segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Utopia... Negro... Alentos Possíveis... - Por Edson Fernando

Autor da Crítica: Edson Fernando. Ator, Diretor e Professor de Teoria do Teatro da ETDFUFPA.
Falo de um lugar muito particular: o vazio de quem perdeu a utopia. É deste lugar insólito que minhas impressões críticas partem e se chocam com o espetáculo Negro, montagem teatral do Grupo de Pesquisa Cênica com temporada de estréia ocorrida na A Casa da Atriz. O centro cultural – o considero assim – que recebe a montagem, aliás, oportuniza aos espectadores reflexões tão relevantes quanto à temática do espetáculo – a montagem aborda a delicada questão racial no Brasil. A Casa da Atriz e Negro, nesta ordem, me confrontaram com o meu total estado de desalento com conjuntura local e nacional, principalmente às questões ligadas a produção teatral e a classe artística da cidade.
Utopia
O espaço conhecido como A Casa da Atriz existe – ou no dizer de um dos donos da casa, Paulo Porto, RESISTE – há cinco anos localizada na Rua Oliveira Belo nº 95, entre Generalíssimo Deodoro e Dom Romualdo de Seixas. Não foi a primeira vez que estive no local conferido o trabalho de atores e atrizes da cidade, mas a primeira em que pude ouvir os relatos sinceros e orgulhosos de seu Paulo sobre o legado que este lugar tem estabelecido para a classe teatral de Belém. Ele estima que cerca de quatro mil pessoas já visitaram a Casa que abriga regularmente montagens teatrais, instalações, oficinas, leituras dramatizadas ou o que a cabeça desvairada dos artistas desejar. Simpático e efusivo ele nos narra fluentemente – estamos sentados na barraca de lanches armada na frente da Casa e o relato que apresento é fruto dos depoimentos espontâneos de Paulo Porto – como nasceu o projeto de criação deste espaço cultural.
A ligação com o Teatro se estabeleceu pela matriarca da família, a atriz de cerca de 30 anos de atuação Yeyé Porto; logo, a relação com o marido e as filhas Luciana e Juliana Porto foram também construídas sob este vínculo artístico. Idealizado no início como uma biblioteca pelas filhas Luciana e Juliana Porto, o projeto saiu do plano teórico impulsionado pelo desejo e necessidade de alguns artistas que participavam de um processo criativo ao lado de Yéye; a Casa que já abrigava ensaios e outras atividades artísticas fora cogitada, então, por Aílson Braga, Adriana Barroso e Aníbal Pacha como espaço para experimentação teatral daquela montagem. Como já havia este desejo por parte do casal dono da residência, a ideia foi imediatamente acolhida e colocada em prática. Mas como arcar financeiramente com tal iniciativa? Eram necessárias adaptações e pequenas reformas que possibilitassem receber artistas e público assegurando o mínimo de conforto e qualidade para a cena – o forro, por exemplo, precisava ser pintado na cor azul. A solução foi encontrada recorrendo aos amigos próximos, proprietários de empreendimentos vizinhos a Casa – dentre eles a G2 Comunicações e a Dom Cookie, localizados ao lado e em frente, respectivamente – que forneceram e até hoje fornecem apoio cultural em forma de banners, material gráfico, etc. A tinta para pintura do forro também foi conseguida sem custos com outro amigo, dono de uma loja de material de construção. E assim A Casa da Atriz abria suas portas pela primeira vez no ano de 2010, trazendo no nome do espaço a referência e merecida homenagem a atriz proprietária e moradora do lugar.
Este peculiar “sistema de mecenato” é um dos meios que mantém o espaço vivo, pulsante e catalisador de experimentações diversas até os dias atuais. Orgulhoso da iniciativa que engendrou e ajuda a preservar, Paulo Porto segue afirmando que o espaço nunca recebeu recursos financeiros do estado para se manter – salvo nos casos em que concorrem em editais públicos – fato este que garante a total autonomia e independência do lugar: quem decide quais projetos serão realizados, sob que termos financeiros se efetivará a parceria e como serão desenvolvidas as ações, cabe a família Porto decidir. A liberdade e autonomia no