sexta-feira, 12 de julho de 2013

Revirando as Latas



Espetáculo: Raça Vira-lata
Montagem do GTU RUA – Grupo de Teatro Universitário de Rua
Ator e diretor Teatral, Prof. de Teoria do Teatro da ETDUFPA, atua no COLETIVO DE ANIMADORES DE CAIXA e como pesquisador no GITA – Grupo de Investigação do Treinamento Psicofísico do Atuantes. 



O cortejo com aproximadamente quinze figuras maltrapilhas entoando melodicamente alguns jargões consagrados na zona periférica da cidade de Belém, percorre os corredores da Praça da República no final da tarde. A cantoria segue embalada pelo ritmo percussivo de baldes e tampas de latas ecoando pelos quatros cantos do logradouro e atraindo atenção e curiosidade dos transeuntes presentes. A frente da procissão vemos a única figura – por hora – mascarada conduzindo um carrinho de supermercado com alguns produtos para comercialização: balinhas, picolés, garrafinhas de água mineral e o famoso salgadinho do “Croc croc croc”. Com ginga e lábia de vendedor de rua o franzino mascarado aborda alguns passantes tentando obter sucesso no seu empreendimento informal. Sem o retorno desejável o mascarado segue liderando o cortejo rumando ao tradicional anfiteatro da praça. Embora tudo indique que a caravana de maltrapilhos se assentará no local destinado aos artistas de teatro de rua, uma manobra súbita conduz todos ao grande corredor localizado em frente ao monumento erguido em comemoração ao primeiro aniversário da implantação do regime republicano no Brasil (1890). É exatamente este o lugar escolhido pela Raça Vira-Lata para sua estréia nos palcos da cidade.
Trazendo no título a expressão que soa forte (Raça Vira-lata) a montagem não deixa dúvidas acerca do lugar escolhido para fundamentar seu processo criativo: o submundo marginal que abriga toda sorte de personas alijadas da convivência e dos estatutos de nossa sociedade civil – digo persona e não personagem me remetendo a linguagem escolhida pela montagem para desenvolver sua encenação, isto é, a máscara, assunto que abordarei mais a frente. Dentre estas personas, identificamos imediatamente a prostituta, o mendigo e o vendedor ambulante; outras personas – como o rei da rua, o seu capanga, alguns atormentados mentais, o casal hippie, o delinqüente menor de idade – serão reconhecidas ou apresentadas no decorrer da fábula que delineia o quadro social que pretende ser retratado. Assim, pela constituição das personas que povoam a dramaturgia da montagem destaco como extremamente feliz e emblemática opção por não apresentar a montagem na tradicional semi-arena do anfiteatro: esta opção dá as costas para o local convencionado a arte de rua, convenção outorgada e fantasiosamente gerenciada pela Secretária do Meio Ambiente (SEMA), órgão da prefeitura municipal de Belém. Dar as costas para este anfiteatro soa, em primeiro lugar, como um provocativo e irônico deboche endereçado justamente ao órgão competente pela manutenção e preservação daquele espaço público que, no entanto, notabiliza-se pelo desleixo como trata as praças como um todo e pela polêmica e indevida cobrança de taxa para utilização do mesmo (anfiteatro) por parte da classe teatral. Em segundo lugar, dar as costas ao anfiteatro situa estas personas no lugar consagrado a elas pela própria sociedade, isto é, a marginalidade. É sobre este lugar marginal (o submundo dos marginalizados) e neste lugar marginal (corredor em frente ao monumento a República) que a trama dos fatos é construída e será apresentada.
A dramaturgia apresenta uma estrutura simples assentada numa intriga simples e desenvolvimento linear: as personas do submundo retratado são oprimidas pelo Rei da rua que controla quem pode e não pode trabalhar e conviver na região (gueto). Seu Capanga assegura o cumprimento do denominado “dez mandamentos do Rei da rua” recorrendo ao uso da força. Mendinigth – o mascarado que lidera o cortejo na chegada dos atores na praça – um vendedor ambulante, insatisfeito com os mandamentos propostos, pois eles afetam diretamente sua venda informal, trama a morte do opressor. Para tanto, convence Mendigueiro – um mendigo com retardo mental e dificuldade na fala – a participar de seu plano que consiste em envenenar a sopa que é distribuída como “benfeitoria” pelo Rei da rua. Mendigueiro é convencido a colocar o veneno e provocar o Rei da rua a provar um pouco da sopa; desconfiado de uma trapaça, o Rei da rua força Mendigueiro a tomar a sopa, ocasionando sua morte.    
