sábado, 20 de setembro de 2014

Varistagem com Plínio Marcos



Espetáculo: Barrela. 
Credenciais do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor Teatral.


Garoto de onze anos é dopado, maltratado e assassinado pelo próprio pai e madrasta. Jovem estudante é espancado e golpeado no rosto com uma lâmpada fluorescente, pelo simples fato de ser gay. Um dentista é queimado vivo dentro do próprio consultório por criminosos que buscavam dinheiro. Adolescente de dezesseis anos, proibido de jogar vídeo game, mata a facadas a própria avó dentro de casa. Menina de cinco anos morre depois de ser arremessada pelo pai e madrasta do sexto andar do prédio onde morava. Garoto de seis anos tem corpo arrastado no asfalto por sete quilômetros durante assalto ao veículo da mãe.

O que outrora poderiam ser bons argumentos para uma dramaturgia sem filtros literários hoje se confundem com a própria realidade. E tudo se torna ainda mais grave quando temos os dois maiores grupos de comunicação do estado disputando a preferência do leitor e utilizando-se de um marketing ardiloso que expõe, sem nenhum constrangimento em suas capas dos noticiários policiais, fotos de gente em situação degradante - dos acidentes de trânsito aos mutilados por selvageria criminosa.  O que nos resta a fazer, então, quando a realidade insiste em nos fazer acreditar que seu roteiro trágico, cruel e bizarro deixou de ser ficção? 

Esta parece ser uma questão imperiosa para os que hoje se aventuram com a dramaturgia de Plínio Marcos. De traço dramatúrgico caracteristicamente seco e propositadamente fiel a situação-limite que retrata, o autor da cidade de Santos não se esforça por embelezar a fábula e desenvolve o gênero dramático, pela primeira vez no Brasil, pela ótica do marginal, denunciando o processo de coisificação que atravessa todos aqueles que são alijados de sua humanidade.  

O grupo Os Varisteiros tomou pra si este desafio: encarar a dramaturgia de Plínio, confrontando-o com a realidade de violência gratuita e desmedida citada anteriormente. O texto escolhido não poderia oferecer maior dificuldade: Barrela, o drama inaugural na carreira do autor que retrata o caso real de um garoto currado na cadeia, ocorrido em 1958; o garoto se vinga dois dias depois matando quatro dos seus algozes. A noticia que na época chocou o Palhaço Frajola - alcunha que o mesmo assumiu quando trabalhava no circo - hoje não alcançaria a mesma repercussão chocante na população ou mesmo espaço relevante na imprensa local acostumada a explorar casos mais sanguinários e  brutais.

O primeiro mérito dos Varisteiros, portanto, encontra-se exatamente no fato de não fazer da temática central da obra - o estupro do garoto na prisão -  a questão principal que move a montagem. O que se coloca em primeiro plano, ao invés disso, é a situação de animalização dos encarcerados e seus dramas individuais. Acompanhamos as personagens durante uma noite na cela da cadeia e verificamos como este lugar inóspito furta o pouco de dignidade que ainda pode restar num ser humano; importante destacar que não estou me referindo ao ocorrido com o garoto barrelado, mas sim ao estado de perplexidade de Bereco - personagem considerada o "xerife" da cela - com o desfecho trágico do Portuga ao final da peça; é o momento do confronto com o espelho - tomada de consciência da personagem - revelando-lhe aquela carcaça de homem que sobrou diante da situação atroz.    

Esta dimensão proposta pela montagem está diretamente ligada a relação palco-plateia desenvolvida pela encenação: uma arena intimista numa sala razoavelmente pequena - dependências da Casa Dirigível Espaço Cultural - com todos os espectadores colocados sentados no chão nu, tendo todas as paredes cobertas com panadas pretas. Assim disposta, o espaço da montagem nos coloca dentro da cela e não precisamos de muito tempo para sentir o desconforto, próprio deste lugar: o calor vai se impondo gradativamente; a dor na bunda e nas costas por estarmos sentados no chão duro; a sensação de clausura pela ausência de janelas e de luz externa.