gerenciamento do espaço permitem estabelecer os termos para muito além da nefasta lógica do mercado. O espaço que tem capacidade para receber até vinte espectadores por sessão segue o princípio claro e objetivo: faz-se Teatro para vinte do mesmo modo e com a mesma qualidade e empenho do que se faz para somente um espectador. O que importa, frisa sempre Paulo, não é o retorno financeiro e sim os momentos de reflexão, emoção e outros modos de produzir entretenimento com projetos teatrais que buscam dialogar intensamente com temas relevantes para cidade. Tudo isso se apresentando como demarcação política importante para afrontar e enfrentar o cenário desolador da política cultural de Belém e do estado do Pará.
Negro
O panorama traçado por Paulo Porto sobre seu espaço cultural, antes da entrada para conferir a montagem Negro, me atou irremediavelmente as questões sociais e políticas que atravessam e ultrapassam o palco. De alguma forma funcionou em mim como uma espécie de prelúdio a obra com que me defrontei em seguida. Então, à medida que entrei em contato com a fábula, senti necessidade de compreendê-la imediatamente na sua intima relação com a delicada questão racial no país. E o principal elemento que provocou e incomodou minhas impressões foi a dramaturgia. Passo então, a análise de alguns elementos da montagem para apontar, a meu ver, algumas fissuras que prejudicam e/ou fragilizam o discurso e a abordagem da temática proposta.   
A fábula se constitui com os seguintes elementos: um senhor de escravos convive com duas negras em sua residência. A violência no trato dispensado a elas vai sendo revelado à medida que os acontecimentos são precipitados com a chegada de um novo escravo recém adquirido numa feira livre. É a partir deste núcleo de personagens que a trama ou o drama se estabelece. O confronto social Senhor versus Escravo poderia estabelecer a montagem no âmbito épico, mas os acontecimentos são dispostos em escala crescente de tensão, construindo assim uma curva dramática para florescimento do clímax e posterior desenlace da fábula. Esta é o que considero a primeira fissura entre obra e seus desdobramentos para além do palco, posto que o gênero dramático, por natureza, tende a se esgotar na sala de apresentação, ao passo que o épico – se bem estabelecido – tem mais chances de vincular suas questões para além do palco.
Equilibrando ou suavizando – mas não o suficiente – os elementos dramáticos da obra, temos o jogo dialético proposto pela unidade de tempo da ação: aberta oposição entre o tempo presente e passado. Este jogo revela-se uma excelente proposição, pois assenta a fábula no tempo histórico da escravidão negra ocorrida no Brasil até 1888, mas transpondo todas as implicações do nefasto regime escravocrata para o tempo presente. O recurso para atingir esse objetivo é simples: toda a ambientação do lugar é feita com objetos reais que são manuseados pelos atores – sabonete líquido, talheres, pratos, panos de prato, garrafa térmica, xícara e pires, toalha de banho, controle remoto de TV e até mesmo a marca das cuecas dos dois atores que ficam a mostra em determinados momentos. O figurino, neste sentido, estabelece o eixo neutro que induz nosso olhar para os objetos e não para o próprio figurino – o senhor de escravos traja calça e camiseta preta enquanto os três escravos trajam calças e camisetas brancas. Outra pista importante que situa a fábula no tempo presente são as inserções de notícias televisivas que são narradas de fora da cena em pelo menos dois momentos. Todos os casos relatados retratam vítimas reais de preconceito racial, violências ocorridas recentemente.
