, neste tipo de programa, a prática de um extermínio em massa da dignidade humana de milhões de brasileiros?
Isso é absolutamente inquietante. Por isso reconheço neste gesto uma vinculação genuinamente brechtiana, menos pelo procedimento formal e sim muito mais pela questão provocativa que instaura para além de todos os recursos da encenação.   
Edson Fernando

28.10.2014

Nenhum comentário:

Postar um comentário