Pachiculimba
Criação:
Usina
Autoria
da crítica: Leonel Ferreira. Ator,
Diretor e Educador
Já acompanho o Usina
desde o final da década de 1980 quando na Praça da República apresentavam o
espetáculo “Farsas Medievais”. Assisti quase todos os espetáculos produzidos
pelo grupo, tanto os de salas convencionais como os de rua e porão. O Usina em
mais de seus 20 anos de fazer teatral tem na pesquisa, na experimentação cênica
e no discurso político uma das suas marcas mais potentes.
Alberto Silva Neto
assina as direções dos espetáculos “Tambor
de Água”, “Paresquei”, “Eutanázio e o princípio do mundo” e “Solos de Marajó” onde se percebe o exercício da construção de uma
dramaturgia centrada no homem amazônico, em suas memórias e costumes. Em “Solos de Marajó” surge a parceria com
Claudio Barros, ator oriundo dos grupos Experiência
e Cuíra. Falo parceria porque
somente quem já dirigiu um monólogo talvez compreenda a dimensão desta palavra,
é um exercício de extrema generosidade. Assim deveria ser as relações entre as
pessoas em todas as esferas, mas...
Ainda bem que existe o
fazer teatral de algumas pessoas que generosamente abrem sua morada, sala,
quintal para compartilhar os seus tesouros. “Pachiculimba”, último trabalho apresentado pelo Usina, repete a
parceria entre Alberto Silva Neto e Claudio Barros no que chamo de exercício
pleno dos sentidos e da magnitude do saber tradicional do homem ligado a terra e
aos seus mistérios. Não se trata de um espetáculo, não há release a respeito do
que se vai assistir, não há um teatro, praça, porão como já se viu em montagens
anteriores do grupo, mas sim o quintal da agradável casa de Alberto Silva Neto,
na Ilha de Mosqueiro, na praia do Paraíso. Ali a natureza impera e mesmo com
todo o larelare de quem vai chegando na casa de um amigo, logo o ambiente fala
mais alto, os passarinhos, como que ensaiados para aquele evento dão o tom do
lugar. Ali é um lugar raro, que já foi comum, mas hoje é santuário.
O quintal com suas
árvores e plantas, o céu num azul esplêndido de outubro amazônico, os pássaros
(mais uma vez), o som do vento compõem o cenário daquele ambiente. Não precisa
de mais nada, de nenhum efeito ou truque cenográfico. Nada é mais perfeito que
a natureza e rente a terra em bancos e esteiras o público se acomoda para
assistir a performance de Claudio Barros. Mas que personagem é ele? Uma
entidade espiritual? Um monge? Um xamã? Não interessa! O que o importa é o
sentido das suas palavras ditas de maneira gutural e pausadamente. Ele traz um
carrinho de mão com tapetes coloridos feitos em tricô. Há também um terçado e
um vaso com uma planta num vaso. Descalço ele pisa o chão de barro daquele quintal.
Há um peso em cada frase dita por ele, mas também há beleza e suavidade...
Claudio Melo, faz uma delicada participação produzindo efeitos sonoros e
percussivos que dialogam com a encenação.
Num determinado momento
o que se houve é apenas os sons do lugar e Claudio Barros reage aos sons de
passarinhos, cães, cigarras numa dança pessoal que não irá se repetir no dia
seguinte. As cigarras cantam e anunciam o fim de mais um dia e início de mais
uma noite. O sol vai se pondo e o breu vai tomando conta do quintal. Então uma
fogueira é acesa por Claudio Barros e fazendo uso de uma linguagem inventada ou
dialeto indígena, não importa, o que se vê é um homem lamentando, chorando a
perda de algo que fica na imaginação de quem assiste seu drama. Por quem chora
o pobre homem? A vontade que dá e de levantar do assento e acolher num abraço
seu corpo miúdo. Num instante tudo se transforma em fúria, Claudio Barros,
agora um xamã (?), bate o terçado contra o carro de mão e o choque entre os
metais sublinham a força daquele momento. Não há alegria na dor, não há beleza
na perda. Me lembrei de Tuira Kayapó com seu terçado que lambeu a cara do
presidente da Eletronorte para impedir a construção da usina de Belo Monte em
1989... Os fatos se repetem, o drama se repete e vai se perpetuando diante da
indiferença... A escuridão da noite reforça a mensagem.
Entre o arvoredo e no
breu da noite, diante de uma luz fraca de um lampião, o Xamã nos fala de um
apocalipse e dos fim dos tempos na visão cosmogônica do velho índio. A fala é
um trecho do livro A QUEDA DO CÉU, de Davi Kopenawa e Bruce Albert.
O
valor de nossa floresta é muito alto e muito pesado. Todas as mercadorias dos
brancos jamais serão suficientes em troca de todas as suas árvores, frutos,
animais e peixes. [...] Tudo o que cresce e se desloca na floresta ou sob suas
águas e também todos os xapiri e os humanos têm um valor importante demais para
todas as mercadorias e o dinheiro dos brancos. Nada é forte o bastante para poder
restituir o valor da floresta doente. Nenhuma mercadoria poderá comprar todos
os Yanomami devorados pelas fumaças de epidemia. Nenhum dinheiro poderá
devolver aos espíritos o valor de seus mortos (355)[1].
Ao público é servido um caldo de peixe
em cuias com gravuras indígenas e por fim o Xamã se recolhe. De onde estou ouço
apenas o som da água caindo e se espalhando pelo quintal.
Pachiculimba
Grupo
Usina
Local
Ilha
de Mosqueiro – Praia do Paraíso
Com
Claudio Barros e Claudio Melo
Direção
Alberto
Silva Neto
Sonoridades
Claudio
Melo
Visualidades
Claudio
Rego de Miranda
Corporeidades
Valéria
Andrade
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