Pachiculimba
Criação: Usina
Autoria da crítica: Edson Fernando. Ator, Diretor e professor de Teatro. Coordenador do
Projeto TRIBUNA DO CRETINO.
Diálogos férteis entre
Teatro e Rito ocupam minha atenção há algum tempo. As reflexões que desenvolvo sobre
o tema ganharam relevância, particularmente, por ocasião da escrita de minha
dissertação de mestrado em 2009/2011, sob o título “Ritual em Artaud:
Considerações e reconsiderações por uma poética da crueldade”. Embevecido com o
pensamento estrondoso de Nanaqui tomei como objeto de investigação, naqueles
anos, o processo poético denominado “Quando
a música terminar...”, ocorrido em 2007, portanto, dois anos antes de
iniciar a jornada do mestrado. Pretendia compreender, dentre outras coisas, o
que havia ocorrido comigo durante os nove meses de vivência naquele processo;
compreender se a dimensão da “crueldade”, tal como concebida por Artaud, havia
sido alcançada, em que medida e sob quais condições estéticas e éticas seria possível
cultivá-la em uma montagem teatral. Teatro como rito, rito como condição para renovação
do teatro.
Um marco importante que
estabeleci para desenvolver meus pensamentos desde então, situa Teatro e Rito num
lugar fronteiriço de mútuas trocas. Mas transitar por estas fronteiras me
exigiu colocar na mochila um kit de sobrevivência acadêmica (livros, revistas,
monografias, teses, dissertações, dicionários, glossários, etc.) que me
permitisse compreender o rito mais por sua dimensão ética e menos por sua
dimensão estética, exatamente a via concebida por Artaud. Esta foi, talvez, a
primeira e uma das maiores lições que o Momo me ensinou: um teatro sem ética é
o mesmo que um rito sem mito, isto é, um simulacro da realidade.
Passei, então, a
inquirir o processo “Quando a música
terminar...” tendo como questão norteadora saber se nele havia “teatro
ritual” ou “ritualização no teatro”. Esta questão me persegue e inquieta até
hoje. E todas as vezes que sou levado a refletir sobre trabalhos que julgo se encontrarem
neste lugar de fronteira entre Rito e Teatro, me pego com as mesmas dúvidas e
inquietações. Foi assim com “UM”[1],
montagem da Companhia Moderno de Dança, dezembro de 2014; “Em busca do meu Xamã”[2],
instalação-performance de Leandro Haick, maio de 2015; “Da cabeça aos pés”[3],
montagem do Grupo Experimental de Teatro – GEMTE, dezembro de 2015; “O velório de Dona Pereira”[4],
instalação performática da In Bust
Teatro com Bonecos e Produtores Criativos, novembro de 2016. O mesmo ocorre
agora com “Pachiculimba”, cerimônia
realizada no quintal de uma casa localizada na praia do Paraíso, na ilha do
Mosqueiro. A proposta é resultado das pesquisas de Alberto Silva Neto e Claudio
Barros, nova criação do Grupo Usina.
De todos os trabalhos
citados apenas em UM, me ative a uma
discussão mais conceitual sem, no entanto, pretender chegar a respostas
categóricas sobre o assunto. Considero que são pensamentos expressos em voz alta,
ou melhor, pensamentos escritos e publicizados que me ajudam a pensar meu
próprio fazer poético. Portanto, antes de serem questões voltadas para que os
artistas do Usina resolvam em “Pachiculimba”,
são minhas inquietações que me perseguem novamente, inquietações que procuro
resolver inclusive na atual pesquisa que desenvolvo. Vamos às inquietações.
O aconchego da casa de
Alberto Silva Neto é o refugio para a cerimônia Pachiculimba. È o próprio dono da casa quem nos recepciona
afetivamente na entrada. Alberto nos apresenta o lugar, faz uma brevíssima
contextualização sobre o trabalho que estamos prestes a conferir e orienta para
nos dirigirmos até o quintal, local onde se dará a cerimônia.
Friso por três vezes o
termo “cerimônia”, pois o considero um termo/conceito caro a todos as pesquisas
de fronteira Teatro/Rito. Na verdade é um termo controverso no âmbito da
própria antropologia, onde encontramos autores com posicionamentos
diametralmente opostos ao abordar os conceitos de “rito” e “cerimônia”. Aldo
Natale Terrin, professor de Antropologia e História das religiões, tem sido meu
guia para estes assuntos. Seguindo os ensinamentos preciosos que encontrei em
sua obra O rito: antropologia e fenomenologia
da ritualidade, inferi que ao longo do tempo “rito” e “cerimônia” foram se
estabelecendo em campos distintos de ação e compreensão, ladeados por outros
termos como ritual, ritualizar, ritualismo e ritualização. Terrin destaca, no
entanto, que se fizermos um recuo generoso na história, veremos que “não se
conhecia cerimônia que não fosse um rito, e sempre religioso”. (Cf. TERRIN, p.
20). Infiro, então, que o processo de secularização das ações gerou uma
distinção problemática entre “rito” e “cerimônia”, levando-nos a crer que todo
rito é uma cerimônia, mas nem toda cerimônia seria, a rigor, um rito.
Tal querela sobre o
assunto se mantém aberta entre os estudiosos da área. Não sendo meu interesse
desenvolvê-la aqui, destaco apenas que evito usar indistintamente os termos “cerimônia”
e “rito” como se fossem sinônimos e, ao mesmo tempo, evito distingui-los pelo caráter
secular das ações, pois este modo de concebê-los gera uma visão dicotômica com
prejuízo maior para o termo/conceito “cerimônia”. Me parece mais sensato
pensá-los – “rito” e “cerimônia” – na perspectiva de Richard Schechner que nos
permite compreender as mútuas trocas entre “ritos” (religiosos) e “cerimônias”
(seculares) por um processo de derivações e dependências que não privilegiam
nenhum dos pólos.
Uma rápida verificação,
tomando como exemplo algumas cerimônias seculares, talvez ajude a perceber as
derivações e mútuas trocas que a perspectiva de Schechner aponta: cerimônia de
formatura, cerimônia de abertura e encerramento dos jogos olímpicos, cerimônia
de diplomação de mandato eleitoral, cerimônia de inauguração de um prédio
público, cerimônias militares, etc. Em todos estes casos a acepção da palavra
“cerimônia” volta-se para ações que são realizadas num determinado tempo e
lugar, com ordenamento, classificação e/ou passagem de status, características em comuns ao conceito de rito. E embora,
tais cerimônias não proporcionem experiências de ordem mística e/ou mítica –
traço fundamental do “rito” – elas oportunizam vivências nas quais valores e
virtudes humanas são colocadas em relevo e, portanto, também trabalham numa
dimensão ética.
Esta pequena digressão
me parece necessária para dizer que minha inquietação não é definir se Pachiculimba é uma cerimônia ou um rito,
mas compreender como este trabalho se relaciona com esta fronteira complexa onde
os conceitos a todo o momento, parecem escorregar para outros domínios da
atividade humana. E isto porque, segundo
Terrin, o “rito” constitui-se como uma “realidade poliédrica”, isto é, uma
realidade que estabelece relação teológica, fenomenológica, histórica,
religiosa, antropológica, lingüística, psicológica, etológica e biológica.
Sendo tão diverso em sua natureza é necessário eleger o lugar de onde parte a abordagem.
Minhas abordagens sempre partem do campo fenomenológico, isto é, do ângulo de
quem participa/vivencia o acontecimento. É deste lugar que procuro refletir, também,
sobre Pachiculimba.
Meu maior desconforto na
vivência que Pachiculimba me
proporcionou se deu no que considero ser primordial para trabalhos desta
natureza: a preparação para testemunhar o acontecimento. Para me dirigir até o
local da cerimônia, que ocorre no distrito de Mosqueiro, utilizei o translado de
van que o grupo Usina oferece para os convidados. No trajeto que dura cerca de
uma hora e meia tudo transcorre cotidianamente: somos onze pessoas no total, a maioria
se conhece e desenvolve diálogos descontraídos sobre vários assuntos. O
desconforto: sigo descontraidamente e sem nenhuma preparação ou orientação rumo
a uma cerimônia que por sua natureza complexa, mencionada anteriormente, irá me
solicitar um comportamento não rotineiro e não cotidiano. O deslocar no espaço,
portanto, não é acompanhando de um deslocar de comportamento – do cotidiano
para o extra-cotidiano.
Quando chego, então, ao local da cerimônia encontro-me
completamente em estado cotidiano. A tranquilidade, a natureza e o aconchego do
lugar não são suficientes para me colocar em sintonia fina com o estado absolutamente
alterado que Claudio Barros oferece antes, durante e depois da cerimônia. O
contraste é absurdo. O primeiro contato visual que tenho dele – ainda antes do
início da cerimônia, onde ele se encontra no corredor lateral da casa – é o
suficiente para perceber que seu trabalho funda-se para muito além do que convencionamos
chamar de representação teatral: Claudio encontra-se em estado de meditação
ativa, em perfeita harmonia com o lugar; ele sente, dialoga e se retroalimenta
de tudo a sua volta. Eu, no entanto, ainda em clima de “festinha” e deslumbre
com o local, preciso conter o estado de ânimo, pois ainda me sinto envolvido numa
atmosfera de descontração e desbunde.