Todos estes elementos visuais que situam a fábula no tempo presente chocam-se com a dramaturgia que opta por uma escritura tecida na base de chavões e clichês sobre a condição racial dos negros no Brasil. Tais clichês remetem nosso olhar para o tempo passado, um tempo onde os negros eram tratados como “coisas” numa aberta relação de submissão, violência física, abusos sexuais e total humilhação moral. Nesta perspectiva o texto dramático cumpre papel importante em função do efeito de estranhamento que pretende provocar. No entanto, fica também a impressão de um texto demasiadamente melodramático, que peca pela falta de uma intriga mais elaborada, pois se limita ao embate maniqueísta entre o senhor de escravos e os escravos – clara distinção melodramática que separa os personagens bons dos maus. E como não podemos negar que a teledramaturgia brasileira exerce papel preponderante em nossa educação estética, na metade da apresentação fico com a impressão de acompanhar um folhetim novelesco de época da sessão das seis da TV Globo.           
Talvez a chave para entender essa sensação se encontre em outra faceta da dramaturgia com característica marcadamente realista, isto é, os diálogos são inspirados nos discursos e comportamentos racistas da época da escravidão. Some-se isso a encenação também realista que coloca as cenas como quadros que descrevem a situação social do negro naquela época histórica. Mesmo com o efeito de estranhamento provocado pelo choque entre os tempos da ação, os quadros são encadeados de modo à tensão crescente – como dito anteriormente – inviabilizando, comprometendo ou anulando o próprio efeito de estranhar, pois com o desenrolar da fábula nos familiarizamos com a situação. Esta é a segunda e, a meu ver, a mais grave fissura na obra, pois ela limita Negro ao contexto da própria fábula, embora faça alusão a conjuntura de preconceito racial da atualidade.  
O conjunto de atuações dos quatro atores principais da montagem contribui de modo decisivo para o aumento da tensão dramática das cenas. Amanda Alvino, Bonelly Pignatario, Tamires Tavares e Victor Peixe desenvolvem um trabalho primoroso repleto de pré-expressividade e domínio técnico do espaço. Nada realizado por eles é gratuito ou fora de propósito; o desenho das cenas é executado milimetricamente, não há passo em falso ou excessos de movimentação; a força no olhar e o vigor nas ações expressam com inteireza que a pesquisa levou a sério o treinamento energético desenvolvido pelo Grupo LUME de Campinas e aplicado como preparação para o elenco. Somos capturados para o interior dos quadros desde a simples troca de olhares entre os atuantes, carregada de tensão pre-expressiva.       
Alentos Possíveis
A experiência que tive ao conferir a montagem Negro, realizada na Casa da Atriz me proporcionou pensar uma vez mais sobre formas de resistência artivista. Embora ainda me perceba completamente esvaziado de motivação utópica, não deixa de causar impacto o encontro com o frescor revolucionário vindo do relato espontâneo de Paulo Porto sobre sua preciosa Casa da Atriz – o mesmo frescor pode ser notado em Luciana Porto. Seus olhos brilham liberdade, sonho e, sobretudo, expressam posicionamento político contundente contra uma gestão cultural falida, demagógica, elitista e nefasta. Mesmo tendo posicionamento um pouco diferente sobre o modo de enfrentar a ausência de política cultural do estado e município – pois, acredito que é necessária também uma ação coletiva de enfrentamento por parte da categoria teatral, embora tenha perdido a esperança que isso venha há ocorrer algum dia ou num futuro próximo – não posso deixar de concordar que ao manter seu centro cultural independente por cinco anos esse gesto se impõe como um autêntico “tapa com luva de pelica”, principalmente na face daqueles que se encastelaram nas secretarias de cultura de nossa cidade e do estado. Então, isso não deixa de se constituir como um alento em meio à situação kafkiana que vivemos quase passivamente há pelo menos vinte anos.
Por outro lado, entrar em contato com o frescor e vigor pré-expressivo dos atuantes da montagem me faz ter certeza de minha paixão por esta arte tão massacrada e espezinhada. Mais ainda quando percebo que há em cada um deles o ímpeto de seguir fazendo Teatro contra toda adversidade conjuntural e, o que é mais importante, com o desejo de se comunicar politicamente com a cidade e com os cidadãos moribundos.
Talvez sejam pequenas doses necessárias para abater a letargia reinante.   


23 de Novembro de 2015

quarta-feira, 18 de novembro de 2015

DÚBIO OU PARADOXAL? - Por Alana Lima

Autora: Alana Lima – discente do curso Técnico em Artes Dramáticas – ênfase na formação de ator, ETDUFPA.

Falar da loucura ou dos conflitos da mente sempre foi delicado e perigoso. É um terreno no qual, ao menor tropeço, pode-se desabar a estória toda. O Grupo de Teatro Universitário/Noturno de 2015 decidiu correr o risco e, nos últimos dias 12 a 15 de novembro, levou aos palcos do Teatro Universitário Claudio Barradas o espetáculo “Dúbio”.
Ao dar os primeiros três passos de entrada no teatro, o espectador é imediatamente inserido em um universo tenso, instigante e, para alguns quem sabe até assustador. A imagem que se tem é de uma enfermeira, parcialmente coberta por um biombo antigo de hospital, manipulando uma corda com angústia. Em seguida, todos são levados a entrar pelas laterais do biombo e se deparam com mais uma cena curiosa: os personagens estão deitados pelo chão do teatro; alguns tremem, outros têm pequenos espasmos, e os espectadores tem de driblar aqueles corpos no chão para se encaminhar até onde for sentar. A sensação é incômoda, provocativa. O cenário já leva os mais atentos a sentirem-se em um manicômio, semelhante aos assustadores que vemos nos filmes.
De súbito, os personagens todos se levantam com lanternas e provocam o público com aquelas “pequenas luzes” em meio ao breu do teatro. É a porta de entrada para a sequência de cenas que virá a seguir, apresentando os personagens. No entanto, tudo que até ali trazia uma mistura de sensações e provocações, começa a se perder a partir do momento em que o primeiro texto é pronunciado. O discurso da primeira personagem “dúbia” remete diretamente aos recentes discursos feministas postados nas redes sociais, discutindo o estupro e todo abuso sofrido pelas mulheres diariamente. E desde esse momento, a dramaturgia do espetáculo torna-se enfadonha, não só por sequências textuais longas e repetitivas, mas por ser toda elaborada segundo um didatismo desnecessário no drama.
Há uma contradição que carrega o espetáculo do início ao fim: a proposta cênica versus a dramaturgia. Ao propor uma estética surreal e uma temática delicada como a loucura, seria importante que a dramaturgia compactuasse com essa perspectiva. Mas o excesso de explicações para as críticas que o espetáculo propõe chega a ser uma afirmação de que a cena não daria conta por si só. O que não é verdade. Em cena, três macacos caracterizados de médicos, brincam com a plateia e se estapeiam no que eu chamo de “jogo de alienação”, no qual recaem na tradicional imagem dos três macacos sábios. A metáfora provoca. E o texto é acessório na cena, não essencial. Seriam eles médicos do manicômio? Enfermeiros? Por meio do texto só é possível saber que detêm um conhecimento que os demais não tem. São racionais e, de fato, sábios. Alienam-se por sabedoria.