É curioso observar, no entanto, o gesto que o Carcereiro realiza durante boa parte da montagem: caminha solenemente demarcando um quadrado em torno dos demais atuantes; para em cada canto do quadrado e ergue até a altura da sua testa o molho de chaves que carrega realizando movimentação ritualizada; vai construindo assim, alegoricamente, as grades invisíveis que aprisionam as personagens. Temos, aqui então o que considero ser uma fissura na encenação, pois se a relação palco-plateia mencionada anteriormente se presta a nos colocar dentro da cela, ao estabelecer a alegoria da cela dos encarcerados por meio deste gesto do Carcereiro nos é remetida a ideia de uma cela dentro de uma cela. Este fato encontra-se reforçado no modo como todos os atuantes interpretam seus papeis: trabalhando na perspectiva da quarta parede, isto é, sem estabelecer nenhum contato direto ou indireto com os espectadores. E é exatamente aqui que a montagem perde em intensidade dramática, pois, ao nos apartar do drama somos colocados na condição de meros voyeurs dos acontecimentos. O curioso é que estamos tão perto de tudo, sentimos os respingos de suor - e não são poucos - dos atuantes, mas somos ignorados pelos olhares cheios de vida de todas as personagens.          

Felizmente trata-se de uma fissura na encenação e pode ser avaliada pelos Varisteiros a partir dos elementos propulsores que fundam a poética desta montagem. E, sem dúvida nenhuma, um destes elementos encontra-se no trabalho vigoroso e pre-expressivo dos  atuantes.  A encenação, aliás, utiliza mínimos recursos de iluminação, pouquíssimos elementos cenográficos e figurino realista, pois, deposita toda sua confiança na qualidade de presença de todos os seus atuantes.  São os corpos dilatados dos seis atuantes que nos envolvem no drama e nos possibilitam ultrapassar a dimensão dramatúrgica do texto de Plínio. 

Desde o início esta esfera pre-expressiva está posta: enquanto todos dormem no chão da cela o atuante que interpreta o Portuga encontra-se em absoluta qualidade de atenção com olhar fixo a frente, respiração firme, controlada e compassada e base corporal extra-cotidiana. Ao longo da apresentação os demais atuantes demonstram a mesma qualidade na interpretação - tanto nos momentos de contracena direta onde os olhares se confrontam numa espécie de embate derradeiro, quanto nos momentos de contracena indireta onde cada atuante se mantém ocupado na escuta do contexto da cena sem desperdiçar energia com movimentações desnecessárias e aleatórias. O conjunto das ações dramáticas, desse modo, mantém um calculo de qualidade de presença milimétrico tornando a fábula intensa para além de seu conteúdo. E isto é que nos mantêm ligados e instigados a perseguir o desenrolar dos acontecimentos, pois, vamos sendo alimentados com a sensação de que a qualquer momento a situação ultrapassará o limite do suportável.

O mérito, neste caso, deve ser compartilhado com a direção da montagem que apresenta-se segura na condução do ritmo equilibrado de clímax e relaxamento do drama - característica peculiar na dramaturgia pliniana. Perseguindo a alternância destes estados - clímax e relaxamento do drama - ao longo da montagem, o diretor Maycon Douglas porta-se como um maestro decifrando e regendo as partituras da obra. O trabalho, desse modo, consiste em administrar tanto os elementos colocados na própria dramaturgia de Plínio, quanto o trabalho pre-expressivo dos atuantes.  

Uma última questão, que remete a primeira suscitada nesta crítica, refere-se aos motivos de se visitar a primeira obra dramatúrgica de Plínio. Embora, mereça destaque pelos elementos aqui apontados a montagem oferece apenas pistas para a questão: o que desejo discutir e comunicar ao montar Barrela, de Plínio Marcos? A questão parece permanecer aprisionada na cela criada pelo gesto do Carcereiro. E uma das pistas mais valiosas me parece encontrar-se exatamente no outro gesto significativo da montagem: o atuante que interpreta o Carcereiro é o mesmo que interpreta o Garoto que será currado. Temos assim, a possibilidade de pensar as duas faces da situação-limite da peça fugindo à lógica da vitimização dos encarcerados, pois aquele que cria a cela - o Carcereiro - é o mesmo que sofrerá as consequências dos dispositivos de poder instalados dentro da cela. É uma provocação muito interessante, mas que esbarra nos limites das pistas oferecidas pela montagem. O caminho talvez seja explorar mais a dimensão gestual da peça, apropriando-se dos seus elementos mais significativos e fazendo-os interagir com os espectadores revisando, portanto, a relação palco-plateia.   

Edson Fernando

20.09.2014

domingo, 14 de setembro de 2014

Palhaços Surdos: entre a Inclusão e a Arte.

