quarta-feira, 23 de setembro de 2015

ENTRE OS DOIS MUNDOS - Por Roberta Castro

ROBERTA CASTRO: Intérprete-criadora em Dança da Companhia Experimental de Dança Waldete Brito, Técnica e graduanda em Dança pela Universidade Federal do Pará e Licenciada em Estudos Artísticos pela Universidade de Coimbra em Portugal, Bolsista PIBEX pelo projeto TRIBUNA DO CRETINO.
O mundo se desintegra a minha volta. Minha conexão com o mundo em crise permanece tênue e remota. Eu consigo prever um tempo que essa relação remota deve acabar necessariamente, no entanto não consigo prever exatamente quando isso vai acontecer, ou quais serão as circunstâncias que me incitarão a um tipo de ação diferente. (FERNANDES, 2013, pág 3)
O mundo que se desintegra é o da realidade porque fui levada por esta obra que me deixou num estado de transi onde o real e o imaginado se confundiam pela forma como as dramaturgias se cruzaram: a dramaturgia do corpo, do texto, do cenário, da cenoplastia que marcam uma identidade bem peculiar nessa obra.
Segundo Marila Velloso (2010 – pág. 191) dramaturgia na dança é a relação de sentido que o artista organiza com a diversidade de materiais que podem ser utilizados além do corpo e do movimento, como o uso de texto, objeto, suporte teórico, imagem, projeção entre outras possibilidades. É o modo como o artista organiza e articula cada elemento com signos que englobados geram a significação de um todo.
A Artista-pesquisadora, Doutoranda em Educação pelo PROPPG/ PUC- Minas e então diretora da Ribalta Companhia de Dança, Mayrla Andrade consegue articular com eficiência esses elementos e signos quando coloca o espectador a vivenciar Retratações (espetáculo da Ribalta Companhia de Dança) pela via da imaginação. Propõe a entrada do público por  uma ponte composta de várias caixas de feira acompanhada de um fundo musical que produz o som de água aonde os intérpretes vêm até a portaria e recitam alguns poemas, é um convite  para um devaneio. Quando o espectador atravessa a ponte e entrega o tiket do espetáculo a sensação é de se está chegando no cais do porto onde o barco no fim dessa entrada é quem nos dá uma carona para essa viagem.
Vestidos, calças, saias, camisas,  sapatilhas, fotos, cortina, caixas são os elementos que  indicam ser a experiência de cada intérprete, pendurados, estão lá para despertar lembranças de todos os envolvidos nesse espaço, os que fazem e os que veêm. Esses elementos cênicos também tornam-se o figurino para alguns dos intérpretes que trocam a roupa na própria cena. Nota-se que a quantidade de figurino pendurado na coxia é proporcional a quantidade de intérpretes, o que acaba sendo desnecessário porquê esse excesso suja a composição cênica mesmo que a sua funcionalidade seja exposta. Já a combinação da maquiagem em desenho de raiz e cabelos soltos, fazem todo o sentido a esses corpos que correspondem a proposta dramatúrgica da artista.
A entrada do público, a maquiagem e a projeção no fundo do palco projetando o mapa no Município de Ananideua, revelam uma relação afetiva e problematizadora dos intérpretes com este lugar. A gestualidade de deslizar de uma mão que vem desde a barriga chegando até a boca lançando-o para fora desse corpo,  falas incompreensíveis e projeção do mapa prenuncia ao caos que é a viagem por esse lugar.
Com estes indicativos era possível identificar a fonte de onde alguns dos movimentos eram extraídos. Os intérpretes faziam a gestualidade de andar com a costa curvada, passo arrastado miúdo e a saia esticada onde ia uma mão na frente e outra atrás, finalizando com a soltura desses braços e  respiração que remete a experiência de andar pela feira carregando duas sacolas expressando impaciência com a situação. A imagem que me refiro é a dos intérpretes na cena a qual não tinha uma relação de imitação com o que acontecia na projeção no fundo do palco, mas equiparava-se a essa idéia devido a combinação destas gestualidades com a projeção a qual apresentava o cotidiano das típicas feiras populares que se tornou cenário para esse acontecimento cênico.
Reconhece-se então alguns dos pontos de partida para a criação que é levado ao extremo tendo sido trabalhado e esculpido para o que se resulta na composição coreográfica como foi o caso do momento descrito no parágrafo anterior. É num processo de passagem do material na sua forma pura à representação que situações comuns são dilatadas transfiguradas à signos.
Uma composição coreográfica não se resume a ordem de movimento e nem tão pouco uma ordem de formas, pois os elementos figurativos são objetos eleitos do entendimento que imitem algum significado. São gestos que se entrelaçam de modo contínuo, energético e intensional que variam de direção, nível e plano num espaço e tempo, ganhando formas e significados de acordo com a vontade do coreógrafo.
Assim apresentou a Ribalta Companhia de Dança. Variação de direções, níveis e planos, criou-se uma sinfonia de movimentos com entradas, saídas e permanências de solos, duos, quartetos e grupo, que trafegaram a face do espectador sob formas que se dissolviam sem que percebesse. Eram formas que apresentavam conteúdo provando que o trabalho teve todo uma pesquisa de movimento, tornando assim uma composição completa. Porém, nem sempre foi assim, houveram passagens de células coreográficas que eram apenas o movimento pelo o movimento como a lançamento de pernas, o uso da flexibilidade, alguns saltos e giros que só não foi perdido porque a intérprete apresentava uma certa força interpretativa que camuflava essas formas vazias e também pela força da própria cena.
O uso de vídeos funcionou em determinadas situações como a projeção dos mapas e  da feira, inoportuno foi quando projetado o vídeo da coreográfica gravada numa ilha localizada aos arredores do Município de Ananideua, segundo a fala da diretora no fim do espetáculo. Não havia relação alguma da gravação com a composição posta em cena, eram composições distintas que raramente se relacionavam, numa célula coreográfica ou outra criava-se um contraste de níveis entre projeção e palco, mas nada que pudesse sustentar os dois planos propostos.  Penso que o uso de vídeo que contém uma composição coreográfica contrapondo a uma outra simultaneamente sem nenhuma conexão na cena requer alguns cuidados, usado inadequadamente pode acontecer ruídos na transmissão da mensagem. Funciona quando esse uso é a extensão do que acontece no palco como aconteceu na projeção da feira.
Portanto, falar do trabalho da Ribalta Companhia de Dança é abrir todos os poros para receber poesia através de movimento, é olhar sob uma ótica que não faz parte do sensu comum, é se tornar acessível à sentimentos mais profundos despertado por essa linguagem artística a qual essa artista desenvolve transportando o expectador para um outro plano que não é o de simplesmente estar sentado na platéia.
22.09.2015
BIBLIOGRAFIA
DANAN, J. O que é dramaturgia?. Editora: Licorne, 2010.
VELLOSO, Marila. Dramaturgia na dança: investigação no corpo e ambientes de existência.  Revista: Usp. Sala Preta, 2010.
FERNANDES, Mariana Patrício. “A realidade que resiste”: a relação entre o espectador e a dança em trio a de Yvone Rayner. Revista: O persevejo online.Vol: 5, Nº 1 PUC-Rio, 2013.