As críticas que reservo a dramaturgia não recaem sobre a simplicidade da estrutura dramática desenvolvida, mas sim ao não aprofundamento das personas que compõem a fábula. Interpelo para aprofundamento desta questão: as motivações de Mendnigth são meramente econômicas? A relação de cumplicidade entre o Rei da rua e seu Capanga se assenta no quê?  Mendigueiro se deixa convencer e participa do plano com quais motivações pessoais? Como o Rei da rua adquiriu este status? Em última instância, quem são estas pessoas que habitam este mundo marginal? 
Estas questões preliminares me deixam com a impressão de que o quadro social retratado na fábula apenas reproduz um sistema de opressão que pode ser localizado em outras instâncias da sociedade como, por exemplo, entre patrão e empregado. Nenhum problema em chegar a esta constatação, mas ao enfatizar este aspecto perde-se a chance de contar a história destes personagens, apresentando sua visão do mundo e sua forma de lidar com as vicissitudes da vida. Como pensam os que têm seus direitos completamente aviltados pelo sistema excludente que rege nossa conduta social e que nos impede de reconhecê-los como seres humanos? Como se dá o processo de degeneração da dignidade humana que ocasiona o surgimento de uma horda de marginais? Resta dignidade a estas pessoas?
Ao deixar estas questões de lado a dramaturgia dá margem para uma abordagem estereotipada e sem consistência dramática. Conseguimos identificar as personas por seus maneirismos gestuais e verbais, mas este, infelizmente, é o lugar recorrente de quem aborda a temática marginal com pretensões limitadas a chacota, ignorando ou fazendo-nos ignorar uma realidade grave e alarmante que coloca em risco o convívio social nas grandes metrópoles brasileiras. Certamente esta não é a intenção da montagem, muito menos da dramaturgia, então, vale a pena o exercício da autocrítica e a revisão do perfil traçado para estas personas, assim como da própria fábula. Como contribuição, apresento a seguir um autor que pode ajudar, pois soube como ninguém abordar a temática marginal.  
Na dramaturgia brasileira, um marco referencial importante que pode ser tomado como parâmetro, sem dúvida, é o santista Plínio Marcos (1935 – 1999), considerado o primeiro dramaturgo a dar voz e protagonismo à classe marginal. Entre seus mais notáveis textos vislumbramos em Barrela (1958), Dois Perdidos numa noite suja (1966), Navalha na carne (1967), O Abajur lilás (1969) e A mancha roxa (1988), uma realidade apresentada e tematizada sem filtros literários, isto é, sem nenhum embelezamento ou mascaramento formal da realidade. Sua dramaturgia funda-se numa espécie de texto-documento apresentando o recorte de uma situação tirada do cenário original. Assim para manter a verossimilhança do contexto de onde se localiza a cena, o linguajar de seus personagens segue reproduzindo fielmente os palavrões, gírias e expressões populares e peculiares. No entanto, nada é gratuito, pois nos deparamos com uma dramaturgia que enreda os personagens – prostituta, cafetão, mendigos, homossexuais, presidiários – numa situação-limite que nos permite flagrar o estado de desumanidade que os assola; eles têm consciência deste processo de coisificação que os atravessa e isso gera invariavelmente revolta e tristeza. Assim, a dramaturgia pliniana nos presenteia com personagens com intensa carga subjetiva em seus atos e comportamentos. Em Navalha na carne, por exemplo, o drama da prostituta Neusa Sueli, do gigolô Vado e do homossexual Veludo nos é apresentado sem véus; a relação entre os três é tensa, violenta, repleta de gírias, xingamentos e palavrões. Mas ao explorar o drama individual de cada personagem – suas motivações, angústias, falta de perspectivas, revoltas e tristezas – Plínio nos permite ultrapassar os estereótipos e perceber a dimensão ética que a fábula aborda. O modo como falam, andam e os demais maneirismos se tornam, assim, traços estilísticos da dramaturgia, e embora tenham função relevante, não são os elementos estruturantes do drama.     