Espetáculo: Isso é um absurdo.
Crítica produzida por Edson Fernando, Ator e Diretor Teatral.
O debate sobre os direitos civis tem conquistado cada vez mais espaço na atualidade. A luta de diversos grupos minoritários – assim denominados pela sociologia, por sua posição subordinada aos interesses da população majoritária de uma sociedade – felizmente vem se revertendo, gradativamente, em conquistas expressas na forma da lei. O embate gerado por estas demandas – as “minorias” – proporciona o exercício para o amadurecimento de uma democracia ainda muito fragilizada, como a que temos no Brasil. A fragilidade de nosso regime é facilmente detectada quando discussões legítimas como a questão da igualdade racial descamba para uma forma de reacionarismo que coloca em xeque um dos direitos mais invioláveis de um regime genuinamente democrático, isto é, a liberdade de expressão. O lugar da arte nesta conjuntura é a que se vê mais ameaçada, pois se sente obrigada ou constrangida a tratar de questões delicadas, como as suscitadas pelos grupos minoritários, de forma limitada pela ditadura do pensamento politicamente correto. Qual o lugar e o papel da arte no combate a esta postura ameaçadora? É possível conciliar arte com um conteúdo oriundo das demandas das minorias? Se sim, como evitar uma arte de conteúdo panfletário e ideológico?    
Fui provocado a estas reflexões ao conferir o trabalho da Cia Mãos Livres, no espetáculo teatral Isso é um absurdo. A companhia formada quase que exclusivamente por surdos, ou melhor, por Palhaços Surdos – como eles mesmos se autodenominam –, trás nesta montagem a discussão da inclusão dos deficientes e em particular os deficientes auditivos. O título da montagem deixa em evidência a sensação de indignação diante da realidade vivida por esta minoria. No entanto, a obra oscila entre a questão da inclusão e o livre exercício da comicidade silenciosa da linguagem genuinamente clownesca. É sobre esta oscilação que me permito inferir alguns pensamentos.
Primeiramente sobre a questão da linguagem desenvolvida e exercitada pela Cia: Os cinco atores em cena assumem a mascara do Clow e não despropositadamente trazem no repertório dos esquetes que compõem o espetáculo, números que se tornaram clássicos de circo. Esta opção – a mascara do Clow – aponta claramente para o domínio da linguagem não verbal, para o domínio de uma linguagem que exercita a comunicação com o espectador para além dos códigos fonéticos, que explora a expressividade corporal e que se funda no campo da linguagem gestual. Nada mais natural, pois se lembrarmos que dos cinco atuantes apenas uma é ouvinte, certamente compreenderemos que a linguagem não verbalizada é uma condicionante no processo criativo da Cia. É neste domínio que a montagem ganha em vitalidade e interação com o público. Sendo o gesto pouco falsificável, como nos afirma Walter Benjamim, a linguagem que ele funda com o receptor – neste caso o espectador – é carregada de universalidade e suplanta as diferenças numa platéia de ouvintes e surdos.
É de causar estranheza, portanto, que o primeiro esquete traga exatamente a única atuante ouvinte conduzindo a situação com linguagem oralizada. O esquete retrata a situação de alunos surdos numa aula de matemática com uma professora que não domina a LIBRAS. Fica claro que o mais importante aqui é demonstrar a situação de opressão vivenciada por este grupo minoritário e, neste sentido, o esquete com seu paradidatismo metódico beira o panfletarismo ideológico.