ALVES, Flávio Soares. Composição Coreográfica: traços furtivos de dança. Revista: Tfc. Edição 01, Ano 2007.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Entre rosas, vento e a deslocação da arte

Bernard Freire: Ator e Graduando em Licenciatura em Teatro UFPA. 

A sombra dança na tela cujos movimentos desenham imagens. São corpos dilacerados por um foco de luz que se esbarra no lençol.  É a energia antes de entrar em cena, é um silencio de imagem. É a expressão que brinca com sons, é aquela ansiedade que só se acalma quando a luz apaga e o filme começa. É a caixa preta high tech, é a ''ROSA DOS VENTOS: Entre Miragens e Mirações''. Espetáculo montado pela Trupe Perifeéricos que convida o público a entrar numa fábula de magias e encantos. Se perdendo entre flores e poesias. Modificando a presença do ator entre realidade e mídia. Substituindo o palco pela tela, onde a cenografia apresenta o real-ficcional, um filme que está sendo gravado agora.
Dentro dessa caixa a Trupe se desconfigura em atuação, desobedece à comunicação presencial, muda o foco, te coloca em outros horizontes e te faz perder a vida de perto. Traz uma dramaturgia marcada pelo vídeo que logo surge em cena onde o teatro vivo fica suspenso e acaba sendo uma ilusão. A Rosa é esse deslocamento, não tem ponto fixo, é perdida no vento. É uma miragem que coloca o público num sonho, mistura o som com o olhar do caleidoscópio e brilha na explosão da informação, é “multiplicação de signos no aparecimento de formas e no retorno do artifício que se anuncia como tal”. (AMIARD-CH EVREL, 1990, p. 10)
O espetáculo começa sendo rodado numa projeção onde o corpo do Dermond se distorce, mostra um desentendimento de lugar, eleva o pensamento e se bagunça como o vento. Esse desentendimento de lugar mostra uma reconstrução teatral, coloca um vídeo no meio do palco e se sustenta em duas linhas que converge entre história e espaço. Coloca o público no ar, voa, traz de volta para cena e abre para mundo. Onde se dá o espetáculo? O que estou assistindo?

A presença de duas linguagens tira um e põem outro, balança no real-ficcional, substitui o texto teatral pela utilização de recursos audiovisuais como prática de dialogo. Mostra uma bagunça de lugar e deixa o sentido das assombrações no silêncio do palco, bem quieto e só se apresenta quando os atores estão em cena. Traz uma verdade bem disfarçada que a projeção esconde na retina. Ali ela se expande e coloca o teatro como reprodutor da fábula; mostra quem é soberano e faz tudo isso funcionar colocando em evidencia sua influencia no nascimento da sétima arte.

Bernard Freire
22.03.2015

Referência Bibliográfica
AMIARD-CH EVREL, Claudine.Frèresennemis ou fauxfrères? (théâtreetcinéma avant leparlant). In: Théâtreetcinémaannéesvingt. Tome 1. Paris: L’âgeD’Homme, 1990, p. 10.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Encantarias - Por Silvia Luz

Silvia Luz: Atriz e Professoa Mestre em Artes pelo PPGArtes - ICA/UFPA. 
[...] Num terreiro de Oxum
Os tambores sagrados
Bateram pra mim.
[...] Sou iluminada, eu sou,
Sou de Keto sim (Roque Ferreira)

Corpos pequenos nos recebiam harmonicamente. Adentrar ao espaço foi um convite para o olhar para dentro de si. Corpos e saias circulavam num imenso corredor. Luzes apagam-se, eis que surge um corpo na parte de cima do teatro, luz!!! Uma senhora? Nanã? Meus olhos vidrados acompanhavam seu andar, eis que de sua saia, saem mais cinco saias que são entregues aos atuantes que estavam embaixo, no palco.
Nós ficamos sentados nas laterais e as cenas aconteciam entre a duas laterais, um túnel do tempo; no meio de uma lateral ficava o sonoplasta que ao vivo nos embalava com sons que nos remetiam para diversos lugares do passado ao futuro. Tudo acontecia sem truques, era o corpo que dilatava e tomava conta de mim e do espaço. Confesso que no início ao vê-los tão esmirrados, pensei: Não vão dar conta da potência que o espaço cênico e a sonoplastia trazem.
Três moças e três rapazes, uma relação equilibrada de energias. Os tambores anunciam a presença dos Orixás e caboclos. Em cena esses corpos esmirrados cresceram de uma forma que arremessavam em meu peito sua potência, de tão forte, a energia voltava para eles, os olhos vidrados, uma sincronia que mexia comigo. Segundo a antropologia teatral de BARBA (1995), o espectador é afetado fisicamente pelo nível pré-expressivo do corpo do ator e da representação. Senti-me na cena, dancei, suei, gritei, extasiei-me.
A pré-expressividade preocupa-se em deixar a energia do ator cenicamente viva, ou seja, de manter no ator uma presença que atraia imediatamente a atenção do espectador. Essa energia cenicamente viva é o denominado nível pré-expressivo.  
Corroborando com Barba, “a expressão do ator, de fato, deriva – quase apesar dele – de suas ações, do uso de sua presença física. É o fazer, e o como é feito, que determina o que o ator expressa.” (1995, p. 187).  O ator tem vida em cena, a atuante que fez Oxum dilatou de uma forma que seu corpo irradiava vida pelos poros, sua segurança e presença me tencionavam psicofisicamente, isso segundo Pavis (2008) “é o nível Kinestésico que diz respeito à comunicação entre atores e espectadores, como, por exemplo, a tensão do corpo do ator ou a impressão que uma cena pode causar ‘fisicamente’ no público”.
Da Cabeça aos pés faz jus ao vocábulo “Espetáculo”. A sensibilidade e a inteligência para criar algo tão intenso e impactante, simplesmente com uma atuação compromissada com àquilo que se está fazendo aqui e agora; a voz era a extensão do corpo, inundou o espaço como uma fumaça. Os jovens atuantes revelaram-se a si mesmos ali diante de nós espectadores, a capacidade criadora da direção de fugir do senso comum dos rituais de terreiros e ainda trazer nossa história, foi algo que enriqueceu a performance de todos. O conjunto da obra foi excepcional, permito-me dizer que o Boi-bumbá que ali estava na presença do boiadeiro e das músicas cantadas, que o Erê que contava histórias me fez perceber universos aparentemente distantes tão intrínsecos.
A atuação cênica e a sonoplastia foi algo que se completou de uma forma mágica. A iluminação precisa, e graças a ela os meus sentidos foram despertados. A apresentação totalmente sinestésica, pois teve cheiro, cor, forma, som e gosto. O corpo falava, pulsava, as cores tinham cheiro, a face de Oxum me devorava, sentia minhas entranhas ofegando a cada movimento dela. Iemanjá me levava nos braços com sua luz irradiada não sei de onde, inexplicável. Dom Sebastião saiu das águas para contar seu paradeiro, reinou ali diante de todos. O corpo era a voz que ecoava o Touro que brilhou pelos olhos do Boi Bumbá.
A apresentação estava tão pulsante que enquanto espectadora queria mais. Em um determinado momento entrou uma projeção no espaço: o datashow lançara imagens com depoimentos de pessoas, no fundo do teatro. Nesse momento os espectadores pareceram sair de um sono profundo e começaram a conversar, uns pegaram o celular, olharam, sussurravam, enquanto a projeção rolava. Não demorou, mas poderia ser mais breve. Mas isso em nenhum momento comprometeu o vigor do espetáculo.
Para finalizar uma chuva de papel picado amarelo caindo sobre nossas cabeças, os papeis tinham cheiro e nesse momento senti-me na procissão do Círio de Nazaré. O que é isso? Magnífico!!!
Vivemos numa escassez de quase tudo, de amor, gentilezas, afetividade, respeito, mas o que vivi hoje é uma fartura inexplicável de tudo isso, sinestesias múltiplas. Mergulhei no meu, no teu, no nosso mar de Rio e saí revigorada. Um espetáculo que arrepiou da cabeças aos pés, de cima para baixo, de dentro para fora. Gosto dessa entrega. GEMTE se faz com gente.

Bravíssimo!!!
Por Silvia Luz
20.09.2015

Referências
PAVI, Patrice. Dicionário de Teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3. ed – São Paulo: Perspectiva, 2008.

BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator. São Paulo/Campinas: Hucitec/Unicamp, 1995.

domingo, 20 de setembro de 2015

Trunfo – O Jogo. Por Geane Oliveira

Geane Oliveira: Atriz Graduanda em Teatro / UFPA.  

