Silvia
Luz: Atriz e Professora Mestre em Artes pelo PPGArtes/UFPA.
“O Homem é corda
distendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia
perigosa, temerário caminhar, perigosos olhar para trás, perigoso tremer e
parar.” Nietzsche “Assim falou Zaratrusta”, 1883
Evoé
é uma peça de teatro dirigida por Alexandre Luz, uma adaptação da obra As Bacantes, de Eurípedes. O que marcou
a apresentação numa consideração nietzschiana é
justamente os conceitos de Apolíneo e Dionisíaco, o bem e o mal, o sofrimento e
alegria, a morte e a vida. Na Re-criação a luta entre contrários cria uma nova
síntese, uma nova percepção.
Na entrada da boate Vênus algumas
pessoas conversavam, fui abordada por um travesti e uma garota de programa,
ambas me deram as boas-vindas. Fui ao caixa paguei a entrada e me ofereceram o
cardápio do espaço. De repente surge uma figura extrovertida e engraçada
pedindo para que nos organizássemos em duas filas: monas e bofes. Disse-nos que
era proibido fotografar, filmar e a entrada de menores de 18 anos. Neste mesmo
ambiente tem uma senhora cadeirante vendendo bombons, pelos trajes creio ser
uma prostituta aposentada.
A figura extrovertida era o
apresentador da boate, estava acompanhado de duas pessoas o Tijolo, o segurança
da fila dos bofes e Marilda a segurança da fila das monas. Eles recebiam os
tíquetes de entradas e nos convidavam para usufruir de todos os prazeres
inimagináveis.
O cenário, ou melhor, uma boate, uma
proposta de realidade, indício do naturalismo, segundo Patrice Pavis (2008) “a
representação naturalista se dá como a própria realidade, e não como uma transposição
artística no palco”. Havia uma coerência no espaço cênico; ao atravessar o
espaço observei as mesas e fui sentar no banco ao lado do balcão, fui atendida
pelo Valdemar. No bar haviam placas com os preços das bebidas e o melhor de
tudo: bebemos de “verdade”! A cerveja geladíssima somente R$ 5,00. Comprei uma
que estava “bunda de urso”, no ponto, o primeiro copo desceu como um veludo.
Senti-me à vontade, nem parecia estar numa apresentação de teatro. Essa sacada
foi fantástica, as jovens circulavam pelo recinto assediando os espectadores e
algumas eram apenas garçonetes.
Outra sacada de mestre foi a
solução para a manipulação da sonoplastia e iluminação, atrás do balcão estava
Marilda (Vanda Lopes), a segurança, fazendo a condução da caixa de luz e o
Alexandre, com um personagem que não lembro o nome, manipulando a parte da
sonoplastia. Enquanto saboreava a bebida e o amendoim que foi grátis, o
espetáculo rolava. Casa cheia, galera animada, apresentador eufórico, dono
animado e dois elementos enchendo o saco: Miranda e sargento Tadeu.
O show na boate Vênus começa com
a apresentação dos pratos do dia: Putas. Estas faziam striptease durante o show. A trama se dá com um
homem chamado Mr. Johny que viveu muitos anos fora do Brasil, retorna com o
intuito de vingar a morte de sua mãe, que fora assassinada pela família de
Carmo, um cliente antigo da boate. Um jovem de modos afeminados, talvez,
transexual. Chega em Belém nos anos de 1980 e assume a direção da boate Vênus,
situada na feira do Ver-o-peso.
Assumir a direção desta
casa já fazia parte da vingança traçada por ele contra o sargento Tadeu e sua
família. O conflito entre Mr. Johny e o sargento Tadeu é o âmago dessa
tragédia.
As Putas
As putas, o prato
principal da boate, eram as meninas de Mr. Johny, as próprias bacantes,
adoradoras e praticantes das orgias mais inesperadas e abençoadas por Baco,
ainda tímidas, porém corajosas. Neste dia serviram três pratos: Michele Bang-Bang,
(Caroline Dominguez), Ágatha Rabo de Peixe (Ivna Lamart) e Soraya Furacão
(Vivianny Matos) e duas sobremesas: Moniky Albuquerque (Bonelley Pignatário) e
Megara Ciccone (Lennon Bendelak). A performance de Moniky e Megara deixou a
desejar, acredito que faltou a entrega, manifestar o lado dionisíaco, que
estava dentro de cada uma delas. As Putas, ainda não totalmente à vontade,
conseguiram conduzir a performance
até o final, aplausos à elas. O conjunto da obra é um ensaio para um bacanal.
Sargento Tadeu e Mr. Johny
Na tragédia dionisíaca Tadeu
poderia ser Penteu primo-irmão de Dionísio (no caso Mr. Johny). Em determinado
momento os dois se enfrentam de modo clássico, embate entre a moral e o
bacanal, onde o sargento zela pela moral e bons costumes. Nessa cena ficou
notório a não propriedade do texto dramático. Corroborando com Patrice Pavis
(2008) a tendência atual da escritura dramática é reivindicar não importa qual
texto para uma eventual encenação. As palavras titubeavam na boca dos dois
atuantes, e os “caralhos” ditos várias vezes sem entonação, os famosos cacos, não
deram conta deixando o espectador a mercê dos encantos das putas que circulavam
no espaço, em vários momentos do diálogo entre eles algo falava mais alto, ou a
sonoplastia com músicas coerentes com tudo que estava acontecendo ou a
naturalidade de algumas meninas e até mesmo a cerveja estupidamente gelada. Nesta
cena Mr. Johny tendo tudo arquitetado, convence o jovem sargento a ficar na
boate, para ele ver que o lugar não tem nada do que diz e que suas meninas lhe
tratarão muito bem. Ele hesita, pois está fardado, porém Mr. Johny lhe dará
outra roupa para vestir.
A vingança
O sargento tentado pelo
desejo aceita o convite. Mr Johny impõe a condição de vesti-lo com uma roupa
especial, um disfarce. Em outro momento volta com um casaco, máscara e totalmente
embriagado rodeado de putas. Tudo estava pronto para a concretização da vingança.
É Ágatha a própria mãe,
quem lhe serve o doce vinho da luxúria e da morte. Posto em uma cadeira, rodeado
de mulheres começa a orgia, mulheres seminuas o apalpam e são apalpadas, uma
delas tem seu seio chupado levando seus mamilos ao êxtase, beijam-se e
inclusive sua própria mãe, que extasiada e embriagada não reconhece seu filho,
pois o mesmo está mascarado. Segue uma
sessão de carícias e amassos, chupões até o sargento ficar totalmente nu; o bacanal
segue e a plateia compactua. Tudo caminhava em harmonia, gestos, ações,
sonoplastia até que surge uma cisão na cena. Em se tratando de As Bacantes –
Evoé – um grito báquico, onde o êxtase é o equilíbrio, onde o ser humano sai de
si, supostamente teria o deus Dioniso dentro de si – êxtase e entusiasmo – de
onde deriva a condição do ser ator; aquele que se deixa possuir pelo deus,
tornando-se – Outro.
O suposto rapaz em sua
embriaguez de vinho e sexo, diante de peitões e peitinhos, bundas e vaginas,
consegue manter seu pênis em verdadeiro estágio de repouso, agasalhado,
surgindo talvez, o que chamo de apolíneo e o dionisíaco. O membro não ereto quebra o suposto
naturalismo proposto pela ambientação. - “O seu prazer é o nosso prazer”. Eis a
questão: proposital, pudor ou censura?
Voltando a cena, de
repente Ágatha derrama na boca do sargento o último cálice de vinho: o da
morte. No meio da orgia ele cai da cadeira, êxtase? Todos olham para o corpo
inerte no chão, silêncio! Gritos e risadas seguem a cena, quando Carmo entra e
vê o corpo no chão tenta acudir e percebe de quem se trata, seu neto.
Desesperado ele grita – está morto. Mr. Johny gargalha de felicidades, enquanto
Ágatha ainda embriagada, ouve seu pai que faz perguntas para
sair do delírio e tomar consciência do que fez. Voltando a si reconhece
seu filho, morto por ela.
A desolação no espaço
Mr. Johny diante da
tragédia brada o motivo de sua vingança, a morte de sua mãe, suas frustrações,
traumas e por fim anuncia o fim da boate. Apagam-se as luzes e soam os
aplausos.
O nu
A ousadia presente na
apresentação é vital, mérito as atuantes que ficaram nuas no palco. Segundo
Patrice Pavis (2008) “é difícil julgar o nu sem ser ou moralista, ou emocional
e enumerar propriedades suas puramente estéticas”. Porque, o nu no teatro é diferente
dos nus em outras artes, é feito na hora, aqui e agora, é um ser humano de
carne e osso que está em nossa frente, o erotismo é inevitável diante de nossos
olhos.
Sabe-se que o corpo nu
nem sempre é erótico ou pornográfico, há uma coerência de significados, como no
caso da cena do assassinato, onde o atuante estava nu e não exibia erotismo,
pois era um corpo naquele momento designado à morte. O nu ainda é um
antagonismo: o prazer e a dor. Na peça esse par antitético é presente. Somos
apolíneos e dionisíacos – não se aceita sofrer, ninguém quer viver suas angústias,
apenas fugimos de algo que nos machuca, será autodefesa? Hoje se tem medo do
real, embora a normalidade atual é uma loucura assustadora. É necessário,
segundo Nietzsche (1988) percorrer o caminho inverso, e ressaltar a importância
de um resgate do Dionisíaco como forma de equilíbrio. Dionísio é o deus da
falta de medidas e formas, da dor, da música, do sexo, da realidade tal como
ela é – representada ou não por meio da arte.
Com muito prazer fui à
boate Vênus e gostei.
Viva
os outros Eus que se fazem presentes na embriaguez!!!
Silvia
Luz
11.09.2015
Referências
PAVI,
Patrice. Dicionário de Teatro;
tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia
Pereira. 3. ed – São Paulo: Perspectiva, 2008.
NIETZSCHE,
F. W. Assim falava Zaratrusta. Trad.
Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães, 1973
__________. A
genealogia da moral (P.
C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
MARIANI,
Caio. Apolíneo e Dionisíaco. 2013.
Disponível em: . Acesso em 06/09/2015, às 22:50h.
Você realmente gostou da cerveja né?
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