Montagem Teatral: Falando sobre flores
Autor
da crítica: Ator e Diretor Teatral; Coordenador do
Projeto TRIBUNA DO CRETINO.
Considerações
em terceira pessoa
Montagens teatrais que
assumem como tarefa abordar questões de caráter histórico são extremamente
relevantes. Sabemos que o Teatro não precisa estar a serviço de nada para
validar seu discurso e/ou linguagem, mas quando consegue estabelecer relações profícuas
com outras áreas de conhecimento, torna sua existência ainda mais interessante.
Os artistas que tomam esta tarefa pra si, no entanto, precisam garantir o equilíbrio
e harmonia dos elementos incomuns ao jogo estético, para que eles não se
transformem em ruídos estrondosos capazes de comprometer a natureza específica
da própria obra artística. Quando isto ocorre, invariavelmente, as chances do Teatro
se tornar uma ferramenta ou um panfleto a serviço de algo, aumentam exponencialmente.
A montagem teatral “Falando sobre flores” assume esta
tarefa ao eleger como eixo central de sua dramaturgia e encenação o período da ditadura
militar brasileira, ocorrido de 1964 a 1985. São dois atuantes em cena, Demi Araujo
e Renan Coelho, nos confrontando diretamente com as personas de um militar e de um membro do movimento da resistência política
armada, respectivamente. A partir destes personagens antagônicos a montagem
tenta zelar, precariamente, por uma abordagem que nos possibilite avaliar os
pontos positivos e negativos deste período da história brasileira. A tentativa
é “precária”, pois opta nos mostrar o confronto a partir da uma cela do DOPS –
Departamento de Ordem Política e Social –, transformando rápida e decisivamente
os antagonistas em torturador e torturado, respectivamente. E ao fazê-lo, induz
nosso olhar para uma empatia com este último, pois o apresenta numa situação de
co-relação de forças desigual, em condições miseráveis e exposto a atos humilhantes.
Difícil julgar imparcialmente neste contexto.
A montagem se estrutura,
então, a partir de quadros realistas que revelam o modo de tratamento destinado
aos presos políticos do “regime”. Os quadros são intercalados por depoimentos
de ambos os personagens (?) que chocam seus “pontos de vista” sobre a
conjuntura nacional naquele período traçando ainda, em alguns momentos, relação
com o atual quadro político do país. Os depoimentos intercalando os quadros realistas
permitem inferir o desejo da montagem em equacionar, de modo imparcial, dados históricos
para que o espectador tire sua própria conclusão sobre o período do governo
militar. Tal procedimento, no entanto, se vê comprometido exatamente pela força
dramática dos quadros, pois eles, como dito anteriormente, induzem à empatia
com a parte mais frágil do embate, isto é, com o torturado.
Não fica claro também
se os depoimentos intercalando os quadros são proferidos pelos atuantes – Demi
e Renan – ou pelos personagens – torturador e torturado. Esta dúvida fragiliza,
sobretudo, a defesa dos argumentos pró “regime militar”, pois soa falso o
discurso exaltando avanços e conquistas na área da economia, saúde e educação.
Assim, mais uma vez, a balança pende a favor de um posicionamento político que
nos induz a reprovação da ditadura militar. Tomar partido sobre a questão não é
o problema – é importante não esquecer que a imparcialidade científica,
política ou filosófica é um mito –, mas isso depõe contra a montagem na medida
em que a mesma deseja que o próprio espectador julgue e tire sua conclusão
sobre o tema.
Considerações
em primeira pessoa
Os quadros realistas
que a montagem apresenta, embora mantenham certo grau de fidelidade com os
fatos históricos – e aqui se encontra um grande mérito da montagem – , não me
comovem, atravessam ou me provocam a pensar sopre o tema por um lugar novo. A
sensação de “mais, do mesmo” se impõe à medida que os quadros são apresentados.
Talvez falte ousadia ao abordar o tema – a falta de ousadia, aliás, parece se
impor a todos os setores da sociedade que seguem em estado de letargia profunda.
Talvez a conjuntura do país seja tão absurdamente dramática e nefasta a ponto
de arrefecer minha recepção desta obra. Ou talvez ainda eu, simplesmente, esteja
projetando meus anseios e inquietações na montagem. O que posso afirmar com
convicção é a minha sensação crescente de que estamos tomados por um torpor
indolente que parece se alojar nas diversas e variadas tentativas de atos de resistência,
de rebeldia, de insubordinação, de desobediência civil, de insurreição, de
motim, de levante, de revolta, de desordem, de revolução... Tenho acreditado, cada
vez mais, que estes estados ou atos de resistência devem ser testados,
despudoradamente, em nossos pequenos atos cotidianos, em nossos modos de existência,
em nossa arte, em nossa escrita, em nossos amores e dores. Nada pode escapar a
tentativa de encontrar novamente o princípio gerador do “caos criativo”, princípio
que irá embaralhar as cartas marcadas deste jogo espúrio que se tornou viver no
Brasil de 2017.
E assim, em meio ao turbilhão
de incoerências que atravessamos no país, “Falando
sobre flores” embora se constitua, na minha percepção, com o “mais, do
mesmo”, os quadros da montagem me permitem estabelecer paralelos que se cruzam
na insólita, mas não remota, possibilidade da ascensão de um novo regime
ditatorial no Brasil. Neste contexto e sem me preocupar com a acusação de auto plágio
apresento, portanto, a seguir, um texto que postei recentemente no Facebook, no
qual reflito sobre o fantasma da intervenção militar que nos ronda novamente. É
importante não esquecer que se trata de paralelos que cruzam: a montagem
teatral “Falando sobre flores”, o
texto intitulado “Fumaça, muita Fumaça!!!”.