A condução até o
quintal da residência, onde propriamente irá ocorrer à cerimônia, também é
feita de modo espontâneo por Alberto. No local há árvores, uma arena sutilmente
saliente com terra clara e algumas cadeiras e esteiras de palha ao seu redor. É
fim de tarde, por volta das 17:20. Tomo meu assento em uma das esteiras, descalço
as sandálias e aguardando o início da cerimônia. A primeira aparição de Claudio
Barros +no quintal confirma minha sensação de que ele se encontra conectado em outra
dimensão: o universo do xamanismo ameríndio[5] se
estabelece em suas ações, atitudes, gestos, narrativas, canções, objetos,
instrumentos musicais e indumentárias. Considero que Claudio Barros ata-se
irremediavelmente a esfera do rito, definida por Terrin do seguindo modo:
[...] o rito, fenomenologicamente
falando, é uma ação sagrada repetitiva, composta de um drómenon (ação) e de um legómenon
(palavra, mito). Nele e na conjunção de palavra e ação se manifesta um agir
“holístico” que não é do tipo instrumental e não pretende induzir uma causação
normal entre meio e fins. Tal ação ritual procura realizar o legómenon (o mito) por meio da
estruturação de um jogo simbólico místico onde vigora uma premissa indiscutível
segundo a qual x vale y no contexto ct,
isto é, onde alguma coisa está no lugar de outra. (Cf. Terrin, p.27-28, ênfases
originais)
Gosto desta citação,
pois ela consegue ser objetiva, profunda e didática ao mesmo tempo.
Utilizando-a para pensar o trabalho de Pachiculimba,
observo que todas as ações (drómenon)
desenvolvidas por Cláudio Barros e Cláudio Melo durante a cerimônia só
encontram sentido quando dimensionadas, percebidas e executadas em função do
universo mítico xamânico ameríndio (legómenon).
Na perspectiva dos
atuantes da cerimônia a equação proposta por Terrin me parece absolutamente exeqüível.
No entanto, eu na condição de testemunha da mesma, me sinto deslocado, desconfortável
e apartado da cerimônia por não ter sido preparado e não receber as chaves de
acesso para abrir os canais de percepção adequados para penetrar no contexto ct. Sem estas chaves de acesso,
minha vivência voltou-se para a fruição de uma montagem teatral. Passo, então,
a acompanhar tudo com o olhar distanciado e contemplativo de um espectador que tem
o privilégio de presenciar um trabalho tecnicamente bem executado e dirigido.
As tentativas de me
fazer parte integrante da cerimônia esbarram, no meu caso, na falta de um
deslocamento de comportamento: de um comportamento de espectador para um comportamento
de partícipe liminar ou liminóide, comportamento
alterado que me permita fazer parte da comunidade e do universo mítico do acontecimento.
Insisto em lembrar que não se trata de uma preparação inteligível para compreensão
do universo dos símbolos xamânicos, mas sim da convocação dos canais sensíveis
e sensitivos para alargar minha percepção do fenômeno que se dá naquele tempo e
espaço não convencionais.
E assim como começa sem
esta preparação para um contexto de rito, termina, sob o céu estrelado, também
sem as ações de despedida. O curioso é que o mesmo não se aplica a Claudio
Barros que sai de “cena” para continuar seu estado de plena meditação
dirigindo-se e mantendo-se em posição de lótus, no mesmo corredor lateral da
casa, local onde havia iniciado a cerimônia. Claudio vivencia um “antes”, um “durante”
e um “depois” que lhe potencializa, no meu entender, para uma dimensão holística
profunda. Enquanto que eu vivencio apenas o “durante” de um acontecimento que se
estrutura, na minha percepção, mais por seus elementos estéticos do que por sua
dimensão ética.
Não são certezas,
apenas inquietações, desconfortos e angustias que insistem em aparecer todas as
vezes que observo o teatro dialogando de modo peremptório com a dimensão do
rito. Não busco respostas ou justificativas da equipe envolvida em Pachiculimba, mas sim refletir sobre
este lugar de fronteira que tanto me fascina. São “pensamentos altos” de um
servo de Dioniso. Evoé.
11
de Outubro de 2017.
Referencia:
TERRIN,
Aldo Natale. O rito: antropologia e
fenomenologia da ritualidade. São Paulo: Paulus, 2004.
Pachiculimba
Grupo
Usina
Local:
Praia do Paraíso – Ilha de
Mosqueiro
Com Claudio Barros e Claudio Melo
Direção:
Alberto Silva Neto
Sonoridades:
Cláudio Melo
Visualidades:
Claudio Rêgo de Miranda
Corporeidades:
Valéria Andrade
[1] Ver crítica “Confluências de UM lugar entre”
publicada da TRIBUNA DO CRETINO: Revista de Crítica em Teatro e Dança, Vol. 01,
Nº 01, 2015, pg. 59-62.
[2] Ver crítica “Nu espelho” publicada da TRIBUNA DO
CRETINO: Revista de Crítica em Teatro e Dança, Vol. 01, Nº 02, 2015, pg. 26-27.
[3] Ver crítica “Tenso como a batida do tambor. Suave como
as brincadeiras de roda. Quem é essa GEMTE-Demônio?” publicada da TRIBUNA
DO CRETINO: Revista de Crítica em Teatro e Dança, Vol. 02, Nº 03, 2016, pg. 29-32.
[4] Ver crítica “Sonhos de uma noite com Pereira”, publicada
da TRIBUNA DO CRETINO: Revista de Crítica em Teatro e Dança, Vol. 02, Nº 04,
2016, pg. 86-90.
[5]
Tenho duvidas se o termo
mais adequado seria xamanismo “amazônida” ou “amazônico”. Optei por “ameríndio”
por considerar seu lastro mais amplo, mas posso estar absolutamente equivocado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário