sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Decifra-me E te devoro - Por Silvia Luz.

Silvia Luz: Atriz e Professora Mestre em Artes pelo PPGArtes/UFPA.

“O Homem é corda distendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia perigosa, temerário caminhar, perigosos olhar para trás, perigoso tremer e parar.” Nietzsche “Assim falou Zaratrusta”, 1883

Evoé é uma peça de teatro dirigida por Alexandre Luz, uma adaptação da obra As Bacantes, de Eurípedes. O que marcou a apresentação numa consideração nietzschiana é justamente os conceitos de Apolíneo e Dionisíaco, o bem e o mal, o sofrimento e alegria, a morte e a vida. Na Re-criação a luta entre contrários cria uma nova síntese, uma nova percepção.
Na entrada da boate Vênus algumas pessoas conversavam, fui abordada por um travesti e uma garota de programa, ambas me deram as boas-vindas. Fui ao caixa paguei a entrada e me ofereceram o cardápio do espaço. De repente surge uma figura extrovertida e engraçada pedindo para que nos organizássemos em duas filas: monas e bofes. Disse-nos que era proibido fotografar, filmar e a entrada de menores de 18 anos. Neste mesmo ambiente tem uma senhora cadeirante vendendo bombons, pelos trajes creio ser uma prostituta aposentada.
A figura extrovertida era o apresentador da boate, estava acompanhado de duas pessoas o Tijolo, o segurança da fila dos bofes e Marilda a segurança da fila das monas. Eles recebiam os tíquetes de entradas e nos convidavam para usufruir de todos os prazeres inimagináveis.
O cenário, ou melhor, uma boate, uma proposta de realidade, indício do naturalismo, segundo Patrice Pavis (2008) “a representação naturalista se dá como a própria realidade, e não como uma transposição artística no palco”. Havia uma coerência no espaço cênico; ao atravessar o espaço observei as mesas e fui sentar no banco ao lado do balcão, fui atendida pelo Valdemar. No bar haviam placas com os preços das bebidas e o melhor de tudo: bebemos de “verdade”! A cerveja geladíssima somente R$ 5,00. Comprei uma que estava “bunda de urso”, no ponto, o primeiro copo desceu como um veludo. Senti-me à vontade, nem parecia estar numa apresentação de teatro. Essa sacada foi fantástica, as jovens circulavam pelo recinto assediando os espectadores e algumas eram apenas garçonetes.
Outra sacada de mestre foi a solução para a manipulação da sonoplastia e iluminação, atrás do balcão estava Marilda (Vanda Lopes), a segurança, fazendo a condução da caixa de luz e o Alexandre, com um personagem que não lembro o nome, manipulando a parte da sonoplastia. Enquanto saboreava a bebida e o amendoim que foi grátis, o espetáculo rolava. Casa cheia, galera animada, apresentador eufórico, dono animado e dois elementos enchendo o saco: Miranda e sargento Tadeu.
O show na boate Vênus começa com a apresentação dos pratos do dia: Putas. Estas faziam striptease durante o show. A trama se dá com um homem chamado Mr. Johny que viveu muitos anos fora do Brasil, retorna com o intuito de vingar a morte de sua mãe, que fora assassinada pela família de Carmo, um cliente antigo da boate. Um jovem de modos afeminados, talvez, transexual. Chega em Belém nos anos de 1980 e assume a direção da boate Vênus, situada na feira do Ver-o-peso.
Assumir a direção desta casa já fazia parte da vingança traçada por ele contra o sargento Tadeu e sua família. O conflito entre Mr. Johny e o sargento Tadeu é o âmago dessa tragédia.
As Putas
As putas, o prato principal da boate, eram as meninas de Mr. Johny, as próprias bacantes, adoradoras e praticantes das orgias mais inesperadas e abençoadas por Baco, ainda tímidas, porém corajosas. Neste dia serviram três pratos: Michele Bang-Bang, (Caroline Dominguez), Ágatha Rabo de Peixe (Ivna Lamart) e Soraya Furacão (Vivianny Matos) e duas sobremesas: Moniky Albuquerque (Bonelley Pignatário) e Megara Ciccone (Lennon Bendelak). A performance de Moniky e Megara deixou a desejar, acredito que faltou a entrega, manifestar o lado dionisíaco, que estava dentro de cada uma delas. As Putas, ainda não totalmente à vontade, conseguiram conduzir a performance até o final, aplausos à elas. O conjunto da obra é um ensaio para um bacanal.
Sargento Tadeu e Mr. Johny
Na tragédia dionisíaca Tadeu poderia ser Penteu primo-irmão de Dionísio (no caso Mr. Johny). Em determinado momento os dois se enfrentam de modo clássico, embate entre a moral e o bacanal, onde o sargento zela pela moral e bons costumes. Nessa cena ficou notório a não propriedade do texto dramático. Corroborando com Patrice Pavis (2008) a tendência atual da escritura dramática é reivindicar não importa qual texto para uma eventual encenação. As palavras titubeavam na boca dos dois atuantes, e os “caralhos” ditos várias vezes sem entonação, os famosos cacos, não deram conta deixando o espectador a mercê dos encantos das putas que circulavam no espaço, em vários momentos do diálogo entre eles algo falava mais alto, ou a sonoplastia com músicas coerentes com tudo que estava acontecendo ou a naturalidade de algumas meninas e até mesmo a cerveja estupidamente gelada. Nesta cena Mr. Johny tendo tudo arquitetado, convence o jovem sargento a ficar na boate, para ele ver que o lugar não tem nada do que diz e que suas meninas lhe tratarão muito bem. Ele hesita, pois está fardado, porém Mr. Johny lhe dará outra roupa para vestir.
A vingança
O sargento tentado pelo desejo aceita o convite. Mr Johny impõe a condição de vesti-lo com uma roupa especial, um disfarce. Em outro momento volta com um casaco, máscara e totalmente embriagado rodeado de putas. Tudo estava pronto para a concretização da vingança.
É Ágatha a própria mãe, quem lhe serve o doce vinho da luxúria e da morte. Posto em uma cadeira, rodeado de mulheres começa a orgia, mulheres seminuas o apalpam e são apalpadas, uma delas tem seu seio chupado levando seus mamilos ao êxtase, beijam-se e inclusive sua própria mãe, que extasiada e embriagada não reconhece seu filho, pois o mesmo está mascarado.  Segue uma sessão de carícias e amassos, chupões até o sargento ficar totalmente nu; o bacanal segue e a plateia compactua. Tudo caminhava em harmonia, gestos, ações, sonoplastia até que surge uma cisão na cena. Em se tratando de As Bacantes – Evoé – um grito báquico, onde o êxtase é o equilíbrio, onde o ser humano sai de si, supostamente teria o deus Dioniso dentro de si – êxtase e entusiasmo – de onde deriva a condição do ser ator; aquele que se deixa possuir pelo deus, tornando-se – Outro.
O suposto rapaz em sua embriaguez de vinho e sexo, diante de peitões e peitinhos, bundas e vaginas, consegue manter seu pênis em verdadeiro estágio de repouso, agasalhado, surgindo talvez, o que chamo de apolíneo e o dionisíaco.  O membro não ereto quebra o suposto naturalismo proposto pela ambientação. - “O seu prazer é o nosso prazer”. Eis a questão: proposital, pudor ou censura?
Voltando a cena, de repente Ágatha derrama na boca do sargento o último cálice de vinho: o da morte. No meio da orgia ele cai da cadeira, êxtase? Todos olham para o corpo inerte no chão, silêncio! Gritos e risadas seguem a cena, quando Carmo entra e vê o corpo no chão tenta acudir e percebe de quem se trata, seu neto. Desesperado ele grita – está morto. Mr. Johny gargalha de felicidades, enquanto Ágatha ainda embriagada, ouve seu pai que faz perguntas para sair do delírio e tomar consciência do que fez. Voltando a si reconhece seu filho, morto por ela.

A desolação no espaço
Mr. Johny diante da tragédia brada o motivo de sua vingança, a morte de sua mãe, suas frustrações, traumas e por fim anuncia o fim da boate. Apagam-se as luzes e soam os aplausos.
O nu
A ousadia presente na apresentação é vital, mérito as atuantes que ficaram nuas no palco. Segundo Patrice Pavis (2008) “é difícil julgar o nu sem ser ou moralista, ou emocional e enumerar propriedades suas puramente estéticas”. Porque, o nu no teatro é diferente dos nus em outras artes, é feito na hora, aqui e agora, é um ser humano de carne e osso que está em nossa frente, o erotismo é inevitável diante de nossos olhos.
Sabe-se que o corpo nu nem sempre é erótico ou pornográfico, há uma coerência de significados, como no caso da cena do assassinato, onde o atuante estava nu e não exibia erotismo, pois era um corpo naquele momento designado à morte. O nu ainda é um antagonismo: o prazer e a dor. Na peça esse par antitético é presente. Somos apolíneos e dionisíacos – não se aceita sofrer, ninguém quer viver suas angústias, apenas fugimos de algo que nos machuca, será autodefesa? Hoje se tem medo do real, embora a normalidade atual é uma loucura assustadora. É necessário, segundo Nietzsche (1988) percorrer o caminho inverso, e ressaltar a importância de um resgate do Dionisíaco como forma de equilíbrio. Dionísio é o deus da falta de medidas e formas, da dor, da música, do sexo, da realidade tal como ela é – representada ou não por meio da arte.
Com muito prazer fui à boate Vênus e gostei.
Evoé!
Viva os outros Eus que se fazem presentes na embriaguez!!!

Silvia Luz
11.09.2015

Referências
PAVI, Patrice. Dicionário de Teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3. ed – São Paulo: Perspectiva, 2008.
NIETZSCHE, F. W. Assim falava Zaratrusta. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães, 1973
__________. A genealogia da moral (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

MARIANI, Caio. Apolíneo e Dionisíaco. 2013. Disponível em: . Acesso em 06/09/2015, às 22:50h.

Um comentário: