sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Terra, fogo, água e ar – Por Leonel Ferreira.

Pachiculimba
Criação: Usina
Autoria da crítica: Leonel Ferreira. Ator, Diretor e Educador

Já acompanho o Usina desde o final da década de 1980 quando na Praça da República apresentavam o espetáculo “Farsas Medievais”.  Assisti quase todos os espetáculos produzidos pelo grupo, tanto os de salas convencionais como os de rua e porão. O Usina em mais de seus 20 anos de fazer teatral tem na pesquisa, na experimentação cênica e no discurso político uma das suas marcas mais potentes. 
Alberto Silva Neto assina as direções dos espetáculos “Tambor de Água”, “Paresquei”, “Eutanázio e o princípio do mundo e “Solos de Marajó” onde se percebe o exercício da construção de uma dramaturgia centrada no homem amazônico, em suas memórias e costumes. Em “Solos de Marajó” surge a parceria com Claudio Barros, ator oriundo dos grupos Experiência e Cuíra. Falo parceria porque somente quem já dirigiu um monólogo talvez compreenda a dimensão desta palavra, é um exercício de extrema generosidade. Assim deveria ser as relações entre as pessoas em todas as esferas, mas...
Ainda bem que existe o fazer teatral de algumas pessoas que generosamente abrem sua morada, sala, quintal para compartilhar os seus tesouros. “Pachiculimba”, último trabalho apresentado pelo Usina, repete a parceria entre Alberto Silva Neto e Claudio Barros no que chamo de exercício pleno dos sentidos e da magnitude do saber tradicional do homem ligado a terra e aos seus mistérios. Não se trata de um espetáculo, não há release a respeito do que se vai assistir, não há um teatro, praça, porão como já se viu em montagens anteriores do grupo, mas sim o quintal da agradável casa de Alberto Silva Neto, na Ilha de Mosqueiro, na praia do Paraíso. Ali a natureza impera e mesmo com todo o larelare de quem vai chegando na casa de um amigo, logo o ambiente fala mais alto, os passarinhos, como que ensaiados para aquele evento dão o tom do lugar. Ali é um lugar raro, que já foi comum, mas hoje é santuário.
O quintal com suas árvores e plantas, o céu num azul esplêndido de outubro amazônico, os pássaros (mais uma vez), o som do vento compõem o cenário daquele ambiente. Não precisa de mais nada, de nenhum efeito ou truque cenográfico. Nada é mais perfeito que a natureza e rente a terra em bancos e esteiras o público se acomoda para assistir a performance de Claudio Barros. Mas que personagem é ele? Uma entidade espiritual? Um monge? Um xamã? Não interessa! O que o importa é o sentido das suas palavras ditas de maneira gutural e pausadamente. Ele traz um carrinho de mão com tapetes coloridos feitos em tricô. Há também um terçado e um vaso com uma planta num vaso. Descalço ele pisa o chão de barro daquele quintal. Há um peso em cada frase dita por ele, mas também há beleza e suavidade... Claudio Melo, faz uma delicada participação produzindo efeitos sonoros e percussivos que dialogam com a encenação.
Num determinado momento o que se houve é apenas os sons do lugar e Claudio Barros reage aos sons de passarinhos, cães, cigarras numa dança pessoal que não irá se repetir no dia seguinte. As cigarras cantam e anunciam o fim de mais um dia e início de mais uma noite. O sol vai se pondo e o breu vai tomando conta do quintal. Então uma fogueira é acesa por Claudio Barros e fazendo uso de uma linguagem inventada ou dialeto indígena, não importa, o que se vê é um homem lamentando, chorando a perda de algo que fica na imaginação de quem assiste seu drama. Por quem chora o pobre homem? A vontade que dá e de levantar do assento e acolher num abraço seu corpo miúdo. Num instante tudo se transforma em fúria, Claudio Barros, agora um xamã (?), bate o terçado contra o carro de mão e o choque entre os metais sublinham a força daquele momento. Não há alegria na dor, não há beleza na perda. Me lembrei de Tuira Kayapó com seu terçado que lambeu a cara do presidente da Eletronorte para impedir a construção da usina de Belo Monte em 1989... Os fatos se repetem, o drama se repete e vai se perpetuando diante da indiferença... A escuridão da noite reforça a mensagem.
Entre o arvoredo e no breu da noite, diante de uma luz fraca de um lampião, o Xamã nos fala de um apocalipse e dos fim dos tempos na visão cosmogônica do velho índio. A fala é um trecho do livro A QUEDA DO CÉU, de Davi Kopenawa e Bruce Albert.

O valor de nossa floresta é muito alto e muito pesado. Todas as mercadorias dos brancos jamais serão suficientes em troca de todas as suas árvores, frutos, animais e peixes. [...] Tudo o que cresce e se desloca na floresta ou sob suas águas e também todos os xapiri e os humanos têm um valor importante demais para todas as mercadorias e o dinheiro dos brancos. Nada é forte o bastante para poder restituir o valor da floresta doente. Nenhuma mercadoria poderá comprar todos os Yanomami devorados pelas fumaças de epidemia. Nenhum dinheiro poderá devolver aos espíritos o valor de seus mortos (355)[1].

        Ao público é servido um caldo de peixe em cuias com gravuras indígenas e por fim o Xamã se recolhe. De onde estou ouço apenas o som da água caindo e se espalhando pelo quintal.

Pachiculimba
Grupo Usina
Local
Ilha de Mosqueiro – Praia do Paraíso
Com Claudio Barros e Claudio Melo
Direção
Alberto Silva Neto
Sonoridades
Claudio Melo
Visualidades
Claudio Rego de Miranda
Corporeidades
Valéria Andrade






[1] Marina Pereira Novo. Revista de Antropologia da UFSCar. Jul./dez.2016:167-170

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