A sequência do espetáculo traz a história de mais quatro personagens, através da perspectiva de suas mentes. E aqui reside mais um problema: a estória nos leva a entender que os conflitos vividos pelos personagens os levaram à loucura e que agora estão divididos mentalmente por esses conflitos que são os mais corriqueiros – um homossexual que não se aceita por medo da sociedade; uma mulher estuprada; uma enfermeira infeliz com o serviço. Das cinco estórias contadas, apenas duas remetem à loucura – Tomás, que aparenta ser um esquizofrênico em crise com ratos e Luiza, uma mulher que acredita no nascimento e na morte de um filho que nunca existiu. Os demais apresentam conflitos diários sofridos por muitos dos que ali assistiam e mesmo dos que atuavam. Conflitos estes que, não por si só, levam à loucura. Nesse aspecto novamente sinto uma dramaturgia frágil, sem aprofundamento sobre o assunto e fugindo um pouco da proposta inicial, parece-me que tentando trazer conflitos sociais atuais para a cena.
Um ponto interessante sobre a proposta e a dramaturgia é a tentativa de discutir a loucura para além do manicômio e do estereótipo social do doente mental. Isso é pontuado alguns momentos ao mostrar que os enfermeiros do hospital também têm traços da loucura. Mas isso é pouco abordado pelo espetáculo, fica abafado pelas recorrentes afirmações de traumas e crises vivenciadas pelos personagens. Em compensação, as cenas de Tomás e Luiza nos inserem no universo da metáfora pelo corpo, mais do que da audição do texto. Não são precisas muitas palavras pra que se compreenda a dor e a loucura de ambos. As atuações também corroboram, mas isto é um ponto que não há o que questionar a respeito do espetáculo. Os atores, ainda que interpretando personagens e texto cansativos, levam a proposta até o fim com esmero.
O excesso de drama, na tentativa de emocionar o público, é também desnecessário no contexto do espetáculo. Parece-me que há duas linguagens contrastando durante os 86 minutos de apresentação – dramaturgia e atuação. Várias cenas que se mostravam completas pela técnica, corpo e expressão, são quebradas com a entrada do texto. Um exemplo são as cenas em que os macacos aparecem, provocando sempre entrelinhas que não precisariam das linhas, mas como as trazem me deixam sentir que, enquanto público, eu não seria capaz de compreender aquela cena sem tamanha explicação. A mesma sensação se dá na última cena de Dúbio, na qual a enfermeira do início retorna e lança um discurso quase manifesto antes de suicidar-se. O discurso da culpa, do preconceito, apontando os dedos para que a plateia saísse chocada ou decepcionada por se ver naquela situação. Se era essa a intenção, fracassou.
Por conta de uma dramaturgia não condizente com a proposta cênica, como já dito, Dúbio não me provocou reflexão senão estas que exponho aqui. Não me fez pensar sobre o preconceito com a loucura ou sobre questões como a luta antimanicomial, algo recente e silenciado por todos nós, especialmente quando apresentam no fim os personagens se “curando” de seus problemas... O homossexual passa a se aceitar como é; Tomás decide “tomar seu remédio” para enfim ser feliz em sociedade.
Deixemos os méritos evidentes à banda, que acompanha e dá gás à trama o tempo inteiro, aos atores pelo empenho em investir na proposta dos personagens, à cenografia pelo trabalho inteligente e à direção, por contornar os desvios causados pelo texto e ainda assim, tentar levar aos palcos um teatro surreal e novo, com um elenco quase todo de novos atores e poucos recursos.