Onde vamos jogar? O cenário nos convida ao picadeiro instalado na sombra de uma árvore que compõe a paisagem da Praça da República, em seus galhos estão aparelhos de acrobacias aéreas: lira, tecido aéreo e trapézio. Vamos começar!Três viajantes vêm ao centro do picadeiro através dos aparelhos, o texto das atuantes é um convite para uma viagem, essa terá seus rumos decidido através do jogo de cartas do tarô, onde cinco são escolhidas pelo público.
É neste lugar e assim que o Projeto Vertigem apresenta seu processo de experimentação, onde encontro liberdade para meus devaneios, os quais se deparam com dois elementos que considero importante destacar: o texto e as partituras corporais. O texto é fragmentado dando assas a viagem proposta no inicio da apresentação, o espectador não está preso a construção lógica da cena mais se permiti fruir através das palavras. As partituras corporais vêm carregadas de movimentos da dança e do circo, com ritmos e fluxos diferentes, formando imagens que também estão para ser fruídas.
Não encontro fragilidades quando analiso esses elementos de forma separada, porém no encontro de texto e partitura há fissuras, e estas enfraquecem o jogo entre as atrizes. O texto fragmentado não causaria incomodo se tivesse apenas que ser dito, porém tenho em cena um corpo cheio de vigor e por vezes distorcido nos aparelhos de acrobacias, mas não há um aproveitamento deste estado alterado na exploração do texto. Encontro imagens nos aparelhos acrobáticos que com a sonoplastia e a iluminação transportam a apresentação ao universo da dança, e quando isto ocorre é compreensivo. No entanto, minha inquietação ainda está quando tenho a partitura e texto tentando compor as cenas, sinto uma distância entre esses elementos de forma tão visível que o jogo perde o ritmo. 
Essa experimentação presenteia seu público com o visual, mas acredito que seja válido experimentar além da estética. Sou convidada a um jogo que não tenho participação. Logo espero das jogadoras destreza com os elementos que compõe o jogo.

Esse é o jogo da experimentação, Trunfo!
20.09.2015 

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Decifra-me E te devoro - Por Silvia Luz.

Silvia Luz: Atriz e Professora Mestre em Artes pelo PPGArtes/UFPA.

“O Homem é corda distendida entre o animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia perigosa, temerário caminhar, perigosos olhar para trás, perigoso tremer e parar.” Nietzsche “Assim falou Zaratrusta”, 1883