Deixo a cargo de leitor/espectador a tarefa de cruzá-los do modo que julgar
conveniente, ou mesmo sequer cruzá-los. Desobediência é o mote.
Fumaça,
muita fumaça!!!
“Intervenção Militar
Já” é o que se lê na faixa de um pequeno grupo de manifestantes que protestam
ao som de “hinos patrióticos”, no ultimo domingo (22.10), na rua da Paz – ao
lado do Teatro da Paz. Esta manifestação não me causou nenhum assombro. São
pessoas alinhadas ao pensamento do que podemos chamar de “extrema direita”,
dentro do confuso cenário político brasileiro. Na minha percepção, a
manifestação arregimenta lentamente alguns simpatizantes, mas ainda recebeu a
esmagadora indiferença dos que circulavam pela Praça da República. Embora não a
considere inofensiva – seria muita ingenuidade de minha parte – ela não é o que
me assombra e inquieta na conjuntura nacional. O que me assombra é o silêncio e
apatia dos demais setores da sociedade civil diante do vilipendiamento da
nação.
Não há em curso no país
nenhuma reação enérgica de algum setor da sociedade civil que consiga dialogar
e mobilizar os cidadãos de modo direto e simples, canalizando o sentimento de
revolta e indignação, presentes na população, diante do escândalo que se
transformou o nosso regime de democracia representativa alicerçada nos três
poderes – executivo, legislativo e judiciário. Não conseguimos construir uma
via de mobilização nacional que lute pela reconstituição do regime – uma nova
Constituinte, por exemplo, formada somente por membros da sociedade civil sem
vinculação com as instituições partidárias vigentes.
Ao invés disso, “grupos
de poder” lutam entre si tentando extrair da miserável e degradante situação,
capital político para se manter ou retornar ao poder. Se cristaliza, com o
passar do tempo, o enredo nefasto que mais uma vez tentará nos vender a
retórica simplista de que contra o inimigo “nazi-facista”, encarnado pela
figura do deputado Jair Bolsonaro, devemos votar no “menos pior”. Nesta
perspectiva se equivalem a “direita” e a “esquerda” – uso as convenções
partidárias estabelecidas, sabendo que não há muita diferença no projeto de
poder de ambas – e tanto faz os candidatos que despontam como adversários
capazes de enfrentar e vencer Bolsonaro. Tanto faz o Dória, Ciro Gomes, Marina
ou o Lula. Todos estão enredados no vil jogo de poder plutocrata que se
transformou o regime democrático brasileiro.
Desse modo, na
estratégia de alto risco que vem se delineando para a disputa presidencial de
2018, Bolsonaro é o adversário ideal para “direita” e “esquerda”, pois sua
personalidade tragi-bulfônica constrói uma cortina de fumaça capaz de obnubilar
a percepção política, arrefecendo a consciência crítica para personalidades tão
ou mais controversas politicamente, tais como o atual prefeito de São Paulo,
João Doria ou o ex-presidente Lula, dentre outros. O que esperar deste último,
por exemplo, quando vemos na sua trajetória política fatos no mínimo inusitados
como acordos políticos selados, sem nenhum pudor ideológico, com personalidades
marcadamente cínicas e corruptas como Paulo Maluf, José Sarney, Jader Barbalho,
Michel Temer... Luis Inácio Lula da Silva representa muito bem a escória da
classe política brasileira e não tenho dúvidas que ele apertará a mão do
próprio Jair Bolsonaro se julgar conveniente para seus planos políticos. E, no
entanto, tentam nos fazer acreditar que há mocinhos e vilões. Votando, então, no
“menos pior”, dentre aqueles, querem nos fazer acreditar que as instituições
seguem em pleno funcionamento, ilibadas, autônomas, soberanas e defensoras dos
direitos dos reles mortais.
Como se assombrar com
um punhado de fanáticos fazendo apologia a intervenção militar quando temos uma
nação inteira incapaz de exorcizar os fantasmas, espantalhos e arremedos de um
regime que se diz democrático? A democracia brasileira sangra há décadas e os
que fazem parte do seleto circulo do poder desejam que assim permaneça, por um
motivo simples: são vampiros sedentos da nossa jugular. A retórica publicitária
do golpe contra a ex-presidente Dilma só ajudou a segregar ainda mais os fronts
de resistência contra os posicionamentos ultraconservadores, posto que colocou
em lados diferentes “petralhas” e “coxinhas” que seguem, estupidamente,
trocando farpas entre si, quando em verdade não se distinguem no projeto de
poder que colocaram em prática.
E enquanto não
conseguirmos ultrapassar a cortina de fumaça fúnebre acessa a partir dos
escombros da democracia brasileira, Bolsonaro e os fanáticos que clamam por
intervenção militar, na minha percepção, apenas adicionam o combustível de alta
periculosidade no cenário de guerra que já vivemos há muito tempo.
Mais
flores...
Quem julga as flores
por sua aparente doçura e candura se esquece do perfume do Louro-da-Montanha, da
Tasneirinha, do Veratrum, da Cerbera Odollam, da Sanguinaria Canadesis, da
Adenium Obesum e da Oenanthe Crocata. Exorto todas estas flores oferecendo-as aos
que insistem em se manter inertes. Mais flores, por favor.
02 de Novembro de 2017.
Montagem
teatral:
Falando Sobre Flores
Direção:
Karine Jansen
Dramaturgia:
Renan Coelho
Atores:
Demi Araújo e Renan Coelho
Iluminação:
Luciana Porto
Sonoplastia:
Jairo dos Anjos
João Calado
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