É curioso observar ainda que o final deste esquete trás novamente a mesma professora do início agora adotando o uso da LIBRAS. Adotando a Língua Brasileira de Sinais como intermediação com seus alunos surdos a professora, mesmo sendo ouvinte, não pronuncia sequer uma única palavra; é como se ela tivesse desaprendido a falar. Observo isso como uma incoerência dramatúrgica, pois se no início do esquete seu comportamento funda uma relação com os outros papéis e com o público pautado pela linguagem oral, no final do esquete por mais que ela tenha aprendido a forma adequada de se comunicar com os alunos surdos ela não desaprendeu a falar e nem se tornou uma professora surda, mas tão somente alguém com uma competência e habilidade bilíngüe.
Poderíamos contra-argumentar que, neste caso, ela não fala, pois mantém a comunicação na língua de domínio dos surdos. No entanto, o jogo dramatúrgico desde o início do esquete envolve não somente os alunos surdos, mas também e com o mesmo grau de importância, o público composto por surdos e ouvintes. Por isso considero uma incoerência dramatúrgica.
Isso tudo poderia ser evitado se o esquete, na integra, fosse desenvolvido com a linguagem gestual. Atentem novamente para o fato da linguagem gestual transpor o limite entre ouvintes e surdos, pois sua natureza comunicativa funda-se na universalidade do gesto. Isso pode ser facilmente verificável nos esquetes do equilibrista, do mágico, do duelo entre os cowboys e do palhaço que chora no público. Acompanhamos a narrativa destes esquetes, nos divertimos muito com as situações cômicas exploradas e sem a necessidade de nenhuma palavra ou sinal em LIBRAS.
Ora, então me vem a questão: isto não seria uma forma de inclusão? Por que acreditar que só estou tocando na questão da inclusão nos esquetes em que o tema encontra-se explícito? A inclusão como conteúdo ou a inclusão a partir da forma?
É interessante observar que outros dois esquetes abordam o tema da inclusão de diferentes modos dentro espetáculo: a cena do político e a cena do cadeirante. A primeira recorre ao uso de uma voz em off para contextualizar a situação – tradução dos sinais em LIBRAS; a última sustenta-se inteiramente no desenvolvimento da linguagem gestual. Temos então, na cena do cadeirante um momento impar do espetáculo: a abordagem do tema da inclusão – enquanto conteúdo dramatúrgico – perfeitamente alinhado e desenvolvido com uma forma que não privilegia nem ouvintes e nem surdos, portanto, uma forma inclusiva, exatamente enquanto forma.
O esquete final nos presenteia com um número de Cleber Couto dublando e performando Michael Jackson. Esta cena arremata o espetáculo nos mostrando de modo bastante simples e direto que podemos e devemos tratar de temas delicados como os das minorias sem ceder aos melindres do pensamento politicamente correto: vemos Cleber, um surdo, cantando e dançando sem nenhum constrangimento; ele não canta fazendo sinais em LIBRAS, simplesmente canta e dança deixando-se irradiar pela vibração desta forma de sentir e pulsar a arte; neste momento não importa se é surdo ou ouvinte, é simplesmente humano; e somos tocados e contagiados por esta dimensão humana que nos é acionada e que cada vez mais se torna frágil e difícil de se cativar dentro de nós. Ato tão cândido conseguido por Cleber que pode passar despercebido aos olhares mais preocupados na construção de um discurso polido com uma retórica de defesa dos direitos civis, mas que não passa de demagogia barata que reforça os laços de preconceito que nos mantêm separados.        
14.09.2014