Evoé é uma peça de teatro dirigida por Alexandre Luz, uma adaptação da obra As Bacantes, de Eurípedes. O que marcou a apresentação numa consideração nietzschiana é justamente os conceitos de Apolíneo e Dionisíaco, o bem e o mal, o sofrimento e alegria, a morte e a vida. Na Re-criação a luta entre contrários cria uma nova síntese, uma nova percepção.
Na entrada da boate Vênus algumas pessoas conversavam, fui abordada por um travesti e uma garota de programa, ambas me deram as boas-vindas. Fui ao caixa paguei a entrada e me ofereceram o cardápio do espaço. De repente surge uma figura extrovertida e engraçada pedindo para que nos organizássemos em duas filas: monas e bofes. Disse-nos que era proibido fotografar, filmar e a entrada de menores de 18 anos. Neste mesmo ambiente tem uma senhora cadeirante vendendo bombons, pelos trajes creio ser uma prostituta aposentada.
A figura extrovertida era o apresentador da boate, estava acompanhado de duas pessoas o Tijolo, o segurança da fila dos bofes e Marilda a segurança da fila das monas. Eles recebiam os tíquetes de entradas e nos convidavam para usufruir de todos os prazeres inimagináveis.
O cenário, ou melhor, uma boate, uma proposta de realidade, indício do naturalismo, segundo Patrice Pavis (2008) “a representação naturalista se dá como a própria realidade, e não como uma transposição artística no palco”. Havia uma coerência no espaço cênico; ao atravessar o espaço observei as mesas e fui sentar no banco ao lado do balcão, fui atendida pelo Valdemar. No bar haviam placas com os preços das bebidas e o melhor de tudo: bebemos de “verdade”! A cerveja geladíssima somente R$ 5,00. Comprei uma que estava “bunda de urso”, no ponto, o primeiro copo desceu como um veludo. Senti-me à vontade, nem parecia estar numa apresentação de teatro. Essa sacada foi fantástica, as jovens circulavam pelo recinto assediando os espectadores e algumas eram apenas garçonetes.
Outra sacada de mestre foi a solução para a manipulação da sonoplastia e iluminação, atrás do balcão estava Marilda (Vanda Lopes), a segurança, fazendo a condução da caixa de luz e o Alexandre, com um personagem que não lembro o nome, manipulando a parte da sonoplastia. Enquanto saboreava a bebida e o amendoim que foi grátis, o espetáculo rolava. Casa cheia, galera animada, apresentador eufórico, dono animado e dois elementos enchendo o saco: Miranda e sargento Tadeu.
O show na boate Vênus começa com a apresentação dos pratos do dia: Putas. Estas faziam striptease durante o show. A trama se dá com um homem chamado Mr. Johny que viveu muitos anos fora do Brasil, retorna com o intuito de vingar a morte de sua mãe, que fora assassinada pela família de Carmo, um cliente antigo da boate. Um jovem de modos afeminados, talvez, transexual. Chega em Belém nos anos de 1980 e assume a direção da boate Vênus, situada na feira do Ver-o-peso.
Assumir a direção desta casa já fazia parte da vingança traçada por ele contra o sargento Tadeu e sua família. O conflito entre Mr. Johny e o sargento Tadeu é o âmago dessa tragédia.
As Putas
As putas, o prato principal da boate, eram as meninas de Mr. Johny, as próprias bacantes, adoradoras e praticantes das orgias mais inesperadas e abençoadas por Baco, ainda tímidas, porém corajosas. Neste dia serviram três pratos: Michele Bang-Bang, (Caroline Dominguez), Ágatha Rabo de Peixe (Ivna Lamart) e Soraya Furacão (Vivianny Matos) e duas sobremesas: Moniky Albuquerque (Bonelley Pignatário) e Megara Ciccone (Lennon Bendelak). A performance de Moniky e Megara deixou a desejar, acredito que faltou a entrega, manifestar o lado dionisíaco, que estava dentro de cada uma delas. As Putas, ainda não totalmente à vontade, conseguiram conduzir a performance até o final, aplausos à elas. O conjunto da obra é um ensaio para um bacanal.
Sargento Tadeu e Mr. Johny
Na tragédia dionisíaca Tadeu poderia ser Penteu primo-irmão de Dionísio (no caso Mr. Johny). Em determinado momento os dois se enfrentam de modo clássico, embate entre a moral e o bacanal, onde o sargento zela pela moral e bons costumes. Nessa cena ficou notório a não propriedade do texto dramático. Corroborando com Patrice Pavis (2008) a tendência atual da escritura dramática é reivindicar não importa qual texto para uma eventual encenação. As palavras titubeavam na boca dos dois atuantes, e os “caralhos” ditos várias vezes sem entonação, os famosos cacos, não deram conta deixando o espectador a mercê dos encantos das putas que circulavam no espaço, em vários momentos do diálogo entre eles algo falava mais alto, ou a sonoplastia com músicas coerentes com tudo que estava acontecendo ou a naturalidade de algumas meninas e até mesmo a cerveja estupidamente gelada. Nesta cena Mr. Johny tendo tudo arquitetado, convence o jovem sargento a ficar na boate, para ele ver que o lugar não tem nada do que diz e que suas meninas lhe tratarão muito bem. Ele hesita, pois está fardado, porém Mr. Johny lhe dará outra roupa para vestir.
A vingança
O sargento tentado pelo desejo aceita o convite. Mr Johny impõe a condição de vesti-lo com uma roupa especial, um disfarce. Em outro momento volta com um casaco, máscara e totalmente embriagado rodeado de putas. Tudo estava pronto para a concretização da vingança.
É Ágatha a própria mãe, quem lhe serve o doce vinho da luxúria e da morte. Posto em uma cadeira, rodeado de mulheres começa a orgia, mulheres seminuas o apalpam e são apalpadas, uma delas tem seu seio chupado levando seus mamilos ao êxtase, beijam-se e inclusive sua própria mãe, que extasiada e embriagada não reconhece seu filho, pois o mesmo está mascarado.  Segue uma sessão de carícias e amassos, chupões até o sargento ficar totalmente nu; o bacanal segue e a plateia compactua. Tudo caminhava em harmonia, gestos, ações, sonoplastia até que surge uma cisão na cena. Em se tratando de As Bacantes – Evoé – um grito báquico, onde o êxtase é o equilíbrio, onde o ser humano sai de si, supostamente teria o deus Dioniso dentro de si – êxtase e entusiasmo – de onde deriva a condição do ser ator; aquele que se deixa possuir pelo deus, tornando-se – Outro.
O suposto rapaz em sua embriaguez de vinho e sexo, diante de peitões e peitinhos, bundas e vaginas, consegue manter seu pênis em verdadeiro estágio de repouso, agasalhado, surgindo talvez, o que chamo de apolíneo e o dionisíaco.  O membro não ereto quebra o suposto naturalismo proposto pela ambientação. - “O seu prazer é o nosso prazer”. Eis a questão: proposital, pudor ou censura?
Voltando a cena, de repente Ágatha derrama na boca do sargento o último cálice de vinho: o da morte. No meio da orgia ele cai da cadeira, êxtase? Todos olham para o corpo inerte no chão, silêncio! Gritos e risadas seguem a cena, quando Carmo entra e vê o corpo no chão tenta acudir e percebe de quem se trata, seu neto. Desesperado ele grita – está morto. Mr. Johny gargalha de felicidades, enquanto Ágatha ainda embriagada, ouve seu pai que faz perguntas para sair do delírio e tomar consciência do que fez. Voltando a si reconhece seu filho, morto por ela.

A desolação no espaço
Mr. Johny diante da tragédia brada o motivo de sua vingança, a morte de sua mãe, suas frustrações, traumas e por fim anuncia o fim da boate. Apagam-se as luzes e soam os aplausos.
O nu
A ousadia presente na apresentação é vital, mérito as atuantes que ficaram nuas no palco. Segundo Patrice Pavis (2008) “é difícil julgar o nu sem ser ou moralista, ou emocional e enumerar propriedades suas puramente estéticas”. Porque, o nu no teatro é diferente dos nus em outras artes, é feito na hora, aqui e agora, é um ser humano de carne e osso que está em nossa frente, o erotismo é inevitável diante de nossos olhos.
Sabe-se que o corpo nu nem sempre é erótico ou pornográfico, há uma coerência de significados, como no caso da cena do assassinato, onde o atuante estava nu e não exibia erotismo, pois era um corpo naquele momento designado à morte. O nu ainda é um antagonismo: o prazer e a dor. Na peça esse par antitético é presente. Somos apolíneos e dionisíacos – não se aceita sofrer, ninguém quer viver suas angústias, apenas fugimos de algo que nos machuca, será autodefesa? Hoje se tem medo do real, embora a normalidade atual é uma loucura assustadora. É necessário, segundo Nietzsche (1988) percorrer o caminho inverso, e ressaltar a importância de um resgate do Dionisíaco como forma de equilíbrio. Dionísio é o deus da falta de medidas e formas, da dor, da música, do sexo, da realidade tal como ela é – representada ou não por meio da arte.
Com muito prazer fui à boate Vênus e gostei.
Evoé!
Viva os outros Eus que se fazem presentes na embriaguez!!!

Silvia Luz
11.09.2015

Referências
PAVI, Patrice. Dicionário de Teatro; tradução para a língua portuguesa sob a direção de J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3. ed – São Paulo: Perspectiva, 2008.
NIETZSCHE, F. W. Assim falava Zaratrusta. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães, 1973
__________. A genealogia da moral (P. C. de Souza, trad.). São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

MARIANI, Caio. Apolíneo e Dionisíaco. 2013. Disponível em: . Acesso em 06/09/2015, às 22:50h.