Abordo agora a questão das personas e dirijo as reflexões para a atuação do jovem elenco. A montagem optou pelo uso de máscaras para todos os personagens, elemento de fundamental importância para sua encenação. Quanto à forma são utilizadas máscara inteira e meia máscara; quanto à expressão elegeu-se a máscara expressiva com ênfase no elemento bufônico e grotesco. Esta opção já aponta (ou determina) um caminho para criação dos atuantes, pois se deve considerar o estatuto próprio deste objeto (a máscara). Sobre este estatuto mágico presente no trabalho com máscaras Patrice Pavis (1947) nos afirma que
Escondendo-se o rosto, renuncia-se voluntariamente à expressão psicológica [...] o ator é obrigado a compensar esta perda de sentido e esta falta de identificação por um dispêndio corporal considerável. O corpo traduz a interioridade da personagem de maneira muito amplificada, exagerando cada gesto: teatralidade e a espacialidade do corpo saem daí reforçadas. (2005, p.234)  
No século XX autores como os franceses Jacques Copeau (1879 – 1949) e Jacques Lecoq (1921 – 1999) percebendo a natureza específica desse objeto voltaram suas pesquisas para o desenvolvimento técnico do uso da máscara por parte do ator. Lecoq dedicará tamanha atenção as suas pesquisas com as máscaras que em 1956 fundará a L'École Internationale de Théâtre Jacques Lecoq dedicada a sistematização de suas investigações e aplicação de um método de treinamento para atores, num curso que exige dois anos de dedicação.
Esta breve digressão sobre as máscaras é importante para ressaltar a dificuldade inerente de quem opta trabalhar com elas em cena. É necessário conhecimento de sua natureza específica e, sobretudo tempo para exercitar os procedimentos técnicos necessários para dominar o seu uso. E é exatamente neste ponto que a atuação do elenco deixa a desejar. Considero muito frágil o trabalho de composição de personagens a partir das máscaras, e pelo que pude perceber em cena, o que se dá é um trabalho com máscaras e não de máscaras. Explico: observo que as máscaras são utilizadas como acessórios de cena, como um adorno que os atuantes levam sobre a cabeça. A rigor não percebo àquele “dispêndio corporal considerável” de que nos fala Pavis; observo sim os atuantes desempenhando seus papéis como se fosse de uma montagem convencional de rua – os deslocamentos, as gesticulações, o ritmo das falas, etc. – desconsideram o rigor que o objeto deve empreender no corpo do atuante quando usado em cena. A exceção, neste caso, é o trabalho do ator Gabriel Cunha desempenhando o papel do Mendigueiro e da atriz Priscila Costa desempenhando a “velha hiponga” – não lembro o nome da personagem. Mas em ambos ainda é necessário aprofundar a pesquisa e afinar o tempo de cena de cada papel, com ligeira vantagem para o trabalho de Gabriel.             
Outra questão semelhante, porém com efeitos mais notórios é a manipulação do boneco de vara que representa o personagem Rei da rua. O boneco – um rato com aproximadamente dois metros de altura – é manipulado por um único ator por vez e possui manipulação no braço esquerdo e na boca. Durante a apresentação três atores revezam-se no trabalho de dar anima ao boneco, e nos três persiste o mesmo problema: descompasso entre o texto e a manipulação da boca. Novamente fico com impressão de que o boneco é utilizado como um adorno não respeitando a natureza específica da linguagem do teatro de animação. O descompasso é tão evidente que somos levados a não olhar para o rosto do boneco e sim para o ator que o manipula. Novamente a questão que se impõe é o treinamento rigoroso desta linguagem específica (teatro de animação) e atenção para a natureza peculiar dos personagens representados por bonecos.
Encerro destacando o interessante modo como a encenação trabalha dividindo o espaço cênico em duas áreas de atuação: uma área central dentro da arena – lugar onde se desenvolve a fábula; uma área periférica ao redor e do lado de fora da arena – lugar onde todos os atores que não participam da cena desenvolvem interação com o ambiente. As entradas e saídas da área central ocorrem naturalmente por vários pontos da arena potencializando ambos os espaços. O que há de mais interessante, contudo, é o modo como os atores estabelecem contato com tudo o que ocorre ao redor da arena: desenvolvem um verdadeiro trabalho de intervenção e improvisação com o meio. Nesta área de atuação o trabalho com as máscaras surte efeito impressionante, pois a ausência de palavras – para não comprometer o entendimento e desenvolvimento do que ocorre na área central – obriga o elenco a expressar-se com o corpo inteiro; a magia do trabalho com as máscaras se faz valer plenamente e cativa àqueles que interagem com os mascarados. Assim, por vezes, minha atenção é dirigida e demora-se na área periférica de atuação, pois nela as micro-dramaturgias que são tecidas instantaneamente revelam-se com alto poder dramático. Neste aspecto, a questão é saber equilibrar o jogo entre as duas áreas de atuação, para que ambas possam nutrir-se mutuamente.
Edson Fernando
17.06.2013.                            

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