18 de Novembro de 2015

quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Sobre o “AUTO DA LUA CRESCENTE” - Por Andrey Gomes

Autor da Crítica: Andrey Gomes - Aluno do curso de extensão em crítica em Teatro e Dança-ETDUFPA

Discorro sobre o espetáculo do dia 28 de outubro, organizado pela Fundação Cultural do Pará no teatro do Curro Velho – uma apresentação especial, ou melhor, reapresentação – pois também ocorreu durante o Círio de Nazaré, tratando-se de um espetáculo itinerante.
Falar do “Auto da Lua Crescente” é refletir a dança por dentro, pois apesar do texto que suspende seu corpo, é o canto que a identifica, e o ritmo imprime sua voz. É falar de religiosidade, pois o Círio de Nazaré está presente em signos, sendo a festa “mãe” de uma série de procissões que transcorrem tradicionalmente pelo interior do Estado. Em alusão a Antônio Nóbrega, trata-se de cultura popular aberta em si mesma embora desvalorizada por uma hegemonia burguesa. O espetáculo então estabelece sua dramaturgia partindo do material presente na região Amazônica manifesto nas danças populares que em sua maioria são originarias de práticas religiosas e dos saberem místicos (e míticos) da terra, como as fases da lua que supostamente tem influência na vida das pessoas.
   O próprio termo dramaturgia soa estranho quando associado à cultura popular por se tratar de uma prática que exige organização de conceitos e idéias e se convencionou acreditar que a dita arte popular não produz arranjos desse conhecimento. Ressalto este equívoco identificando e pontuando exemplos: nas ladainhas entoadas pelos beneditinos de Bragança está a origem da Marujada, releitura do xote europeu ao ritmo do Retumbão – culto e festa compartilham a representação e a música; os siris, crustáceos típicos da região de Cametá tem na dança do  Siriá uma singela homenagem; e o Carimbó nascido como ritual dos Tupinambás ressurge com o erotismo do Lundu africano – dançar e representar são experiências do corpo.
Do mesmo jeito que em Junho a apresentação contou com os folguedos juninos a partir de pássaros e bois – neste o Círio foi contado e cantado por oito atores e uma banda musical, cujo repertório transitava por MPB, hinos canônicos, sempre destacando músicos da região. Tratando-se de um espetáculo readaptado em ocasiões, vale em algum momento delinear uma construção dramática que ofereça maior desafio aos atores embora não me pareça que o grupo busque aproximações com a dança contemporânea; entretanto, pensar a dança em um contexto popular não significa situá-la nesse permanente anacronismo, distanciado da realidade contemporânea – mas afirma-la como processo de organização de formas de conhecimento sobre a vida e o mundo.
*
   Qualquer linguagem que se feche dentro de normas estabelecidas tende à estratificação – seria diferente com a dança? Isolada por normas estéticas, prepotente em sua técnica, restrita aos iniciados? O que se classifica como erudito, hoje, desclassifica o popular em sua atemporalidade? Shakespeare que o diga, já foi mais popular. Justifico a alusão feita, destacando que a oposição entre erudito e popular constitui uma tendência histórica burguesa – a de superestimar (e subestimar) gêneros, linguagens, pessoas; delimitar campos e segregar culturas. O fortalecimento dessa tendência alicerça a soberania do produto, castra a dialética e condena Orfeu.
   Em sua simplicidade, o “Auto da Lua Crescente” localiza a coesão de componentes culturais em debate perene na antropologia da arte, no que diria Adorno que a obra de arte é crítica em si, por apresentar as contradições do mundo em seu interior assim evidenciando sua função social para além de qualquer técnica. Aliás, para Heidegger, a poesia está no extremo oposto da técnica.
   A poesia, para além da técnica ou em seu extremo oposto atua sobre a vida – na dança participa em seus movimentos e formas, conectada aos ancestrais de cada cultura através dos séculos. Assim, os brincantes, menestréis do “Auto da Lua crescente” sintetizam ritmos populares com coreografia e alguma estilização. Incorporam aspectos simbólicos (como a corda do Círio, em referência à lenda da cobra grande) em suas características físicas, evidenciando sua importância contemporânea. O impacto visual é fundamental – ainda que seja válida uma dramaturgia mais delineada, a narrativa musical deve prevalecer na obra, que está em plena evolução.
12 de Novembro de 2015

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Pelos meus não olhos - Por Paula Barros

Autora da Crítica: Paula Adrianna Barros da Cruz – Discente do curso de Licenciatura Plena em Teatro da Universidade Federal do Pará.