Edson Fernando

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Vamos á feira!

Espetáculo: O Auto da Feira.
Crítica produzida por Geane Oliveira, Graduanda em Licenciatura em Teatro / UFPA. 

O espetáculo o Auto da Feira encenado pelo Grupo de teatro da Unipop, tendo como dramaturgia uma adaptação da peça de Gil Vicente, traz ao palco uma feira onde não são vendidas coisas materiais e sim a troca de malfeitos por virtudes, mas esta feira é abalada pelo surgimento do Diabo, o qual tem como intenção vender “pecados”.  É neste contexto que a peça presenteia o espectador com um trabalho que em termos de visualidade não deixa a desejar.
Os personagens trazem no corpo registros que deixam clara personalidade de cada um, no entanto ao que se refere a encenação em alguns momentos é desinteressante, causando um certo desconforto no espectador que busca encontrar algo que lhe ajude a compreender as cenas. A comicidade é um forte traço do espetáculo, mas em muitos momentos a maneira como o texto é dado faz com que essa comicidade passe despercebida pelo espectador – não seria o caso de dar o texto de maneira lenta, e sim compreensiva. Outro fator que incomodava em cena era o excesso de personagens que não tinham ligação com a cena, sendo assim estes faziam apenas uma figuração a qual deixava o trabalho “sujo”.
Nas peças de Gil Vicente é evidente as criticas a sociedade, e é nesse contexto que noto este trabalho sendo pautado, existem cenas em que se fala das mazelas da sociedade como forma de denúncia, o personagem que tem esta função é o Diabo, esta denúncia vem através de proposta que o mesmo faz ao público, e mesmo havendo a relação de disputa entre céu e inferno é evidenciada a decadência da sociedade dentro do atual  contexto político do nosso país, principalmente ao que se refere as promessas realizadas nas propagandas políticas.
 É utilizado na cena como condutores de ideias bonecos (mamulengos), e atores com máscaras da commedia dell’arte, estas cenas constroem outra atmosfera ao trabalho, deixando através dos bonecos o texto de forma mais compreensível e permitindo um resgate do exagero que em cenas anteriores é disperso por uma falta de jogo. Além dos elementos já citados, a sonoplastia é composta de sons produzidos a partir de instrumentos de percussão e é uma forte condutora para o jogo entre os personagens.
O conjunto desde trabalho é encantador, no entanto seria interessante que houvesse mais provocações ao público, as criticas feitas poderiam ser mais exploradas, causando maiores reflexões a respeito do sistema que nos envolve e sobre tudo expondo o comodismo ao qual estamos abraçados, sendo assim havendo uma maior exploração das idéias fundadoras do espetáculo.    
Geane Oliveira
11.09.2014  