Estava no intervalo de uma aula sentada com um colega de turma na lanchonete em frente ao Teatro Cláudio Barradas, quando algo me despertou a curiosidade: uma fila de aproximadamente trinta pessoas onde havia outras quinze ao redor vestidas de preto que orientavam aos que estavam na fila a tirar os sapatos; logo após eram vendados e organizados em grupos de quatro ou cinco pessoas. Não sabia que teria espetáculo naquela noite, pois era bem atípico já que se tratava de uma quarta-feira.
Acompanhamos a fila até que não resistimos e decidimos “matar” a aula para assistir o espetáculo. Fomos vendados. E primeiramente o sentido a ser despertado foi o tato: uma mão gelada e delicada tocava a minha, logo não sabia mais qual o sentido era usado, pois o vento batia em meu rosto, folhas que me pareciam ser de canela às vezes tocavam meus braços, rosto e cabelo. Senti um frio gostoso em meu corpo e sabia que já estava entrando no teatro, então pisava em folhas secas e uma voz cantava, e sabia que era ao vivo; ao longo do espetáculo as sensações me traziam frescor e bem-estar.
No entanto, apesar das explosões de sensações e do despertamento do que em algumas vezes nem sabemos que está lá como o tato, o olfato e a audição, algo me instigou a pensar o espetáculo; logo percebi que se tratava de um teatro inclusivo, mas não porque me vendaram e sim porque simplesmente era falado e discutido durante o espetáculo. Penso que naquele momento não havia necessidade, pois por diversas vezes o texto falado não me dizia nada, e se tornava excessivo, um reforço desnecessário, ou como diria o professor Edson Fernando, se tornou um discurso panfletário. A dramaturgia na linguagem teatral é um elemento fundamental, no entanto é necessário saber trabalhar para que não ocorram exageros, nesse caso a deficiência apareceu não nos olhos ou na cegueira, mas pela quantidade de informações. A dramaturgia tratava do modo de ver as coisas, com que olhos realmente enxergamos? Não sei bem mais do que falar sobre a dramaturgia, pois em alguns momentos ela me passou despercebida devido às sensações, um dos motivos pelo qual me posiciono da real necessidade desse discurso no espetáculo.
Outro apontamento que desejo fazer, é sobre a voz dos atores, algumas vezes se utilizava o microfone, e é importante saber usar este recurso, por vezes era gritado e não falado o texto, porém não somente no microfone, mais também os atores sem ele quando não gritavam, “rasgavam” a voz, e carregavam demais a interpretação na fala, tropeçavam nas palavras, e como costumamos falar no teatro “metralhavam”. A fala como principal meio de comunicação deve ser clara e bem articulada para que não haja ruídos no canal de comunicação, e o risco é que a mensagem pode não chegar como esperado ao receptor, principalmente quando o receptor está sem um dos sentidos, nesse caso a visão.
Ao fim da apresentação as vendas foram retiradas, e descobrir a visão novamente já meio turva devido ter ficado um bom tempo com os olhos tapados. Descobri então o nome do espetáculo: “Pelos olhos dela”, e o diretor e dramaturgo era Carlos Correia Santos que trouxe para o palco do Teatro Cláudio Barradas sua pesquisa sobre Teatro Inclusivo. Esta última informação soube no momento em que fui conversar com ele para falar pessoalmente do que achei; ele tentara se justificar da dramaturgia dizendo que nesse primeiro momento compreende o texto como informativo e levar as pessoas a conhecer a deficiência e as discussões da contemporaneidade.
Compreendo a justificativa de Carlos Correia, no entanto, o teatro sendo uma linguagem de gênero dramático e com todos os seus elementos extra verbais, reforço que tudo que é trabalhado nesses elementos deve ser cuidadosamente estudado e avaliado (não querendo dizer que isso não tenha ocorrido no espetáculo, apenas faço menção para questionar a real deficiência que percebi na apresentação). Carlos utiliza como elementos extras verbais os outros sentidos, o que já é informativo principalmente para aqueles que estão acostumados a ter a visão, e quando ele diz que deseja que as pessoas conheçam a deficiência ele já apresenta para elas no espetáculo, então qual a real necessidade de se falar da cegueira quando já não temos – provisoriamente – a visão?. Também é importante apontar que informações têm em demasia nas redes sociais, jornais e programas voltados para abordagem de temas sociais. O teatro é instigante, provocador e o objetivo primeiro é o de mostrar. Seria realmente importante e relevante se o espetáculo fosse totalmente sentido o que geraria um incômodo e traria o fio instigador para uma reflexão mais crítica e então ao final houvesse uma discussão sobre o que foi sentido e percebido e assim ele traria todo o seu conhecimento e explanação sendo o intermediador de um diálogo.
Paula Barros
06 de Novembro de 2015