quarta-feira, 10 de setembro de 2014

AUTO-PODER EM AUTO DA FEIRA

Peça: Auto da feira
Crítica produzida pela Prof.ª Msc. Silvia Luz

Atmosfera calma e familiar era o colorido da feira do Ver-o-peso em tempos de Círio de Nazaré, o cenário era de uma feira diferente. A peça era “O auto da feira”, encenada pelo grupo de teatro da UNIPOP. O texto de Gil Vicente foi adaptado por Hudson Andrade e Carlos Corrêa. Com o olhar curioso e memória voltada aos textos de Gil Vicente, os tipos sociais presentes na peça, eram os que datavam do século XVI, mas que cabe como uma luva em pleno século XXI – nobreza, clero e povo. Sabemo-nos que estas classes primam pelo bom caráter e virtudes, em oposição a incansável busca pelo poder, este advindo do dinheiro. Esta busca enreda os personagens presentes no auto – Mercúrio, Roma, Tempo, Serafim e Diabo a utilizarem de meios nada éticos em busca dos seus objetivos.
O jogo cênico com a plateia começou empatado, atuantes e espectadores, esperavam para quem ia começar o jogo, ou melhor, a feira. Diante da falta de jogo inicial a apresentação ficou no plano visual, cenário, figurinos e objetos cênicos que compunham uma feira onírica e no plano não terreno, talvez. Par ou ímpar? O personagem Mercúrio ordena a feira que não é um espaço comercial qualquer, mas um espaço determinante para que os personagens possam comprar ora as virtudes “vendidas” pelo anjo, ora as “torpezas” vendidas na Tenda do Diabo e quase que despercebido dois bonecos dialogavam sobre suas esposas que estavam fazendo a feira.
Dependendo da lábia do vendedor o produto era vendido ou não. Agora o que devemos comprar, brincos ou Gentilezas? Este é momento que põe em cheque o livre arbítrio, onde se revela um tempo atual, no tempo em que as pessoas tinham seus destinos ordenados por dogmas religiosos, os mesmos de sempre, um deles é o pobre obedecer quem tem o poder. Na peça a nobreza representada pela personagem Roma, que demonstrou está alheia à realidade atual, ditando regras que ela mesma não cumpre, prova disso é sua escrava que fica acorrentada em seu braço, sendo liberta por uma crença popular: um banho de quebra corrente, ou algo semelhante, vendido pelo Diabo que engana a senhora.
Aproveito e faço um contraponto com o nosso momento eleitoral em relação aos candidatos, mas o importante agora não é dizer que esta realidade desigual é secular, que “pau que nasce torto nunca se endireita” ou “filho de peixe peixinho é”. O mais intrigante que quem abre os olhos para esta realidade é o próprio Diabo, ele invoca os espectadores a uma reflexão de seus próprios atos enquanto cidadão, levando-os a ter noção de que o caráter que possuem não é questão de destino, mas de livre arbítrio, sendo cada um responsável por seus atos.
Nos autos de Gil Vicente o alicerce basicamente é a luta do bem contra o mal, mas aí eu pergunto, será que ainda dá pra dividir os lados? Dos personagens presentes na peça, quais são do bem e do mal?  Ou tudo depende de qual lado você está? O texto apresentado teve adaptações que foram postas de uma forma consistente no que tange a realidade atual, revelou as mazelas sociais ludibriadas pela hipocrisia humana.
O personagem Mercúrio é um exemplo disso quando enumera suas qualidades de mercador e impõe uma feira, não mais em Portugal, mas em Belém do Pará. Vejo este personagem como um político atual, mas que traz uma herança velha, a corrupção em seus objetivos. A peça em um determinado momento nos remete a um templo sagrado, exatamente naquele momento “santo”, o da oferta. Quando eficientemente o diretor Alexandre Luz, usa este momento para arrecadar dinheiro para ajudar uma pobre senhora que fora vítima do Diabo na feira das virtudes. O elenco resolve passar as sacolinhas feitas nos moldes das igrejas atuais, na famosa rodada de chapéu. Neste exato momento mais uma vez o personagem Diabo apronta e leva a sacolinha do dinheiro. Esse ato é típico de um mau caráter, mas que atualmente roubar uns trocados não é pecado, furar fila não é falta de ética, sentar no assento reservado ao idoso é legal, que quem não passa o outro para trás é besta. O Diabo revela que para ser desonesto basta à pessoa ser obcecada pela riqueza para usar de artifícios mais sujos possíveis para conseguir o que quer.
Roma vê o Serafim como anódino, um alívio para o tormento que tanto a assola. A peça revela nos personagens Tempo e Serafim, personagens que zelam por um valor ético e moral, enquanto o Diabo, o espertalhão que abusa das fragilidades dos seus clientes, aponta os pecados ocultos dos religiosos. Estes personagens revelam que os representantes da igreja que insistem em ditar regras, mas que nem eles e seus fiéis escudeiros são capazes de cumprir o que pregam. O interessante da apresentação que apesar de não ter gerado um jogo cênico no ritmo que a feira pedia, ficou claro o bem e o mal nas atuações de Caroline Dominguez e Vanda Lopes, respectivamente Serafim e Diabo, quando o anjo desiste de compreender o porquê das pessoas quererem somente as coisas materiais e o Diabo quando tudo que oferece tem alguém que compre, isso nos mostra que nós também nos interessamos apenas por aquilo que satisfaz as nossas necessidades imediatas, ao invés de se preocupar com os outros.

Silvia Luz
10.09.2014

sábado, 6 de setembro de 2014

A Feira sem Farsa ou a Farsa sem Feira?

Espetáculo: O Auto da Feira.

Credenciais do autor da crítica: Edson Fernando - Ator e diretor Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO DE ANIMADORES DE CAIXA e como pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuantes.

Começo alertado para a possível categorização-problema sugerida no título desta crítica. O alerta serve para não incorrermos no equívoco de rotularmos a montagem teatral apresentada pelo Grupo da Unipop com um ou outro adjetivo categórico. O Auto da Feira apresentado por este grupo – que recebe a adaptação do texto de Gil Vicente realizada pelos dramaturgos Hudson Andrade e Carlos Correia Santos – a rigor não pode ser definido nem como uma “Feira sem Farsa” e nem como uma “Farsa sem Feira”, mas antes como um lugar eqüidistante entre estes dois pólos. O título, portanto, traz uma provocação para pensarmos a partir deste lugar intermediário que se plenifica na encenação proposta e, fundamentalmente, no trabalho dos atuantes. Assim sendo, usarei estes pólos como parâmetro para este pequeno exercício de impressão crítica.
A montagem começa tímida: depois de um pequeno cortejo com o elenco entoando uma canção sobre a “feira de virtudes” que se estabelecerá no local da apresentação e que percorre os arredores da semi-arena localizada no Memorial dos Povos Indígenas no Complexo Ver-o-Rio, temos propriamente o início da apresentação. Mercúrio é o personagem que abre o prólogo inicial contextualizando a trama e convidando à cena os dois principais feirantes: Tempo e Serafim. Tudo se passa numa atmosfera celestial, pois afinal se trata de uma feira de virtudes. O modo delicadamente poético como tudo se estabelece neste início de apresentação (a visualidade dos elementos de cena, a cenografia, os figurinos, a sonoplastia acústica e, fundamentalmente, o modo como estes três atuantes desenvolvem seu trabalho) nós levam para longe da agitação e inquietude peculiares a qualquer feira de nossa cidade. Estamos, portanto, tendendo para o pólo da “Farsa sem Feira”, isto é, os papéis que até então dominam a cena (Mercúrio, Tempo e Serafim), embora tenham sua constituição comungando dos elementos farsescos – neste caso a constituição corporal que recorre à elaboração exagerada do gestual e o uso de caretas – não instituem o alvoroço e o clima de balburdia de uma feira. O clima de quietude que se passa até a entrada do Capeta – típico personagem de um auto – chega a incomodar pela falta de jogo com a platéia (os “clientes da feira”). 
É interessante observar como a encenação vai investindo no pólo oposto – “Feira sem Farsa” – exatamente a partir da entrada do Capeta, uma espécie de feirante inescrupuloso que assume toda a carga moral negativa da trama fazendo o contraponto com as personagens “virtuosas”, ou pelo menos com aqueles que negociam a venda das virtudes (Mercúrio, Tempo e Serafim). Boa parte do êxito, neste sentido, deve-se a atriz que interpreta o papel, Vanda Lopez. Experiente, a atuante tem boa desenvoltura na construção corporalmente farsesca de seu papel: burlesco, caricato e levemente grotesco. O jogo com a platéia vai se estabelecendo numa crescente a partir da entrada desta personagem, responsável pelo contraponto que nos possibilita refletir sobre a questão central que move a montagem: a aquisição ou não de virtudes morais. Curioso notar como o trabalho desta atuante embora notadamente farsesco não recai no exagero do gênero e, por isso, considero que ela mais institui o clima de feira do que propriamente o gênero Farsa.
Sobre a questão central da montagem – a aquisição ou não de virtudes morais – o assunto não poderia ter melhor ocasião para ser visitado do que o momento de eleições presidenciais em que vivemos. O esvaziamento das questões éticas, tanto no plano nacional quanto local – nos dá o diagnóstico de que os produtos vendidos na “feira de virtudes” da montagem caíram há muito tempo em desuso em nosso mundo real por parte não somente dos candidatos, mas também do próprio eleitor que vislumbra o momento do pleito como possibilidade para levar alguma vantagem particular – seja ganhando um trocado nas famigeradas bandeiradas de esquina, na venda do voto por cesta básica, medicamento ou carrada de aterro ou num possível cargo ao lado do candidato eleito. Desse modo, não é difícil perceber a verossimilhança que a montagem nos propõe. Em particular, destaco os produtos oferecidos pelo Capeta: toda sorte de falsificação e embustes possíveis para se levar vantagem no dia a dia de uma sociedade corrompida e corruptível como a nossa. Prova inconteste disso foi o “Diploma de Adevogado” que o Capeta me ofereceu, talvez de mesma origem que o do excelentíssimo ex-prefeito de Belém e agora candidato ao senado federal, Duciomar Costa, só que este último tem um de médico.   
 Retomando o raciocínio para o desenvolvimento da encenação o clima de feira vai ganhando contornos cada vez mais significativos na medida em que os outros personagens popularescos vão ganhando espaço na trama. Na medida em que isso ocorre a platéia vai se sentindo mais atraída pro interior da fábula; a montagem ganha em vigor e ritmo atingindo o clímax na cena em que é necessário recuperar o dinheiro perdido por uma das personagens trapaceadas pelo Capeta. Merece destaque a solução cênica encontrada para se resolver este conflito: a tradicional rodada do chapéu com o público presente. Tal solução estabelece um elo perfeito entre a fábula e o nosso mundo real e novamente aponta para este lugar comum entre os dois universos distintos, mas com semelhanças tragicamente idênticas. 
E para finalizar o raciocínio que estabeleci no início do texto a partir dos pólos que vão da “Farsa sem Feira” – início da montagem – até a “Feira sem Farsa” – do meio até o final – necessito elencar os outros elementos que embora sejam ferramentas da Farsa não se instituem como tal na montagem. São eles: uso das máscaras ou meia-máscara, linguajar das personagens popularescas, expressões faciais caricatas, gestualidade dilatada. Penso que todos estes elementos são trabalhados numa freqüência de menor intensidade que os desconectam propriamente da farsa enquanto gênero, muito mais propenso aos histrionismo e obscenidade propositadamente carregada. O mérito, neste caso, pode ser creditado em boa parte a direção do trabalho que não permite o uso excessivo de improvisos – os famosos “cacos” na gíria teatral – recurso invariavelmente recorrente em quem pretende provocar o riso a todo e qualquer custo. Mas devo também frisar o trabalho de adaptação do texto de Gil Vicente para nosso contexto local. Hudson e Carlos trabalham com uma dramaturgia que sem recorrer aos clichês paraoaras consegue aproximar bastante a obra para nosso contexto familiar.   
Edson Fernando

06.09.2014